segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A FILOSOFIA SOCIAL DO CIVILISMO - CIVISMO LIBERTÁRIO E LIBERDADE INFORMATIVA


 
Os momentos de maior sofrimento social parecem surgir quando a reação à evolução social é executada, ciclicamente na história, por centros de poder que perderam a justificação do seu poder e degeneraram internamente, perdendo capacidade adaptativa, mas persistindo em manter a sua hegemonia, chegando a desorganizar, profundamente, a sociedade. Arnold Toynbee falava em minorias criativas que se tornavam apenas minorias dominantes.
 
O civismo é um valor ético que consiste em cada um assumir a responsabilidade pela criação e implementação das regras sociais, implicando participação na construção e vigilância das regras e centros de poder social, assegurando a sua racionalidade e interesse geral, dada a indispensabilidade destes numa sociedade funcional e complexa. Trata-se de viver a liberdade com a responsabilidade respetiva de a defender, constituindo-se uma visão libertária com uma vertente, indispensável, que compreende a responsabilidade na liberdade e a impossibilidade de sociedades sem centros de poder e sem suas tendências degenerativas.
 
Este civismo libertário implica o estudo cívico sobre as regras sociais e as dinâmicas do poder, implica dar o exemplo e a pedagogia social, exige a humildade que desapega ao poder, assim como acarreta transparência sobre tudo que pode influenciar as regras sociais e os desequilíbrios dos centros de poder. Tenta fazer a síntese de várias linhas de pensamento, como o liberalismo clássico de Look, Rousseau, Jefferson e Mill, o pensamento libertário (Kropotkin, Proudhon), a educação para a liberdade e democracia (Freire e Dewey), o republicanismo cívico (Arendt e Barber) e a educação cívica (Gutnam, Boyte, Rebell, etc.). 
 
Este civismo libertário constitui-se como atualização da convicção do igual valor de cada e todo o ser humano, afirmado nas éticas subjacentes ao aparecimento das grandes religiões, atualizada no liberalismo, ao acentuar os valores da liberdade e democracia, recusando imposições, como a escravatura e o governo monárquico autocrático e hereditário. Por sua vez, o social estatismo surgiu como forma de complementar a atualização liberal das grandes religiões, compreendendo que liberdade sem igualdade de oportunidades e equilíbrio de poderes sociais fica vazia de efeito. Por último, a filosofia civilista, decorrente do civismo libertário, previne contra as formas e tendências de degradação de qualquer centro de poder, por melhor intencionado e útil que seja o seu impulso inicial, reafirmando o valor da liberdade sobre qualquer imposição e manipulação, bem como clamando que a liberdade de expressão fica vazia de efeitos sem uma verdadeira capacidade de informação e da sua compreensão, constituindo uma verdadeira liberdade informativa.
 
 
O ANACRONISMO DA SEDE DE PODER, A VIDA GENUÍNA E A ESTABILIZAÇÃO ABERTA
 
A sede de poder, via consumismo, fama ou outras hegemonias, enquanto meio de acesso prioritário a bens eventualmente escassos é, cada vez, menos racional, devido a uma sociedade com grande potencial de capacidade produtiva e capacidade cognitiva para antever possíveis disrupções. Esta consciência abre caminho a estilos de vida mais abertos aos prazeres genuínos e processos de desenvolvimento pessoal que têm sido colonizados e destruídos pela sede competitiva de poder. São exemplos, da vida genuína, o prazer de descobrir e de sentir, o sentimento de liberdade, a autonomia, o sentimento de saúde plena e a vivência estética. Ideias sobre pós escassez (Bookchin), automatização do trabalho (Rifkin) e vida autêntica (Heidegger) parecem confluir.
 
A sede de poder deve, também, relativizada pelo desenvolvimento de filosofias sexo-afetivas, mapeando todas as possibilidades relacionais, pela compreensão serena dos instintos, tecnologias, necessidades sociais e tabus, pulverizando padrões de atratividade física, atávicos e muito seletivos, redefinindo contratos sociais, culturas eróticas, românticas e de sublimação.
 
A descolonização da felicidade pode abrir para modelos sociais de estabilização aberta, nos quais o progresso consumista é relativizado e são amplificadas as dinâmicas de paz, sustentabilidade e estabilidade social, bem como de progresso científico e cultural.

LUTA DE CLASSES OU SUBSTITUIÇÃO DE CLASSES?

Esta visão civilista e idealista da evolução social não oblitera a compreensão de que só os grandes movimentos de substituição de classes sociais são os momentos da mudança de regime e de aliança reformista entre elites e outras classes.
As funções tradicionais da aristocracia monárquica foram substituídas pelo sistema jurídico independente e pelo exército profissional. A atual plutocracia financeira internacional assiste às suas funções tradicionais serem substituídas pelos gestores, incluindo gestores de capital de risco, empreendedores produtivos e sistemas bancários baseados em aforradores da classe média, pressionando a plutocracia para se tornar numa classe de alugadores passivos de capital, sem efetivas competências e necessidade social, erodindo a legitimação do seu enorme poder. Todavia, essa crise de legitimidade contínua ocultada pela excessiva influência do marxismo na social democracia e respetiva análise crítica defeituosa. Excessiva influência que, aliás, ao negar a visão da história enquanto evolução adaptativa de princípios éticos, acabou por subvalorizar a ética, vindo a colaborar, objetivamente, na degradação, ética e funcional, provocada pela senescência da plutocracia rentista. Tal como o protestantismo funcionou como um preâmbulo para a reforma liberal, será que também as diversas formas de socialismo terão sido ser uma forma inicial para as mudanças civilistas de responsabilidade libertária?
 
CIVILISMO E PICO ESCATOLÓGICO
 
Por outro lado, sociedades cada vez mais complexas, na sua estrutura e elevado ritmo de mudança, são mais atreitas aos atavismos do poder, exigindo mais civismo, mas, também, o reconhecimento das limitações adaptativas, dos seres humanos, a elevados ritmos de mudança e complexidade, instituindo a progressividade como valor ético e clamando pelo direito à lúcida navegação no saber, enquanto processo de transparência e de liberdade informativa.
 
Em suma, os diversos níveis de atavismo do poder, devem ser equacionados face à complexidade social, multiplicando centros de poder, exigindo a vigilância sobre o seu equilíbrio e evolução constante, num quadro ético de modernos valores, como o civismo, a participação construtiva das regras, o controlo do poder, respetivo estudo cívico, com vista a liberdade informativa, transparência, humildade cívica e progressividade. Realça-se, ainda, o direito a saber navegar e optar, na enorme informação e diversidade da sociedade complexa, de forma a potenciar o seu uso, individual e social, numa perspetiva de longo prazo e sustentabilidade que é, afinal, a perspetiva da ética. Neste contexto de exigência cognitiva aos cidadãos, a educação obrigatória ao longo da vista torna-se inultrapassável, abarcando a ética, as dinâmicas do poder e a gestão organizacional. Vivemos hoje uma censura contra as novas ideias, exercida pelo excesso de informação. Esta censura pletórica exige o contraponto duma educação obrigatória ao longo da vida que capacite o cidadão para a vivência efetiva do civismo libertário.
 
Numa sociedade complexa e de rápida mutação as crises sistémicas podem ser resolvidas rapidamente, mas também podem, em sentido contrário, redundar em destruições e recessões inauditas, em momentos como o atual, de pico escatológico, quando se sente que qualquer dos extremos pode ocorrer, no médio prazo a longo prazo.
 
 
A PLURICRACIA DO CIVILISMO POLÍTICO
 
Na perspetiva da estabilização civilista, bem como dos seus valores de participação, estudo e transparência emerge um sistema político em que os conceitos de separação de poderes, poliarquia e decisão devidamente informada, mediante o conhecimento das diversas e antagónicas perspetivas possíveis (preocupação patente na democracia deliberativa) se reúnem num sistema caracterizável pela ideia de pluricracia.
 
Trata-se de sistema com ênfase, simultaneamente, na multiplicidade de centros de poder (na senda de Montesquieu e Robert Dahl) e no conhecimento efetivo que o cidadão deve ter da pluralidade de perspetivas e visões (na visão da democracia deliberativa de Habermas, Ned Crosby, James Fishkin e Manuel Arriaga, entre vários outros).
 
De facto, num sistema político e económico sempre passível de assimetrias de informação, entre representado e representante e entre consumidor e fornecedor, tornam-se necessárias novas instituições, como as seguintes.
Fóruns deliberativos, sectoriais e temáticos, abertos a todos os cidadãos, privilegiando a continuidade dos seus membros e respetiva acumulação de conhecimentos específicos, diferenciando entre a componente de representação corporativa e a do público utente e consumidor, corporizando a ideia de uma divisão técnica do trabalho político, entre todos os cidadãos e uma democracia segmentada e especializada;
Constituição e cartas informacionais, onde ficam definidos os indicadores objetivos por onde se pode aferir o sucesso das governações, nos seus diversos níveis, incluindo os administrativos;
Dependência entre os valores obtidos nesses indicadores e a recompensa financeira e social a auferir pelos agentes eleitos e pelos funcionários públicos escolhidos por estes;
Conselho distal, constituindo parceiro legislativo, em que os seus membros são escolhidos vitaliciamente e remunerados em função da evolução a muito longo prazo dos indicadores de progresso social;
Governações simultâneas em que a oposição vencida gere um orçamento importante, facilitando a comparação de performances com os vencedores das eleições;
Várias outras novas instituições e métodos, no sentido das preocupações da democracia deliberativa e expandido os conceitos de poliarquia e separação de poderes, no sentido do conceito de pluricracia, como o voto ponderado pelo conhecimento, em certas situações, escola e exames para políticos e cidadãos, media partidarizada anulando a ficção da objetividade noticiosa, instituições de avaliação da performance dos eleitos e servidores públicos, escolha nominal de representantes que conhecem nominalmente quem os escolheu, processos eletrónicos de construção e divulgação de petições e referendos, etc.
 
O CIVILISMO ECONÓMICO
 
As componentes participativas, de estabilização e de transparência, do civilismo, impelem para modelos económicos de transparência informativa e de planeamento participativo, tentando evitar excessos competitivos.
Trata-se de juntar a ideia de planeamento com a de concorrência, num modelo de planeamento da concorrência que implica, nomeadamente uma mais aberta e transparente circulação da informação. Inspirações da democracia económica (Schweickart e Hahnel), auto planeamento dos cluster (Porter), socialismo das guildas (G.D.H Cole), socialismo de mercado (Lange), das teorias de desenvolvimento endógeno (Romer) e da informação no livre mercado (Akerlof, Spence e Stiglitz) devem ser consideradas, entre várias outras. 
 
Primeiro que tudo, será de acentuar o paradigma do livre mercado, contribuindo para a sua efetiva libertação de poderes hegemónicos e para uma real circulação da informação, tentando ultrapassar as barreiras à entrada na concorrência e as assimetrias negociais e de informação que enviesam o livre mercado. Neste desiderato, torna-se crucial a participação dos poderes públicos na sistematização da informação ao consumidor, do benchmarking e na apropriação social das patentes que evitem monopólios informativos, não deixando de compensar devidamente os criadores, em função dos resultados económicos das suas criações.
Esta libertação do mercado afigura-se sinérgica com o planeamento, democrático, participado por todos os interessados, realçando-se os consumidores finais devidamente informados. De facto, os sectores económicos podem beneficiar de um planeamento interempresarial que defina os investimentos comuns e os campos de cooperação, transpostos para acordos jurídicos e legislativos, bem como certas características dos produtos, referências de quantidades e preços, bem como, com especial significado, definir o tipo de informação a fornecer a todos os consumidores, negando a publicidade manipulativa, melhorando as suas decisões de compra com informação ambiental, energética, de segurança, etc.
No contexto de critérios de eficiência e eficácia, para além do lucro imediatista, emergem tipos de empresas centradas no desenvolvimento dos seus participantes. Trata-se de verdadeiras empresas cognitivas, humanizadas, estimulando, nomeadamente, a proximidade socialmente responsável com os clientes, a indexação dos rendimentos dos colaboradores aos resultados, globais e departamentais (incluindo nas empresas públicas, atuando em livre mercado e com recrutamento racional de gestores e colaboradores em geral), a perenidade dos laços profissionais e humanos, a flexibilização do trabalho a tempo parcial e a transparência interna e externa.
A transição para este modelo de empresa, para um mercado liberto e planificado exigirá empresas públicas eficientes que evitem a fragilização excessiva do poder político face às plutocracias rentistas senescentes.
 
Por último, será de frisar a importância do subconsciente na eficiência económica, exigindo o desenvolvimento da psicologia nas organizações, a apropriação precoce de métodos de estudo, trabalho e pensamento, a promoção do autoconhecimento psicológico e o desenvolvimento dos estudos de cultura organizacional e dos estudos interculturais que, já hoje, explicam as diferentes performances económicas entre nações, regiões e culturas, trazendo o subconsciente económico para a luz do dia. Visões como as de Weber, Almond e Verba, Hofstede, Inglehart, Fukuyma, Acemoglu e Robinson, parecem poder fundamentar a ideia de que a estabilidade social que permite assegurar a recompensa do trabalho e dos riscos constitui o pano de fundo para a vontade de investir e a crença no sucesso das equipas que impulsiona o desenvolvimento económico. Estabilidade esta impossível em sociedades de elites ditatoriais e caprichosas, compaginável com o facto de sociedades com longas histórias ditatoriais terem maiores dificuldades económicas muito após esses períodos históricos terem passado. Embora outros fatores, como invernos duros que exigem disciplina e plano para a eles sobreviver, possam determinar o subconsciente económico das nações, a história duma estabilidade de respeito mútuo parece ser o principal fator.
 
 
ECONOMIA POLÍTICA E LIBERDADE NEGOCIAL
 
Tendo assim apresentado a perspetiva civilista para o desenvolvimento económico pode-se, agora, passar à economia política.
Na inexistência de liberdade negocial, isto é, na inexistência de condições para que todos os grupos profissionais negoceiem, a nível mundial, sem pressões assimétricas, a parte que a cada deve caber na distribuição do valor financeiro, gerado pelas empresas, não pode ser definido o valor de cada trabalho.
Todavia, tentando uma aproximação à liberdade negocial, poder-se-ão definir valores de referência para os diversos tipos de atividade profissional, pela observação das desutilidades relativas das diversas profissões e atividades, efetuada através de fóruns com profissionais de várias atividades, recorrendo a dados científicos, estatísticos e estruturando argumentos a ser decididos pelas instâncias governativas, de forma assegurar, para todos, um incentivo para a excelência profissional num cenário de minimização das assimetria de rendimento. As ideias da luta de classes de Marx e as ideias de incentivo económico e tributação de Mirrlees parecem poder aqui confluir.
 
CONTRA A MANIPULAÇÃO CULTURAL E POR ESCOLHAS CULTURAIS CONSCIENTES DOS SEUS EFEITOS
 
A cultura mediatizada veicula conceções e competências relativas a modelos de felicidade que podem ser de vários tipos e com relações diversas com a sede de poder, nomeadamente traduzíveis em modelos hegemonistas, consumistas, libertinos e exo-expiatórios. Todavia, sobretudo devido à influência de religiões e filosofias sociais, pode transmitir modelos contrários a estes. Uma real liberdade informativa é desiderato para que os cidadãos possam fazer uma análise crítica a todas as mensagens veiculadas pelos media e pela cultura, podendo assim optar em consciência. Esta liberdade informativa só é possível com educação para os media e para a análise das opções e dos efeitos de cada tipo de conceção do mundo, bem como com informação analítica sobre cada peça cultural, expressando a real diversidade de análises possíveis. Esta análise apensa a cada peça mediática deve ser produzida por organizações culturais que controlem os media e que interfiram no sistema educativo e que expressem a real diversidade de visões, sendo eleitas pelos cidadãos, garantindo-se que as organizações culturais com menos votos tenham um tempo de antena não muito distante das mais votadas.
 
As ideias da teoria crítica, de Adorno a Marcuse e Habermas, parecem aqui sinérgicas com as teorias sobre as dificuldades do mercado de produtos de informação e críticas à publicidade (Ralph Nader, Cass Sustein, Shlomo Sher e muitos outros) e sua substituição por verdadeira informação técnica científica sobre produtos e serviços constituindo real publinformação.
 
A consciência sobre as peças mediáticas e formas culturais é, todavia, insuficiente para que o indivíduo tenha a possibilidade de usar todos os recursos da cultura, desde a religião à arte, passando pelas filosofias e ciências sociais e humanas, tecnologias e conhecimentos científicos que otimizem as competências necessárias à vivência de modelos de felicidade sofisticados e não meramente centrados na procura de superioridades competitivas. Cabe ao Estado e às organizações tradutoras da sociedade civil a organização de portais que possam ajudar o indivíduo a navegar em toda a cultura humana, fornecendo mapas do conhecimento.
 
O EQUILÍBRIO ENTRE A ILUSÃO MÍSTICA E A RAZÃO PRÁTICA
 
De realçar que o uso da cultura pode assumir formas menos racionalizadas como religiões e tradições místicas, artísticas e a militância em filosofias fechadas. 
 
No contexto da análise das culturas enquanto componentes não racionais de ilusão social, considera-se que existem tipos de programas neurais que levam o indivíduo a associações mentais e comportamentos que criam a perceção duma realidade fictícia, de forma a ultrapassar a ansiedade existencial. A visão desassombrada e corajosa sobre a existência humana revela a sua fragilidade, bem como a inultrapassável insegurança, face ao risco aleatório sempre presente. Surge assim a ansiedade existencial e a necessidade inultrapassável das ilusões místicas.
Estas programas neurais são místicas sociais, constituintes do subconsciente cultural, e expressando-se no niilismo, rotinização, revivalismo e acomodação em tudo o que ficou distante dos episódios amargos da vida de cada um, exo-expiação, procurando nos outros os culpados para as limitações e incapacidades de cada um, maledicência e denegrir outros para uma auto valorização relativa e processos de catarse. 
Nestas místicas também joga papel predominante a identificação com o poder, sendo o mais frequente a identificação com entidades totalmente poderosas assumindo autoritarismo, arrogância, social e intelectual (desprezando conhecimentos e experiências dos outros), agressão e imposição. Igualmente frequente é a identificação com níveis elevados do poder e status social, através do consumismo sumptuário, através da identificação com grupos considerados de beleza física e atratividade, identificação com figuras parentais ingenuamente concebidas como totalmente poderosas, sonhos familiares dinásticos, identificação com tribos culturais e clubistas, etc.
Os programas neurais de simulação das místicas sociais são indispensáveis ao equilíbrio emocional face a um mundo imprevisível, agressivo e assombrado pelo espectro da morte. Este equilíbrio é essencial para se poder fazer face à realidade e exercer a racionalidade quotidiana.
Considera-se que os programas de simulação mística são como o sonho acordado que retempera o psiquismo, para assim se poder voltar a olhar para a realidade na sua plenitude. Estas místicas podem expressar-se de forma direta ou primitiva ou serem elementos cruciais de místicas evoluídas, veiculadoras de ética, morais e programas sociais, como religiões e ideologias.
Foi o existencialismo que trouxe esta preocupação, sobre a ansiedade e respetivas respostas culturais alienatórias, para o centro da reflexão filosófica. O conceito de angústia existencial (Kierkegaard) devida à aleatoriedade e fragilidade da vida é acentuado por conceber a morte sem refúgios místicos nem distrações com outros pensamentos que constituem a estratégia, usual, para evitar pensar o significado da morte (Heidegger). Este tipo de conceções criam o campo para a necessidade das místicas enquanto processos de aprendizagem e modelação social (por processos semelhantes aos definidos por Bandura).
 Os conhecidos processos de conformismo aos grupos dominantes, na perspetiva de Muzafer Sherifn e Salomon Asch e, sobretudo as tendências de renúncia a valores para obedecer à autoridade (Stanley Miligram), bem como a tendência para o abuso do poder (evidenciada na experiência de Philip Zimbrano), identificam um quadro propício a processos místico de identificação com o poder social instituído.
A teoria do mundo justo, de Melvin Lerner, na qual constata que existe a tendência para culpabilizar os outros pelas desgraças que lhes acontecem e pelas suas fragilidades é mais uma faceta da irresponsabilidade social, sustentada na vivência das místicas primevas.


Para evitar o perigo de indução de irracionalidade, rigidez, seguidismo e radicalismo, contido nas místicas, exige-se que o indivíduo tome consciência do papel irracional das místicas na sua vida.
 
Em relação a formas evoluídas destas místicas que são parte das estruturas religiosas, a sua sustentabilidade e o resguardo da racionalidade prática e social exige que essas formas mais evoluídas encontrem novas mediações com esta, consubstanciado a possibilidade da racionalidade mística enquanto expressão do real, num contexto de prevalência dos remanescentes mistérios da vida.
 
São possíveis exemplos de mediações os conceitos panteístas e evolucionistas da divindade e o entendimento desta divindade consistir nas componentes das leis da física que permitem a harmonia social e a felicidade humana.
Não obstante, este tipo de meso-interpretações consideram-se interpretações parciais, provisórias e convivendo com outras possíveis, sendo apenas peças geráveis pela capacidade de filosofancia e criatividade. A filosofancia é a virtude das virtudes cognitivas, pois é a capacidade de compreender os pressupostos e efeitos das diversas opções que a mente humana tem de tomar, em zonas dominantemente subconscientes, nas quais não pode ser orientada por métodos científicos e pelas racionalidades inerentes. 
 
 
CONCLUSÃO
 
Com base numa conceção sobre os ciclos do poder e a expressão concreta e progressiva de valores éticos, ao longo da história, conclui-se sobre a centralidade da ética e do valor ético do civismo libertário.
 
A declinação das diversas vertentes deste valor, apontam para uma sociedade mais orientada para a vida genuína e para a estabilidade social do que para o crescimento consumista e para a luta obsessiva pelo poder. 
 
Neste contexto, emerge a necessidade de sistema de pluricracia política, com multiplicidade de centros de poder e efetivo conhecimento do pluralismo de informações e perspetivas. Emerge, também, a importância do planeamento participativo da concorrência económica, da economia de transparência e da liberdade negocial. 
Como indispensável base para a efetiva realização da ética, da vida genuína e destes sistemas políticos e económicos, impõe-se uma cultura consciente dos seus efeitos, equilibrando, por um lado, a vida criativa e as ilusões do sonho cultural com o outro prato da balança, onde assenta a racionalidade e a visão corajosa sobre o aleatório e a fragilidade da existência humana.
 
  
José Nuno Lacerda Fonseca
Caldas da Rainha, 26 de setembro de 2020.
 


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