domingo, 30 de janeiro de 2022

A SEGUNDA REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA PARA UMA DEMOCRACIA VIVA



Num sistema político e económico em descredibilização crescente, ferido pelas
falhas de informação e de representação, bem como por fortes assimetrias de
informação, entre representado e representante e entre consumidor e
fornecedor, torna-se necessário proceder a uma segunda revolução
democrática. Desde Platão e Aristóteles que as críticas às fragilidades das
democracias são bem conhecidas, existindo, hoje, importantes movimentos de
reforma, como a democracia deliberativa, cognitiva, líquida, direta, complexa,
associativa, eletrónica, neocorporativismo e poliarquia participativa,
protagonizadas por centenas de investigadores e milhares de ativistas. O
enriquecimento do sistema socioeconómico pode ser assistido por uma teoria
geral da organização, no seu aspeto da teoria das transações, sobretudo no
que diz respeito às transações entre grandes grupos sociais, assistidas por
conceitos como representação dinâmica, mercado cidadão, divisão técnica das
deliberações coletivas, entre outros que serão a seguir apresentados.
Seguidamente, listam-se algumas das possíveis inovações, de forma muito
sintética, apenas como exemplo da diversidade das possibilidades de
enriquecimento que hoje se abrem às sociedades de inovação.

MELHOR INFORMAÇÃO

 Corporativismo Aberto e Cognitivo - Fóruns deliberativos, decidindo
sobre questões estratégicas dos países, sectoriais e temáticos, abertos a todos
os cidadãos que provem o mínimo de conhecimento sobre o tema em análise,
privilegiando a continuidade dos seus membros e respetiva acumulação de
conhecimentos específicos, diferenciando entre duas subcâmaras em cada um
destes fóruns, a da componente de representação corporativa e a do público
utente e consumidor. Cada câmara com possibilidade de múltiplas subdivisões
temáticas, num corporativismo dinâmico.
 Mercado Cidadão - Os cidadãos escolherão a que fórum ou fóruns
pertencer, especializando-se nos respetivos assuntos, podendo mudar para
outros em que sintam existir um défice de qualidade que, indiretamente,
enquanto cidadãos comuns, os está a afetar negativamente, criando assim um
equilíbrio geral. Cria-se assim também uma democracia especializada e uma
divisão técnica do trabalho político entre os cidadãos, deixando de existir
apenas um trabalho eleitoral massificado.
 Representação Dinâmica – O paradigma da representação política fica
alterado profundamente, já que grupos de cidadão decidem sobre assuntos
sem qualquer mandato expresso dos outros, sendo subentendido que existe
um mandato automático que qualquer cidadão pode avocar passando a
integrar um fórum que deixou de merecer a sua confiança.
 Mapas Dinâmicos do Conhecimento - Explicitando os temas, subtemas e
consequentes subdivisões do saber, referenciado autores e suas ideias
fundamentais. Os mapas devem permitir a navegação em diversos níveis de
profundidade. Será nova obrigação dos Estados que deve incorporar visões
contraditórias.

 Educação Obrigatória ao Longo da Vida – Numa democracia e
sociedade de inovação tecnológica, o nível desta é grandemente determinado
pelo nível de conhecimento dos cidadãos. Numa sociedade inovadora, de
rápida mutação e grande produção de conhecimento, a educação permanente
torna-se indispensável, para evitar profundos desequilíbrios e ruturas,
nomeadamente credenciando políticos e cidadãos.
 Benchmarking Sistémico – No sentido de promover uma híper
competição que seja pedagógica e não destrutiva, é necessário que as
melhores práticas, políticas, sociais, económicas, a nível mundial, sejam
rapidamente difundidas, compensando devidamente os seus criadores.
 Voto Cognitivo – Em certas situações e sempre que possível ponderar
os votos em função do conhecimento que cada um tem sobre as matérias, com
apoio especial para aqueles com mais dificuldade de acesso ao saber.
 Câmaras Contraditórias de Especialistas – A existência de câmaras de
especialistas em cada disciplina, sector e tema de governança, coloca-se
quase de forma análoga à das câmaras corporativas, assegurando-se aqui
contradição entre subcâmaras com perspetivas teóricas antagónicas.
 Comunicação Social Contraditória – Cada órgão de comunicação social
deve identificar-se com uma força política, ultrapassando a ilusão da
neutralidade. Todavia, deve conter em si um espaço para a expressão de
visões contrárias, oriundas de meios afetos a outras forças políticas e de outras
fontes institucionais.

MELHOR COGNIÇÃO

 Inovacracia –A orientação da investigação cidadã, sobre a possível
evolução dos sistemas de governança, deve ser um dos objetivos das novas
instituições de governança, como os fóruns corporativos.
 Elevador da heterodoxia – O apoio à divulgação de movimentos culturais
e políticos deve ser tanto maior quanto mais recentes, desde que obtenham o
mínimo de envolvimento popular, como no caso de criação de novos partidos
políticos.
 Racionalidade Democrática - Votações com grandes fraturas e divisões
devem por norma ser objeto de um esforço de negociação e procura de
consenso o mais alargado possível, reservando-se para tal um período
razoável e dissuasor de grandes divisões. Tal só é, geralmente, possível com
um nível de profundidade de análise e disponibilidade advindo, nomeadamente,
da democracia especializada, atrás referida.
 Democracia Psicológica – Preconceitos, traumas, escapismos, ficções,
mecanismos de defesa, rotinas, mitos e alienações constituem alguns dos
conteúdos que impedem a racionalidade e a criatividade. Uma mitanálise que
equacione todos estes fatores, numa perspetiva de psicologia social e
psicoterapia de massas, constitui um conhecimento fundamental, para que
cada um identifique os seus constrangimentos, receios e rigidez e se possa
libertar para a verdade, em diálogo criativo e construtivo. Técnicas mentais e
experienciais que nos possam fazer esquecer as nossas vantagens e
competências específicas ou períodos executando outras profissões, em
situação de fragilidade, são, também, importantes para a ultrapassagem dos

mitos e a capacidade de vermos a perspetiva dos outros indivíduos, abrindo
para a imersão ética do respeito mútuo. Por outro lado, a obsessão pelo poder,
nas suas diversas formas, enquanto meio de aceso prioritário a bens
essenciais eventualmente escassos é, cada vez menos racional, devido a uma
sociedade com progressiva maior capacidade produtiva e capacidade
prospetiva contra possíveis disrupções. Adicionalmente, a diminuição da
obsessão pelo poder pode resultar do desenvolvimento de filosofias sexo-
afetivas, mapeando todas as possibilidades relacionais, propiciando a
compreensão serena dos instintos, necessidades sociais e tabus,
eventualmente amplificando padrões de atratividade física e usando
tecnologias virtuais, desenvolvendo culturas eróticas, românticas e de
sublimação. Esta redefinição da relação com o poder permitiria libertar tempo e
facilitar a racionalidade nas questões sociais e humanas.
 Conselho Distal - Constituindo parceiro legislativo, em que os seus
membros são escolhidos vitaliciamente e remunerados em função da evolução
a muito longo prazo dos indicadores de progresso social. A escolha destes
membros deve ser feita mediante negociação entre várias instituições públicas
e associativas.
 Elevador de ideias – Precisa-se dum sistema em que os cidadãos e
membros das organizações em geral apresentem as suas ideias e que estas
possam ser selecionadas, para futuro desenvolvimento, nomeadamente por
votação dos pares, envolvendo votações, em escadaria, com cada vez mais
pares.

MELHOR REPRESENTAÇÃO

 Constituição Informacional - Constituição e cartas informacionais, onde
ficam definidos os indicadores objetivos por onde se pode aferir o sucesso das
governações, nos seus diversos níveis, incluindo os administrativos.
 Democracia Líquida Cognitiva – Para além de sistemas atrás referidos
de representação dinâmica, podem ser instituídos sistemas de delegação
direta, nas quais um eleitor designa quem o deve representar em cada tema,
como tem sido proposto na atualidade, sem, todavia, massificar esta delegação
evitando perder a ligação pedagógica.
 Democracia da fragilidade – trata-se de discriminação positiva na
representação política, através do especial apoio à expressão dos que estão
limitados para o fazer no espaço público, por debilidades de conhecimento,
educação ou saúde, dificuldades organizativas, por sofrerem o efeito de
preconceitos marginalizadores ou pela sua grande diferenciação em relação às
massas. Este apoio pode expressar-se de diversas formas, sobretudo de
organização e desenvolvimento cognitivo e cultural, mas também pode incluir
uma ponderação superior dos votos em certas circunstâncias. Por exemplo,
não deve uma sociedade que assume a luta conta a pobreza ponderar mais os
votos dos mais pobres, devidamente informados e resguardados da compra de
votos?
 Vencimento de Incentivo – Dito habitualmente “performance related
pay”. Todos os representantes públicos terem parte importante do seu
vencimento indexado a resultados, pré-contratualizados e objetivamente

avaliáveis, considerando o longo prazo. Devido à complexidade dos
indicadores envolvidos, este sistema exige considerável investigação e projetos
piloto. Na mesma linha de ideias, os responsáveis por um sistema público não
poderiam usar o sistema privado, como na educação e saúde.
 Meta democracia – A votação sobre as regras gerais, de caráter mais
elevado, que regem o funcionamento das instituições, podem ser submetidas a
sufrágio universal, já que assim fica limitado o campo de estudo e análise dos
eleitores. Todavia, instrumentos complexos de prospetiva e cenarização terão
de estar envolvidos, nomeadamente na investigação e numa câmara
especializada, aberta aos cidadãos, que vota previamente estes projetos e
intervém no seu debate. Uma cultura de Democracia Crítica deve ser
disponibilizada ao cidadão, deixando claro quais são as fragilidades, pontos
fracos e fortes de todas as instituições e processos de governança.
 Partidos Filosóficos – Partidos alicerçados em filosofias sociais e
existenciais, organizando-se em cascata concetual até esta desembocar em
programas e legislação, incluindo perspetivas críticas e linhas de evolução dos
sistemas socais a muito longo prazo e o mais concretas possível.
 Governações Simultâneas – Nas quais a oposição vencida gere um
orçamento importante, facilitando a comparação de performances com os
vencedores das eleições;
 Representações Estatísticas - Nos órgãos representativos os diversos
estratos de nível de rendimento estarem representados por representantes com
as mesmas características do que aqueles que representam. Outras
caraterísticas, que não o nível de rendimento, podem ser consideradas.

CONCLUSÃO

Depois desta listagem, simplista, dalgumas possibilidades de enriquecimento
do sistema, interessa não subvalorizar várias outras já mais antigas, mas ainda
algo inexploradas como a descentralização, petições, etc.
Em suma, trata-se de equacionar um enriquecimento institucional a exigir
projetos piloto, investigação, inovação, avaliação, precaução e progressividade.
Esta multiplicidade de novas instituições constitui um quadro de meta
competição, interinstitucional e entre sistemas de países diferentes, Assim
modificam a sua natureza, evolução e alcance, criando uma multicracia, de
equilíbrios e vigilância mútua, diversidade de pontos de vista e conhecimentos,
bem como de redundância e, sobretudo, competição entre as instituições,
ocasionando um clima de evolução e metamorfose continua de todas as
instituições e ocasionando novas, numa democracia viva, correspondendo a
uma sociedade de inovação e mudança constante.

José Nuno Lacerda Fonseca
Caldas da Rainha, 08/12/2021

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A FILOSOFIA SOCIAL DO CIVILISMO - CIVISMO LIBERTÁRIO E LIBERDADE INFORMATIVA


 
Os momentos de maior sofrimento social parecem surgir quando a reação à evolução social é executada, ciclicamente na história, por centros de poder que perderam a justificação do seu poder e degeneraram internamente, perdendo capacidade adaptativa, mas persistindo em manter a sua hegemonia, chegando a desorganizar, profundamente, a sociedade. Arnold Toynbee falava em minorias criativas que se tornavam apenas minorias dominantes.
 
O civismo é um valor ético que consiste em cada um assumir a responsabilidade pela criação e implementação das regras sociais, implicando participação na construção e vigilância das regras e centros de poder social, assegurando a sua racionalidade e interesse geral, dada a indispensabilidade destes numa sociedade funcional e complexa. Trata-se de viver a liberdade com a responsabilidade respetiva de a defender, constituindo-se uma visão libertária com uma vertente, indispensável, que compreende a responsabilidade na liberdade e a impossibilidade de sociedades sem centros de poder e sem suas tendências degenerativas.
 
Este civismo libertário implica o estudo cívico sobre as regras sociais e as dinâmicas do poder, implica dar o exemplo e a pedagogia social, exige a humildade que desapega ao poder, assim como acarreta transparência sobre tudo que pode influenciar as regras sociais e os desequilíbrios dos centros de poder. Tenta fazer a síntese de várias linhas de pensamento, como o liberalismo clássico de Look, Rousseau, Jefferson e Mill, o pensamento libertário (Kropotkin, Proudhon), a educação para a liberdade e democracia (Freire e Dewey), o republicanismo cívico (Arendt e Barber) e a educação cívica (Gutnam, Boyte, Rebell, etc.). 
 
Este civismo libertário constitui-se como atualização da convicção do igual valor de cada e todo o ser humano, afirmado nas éticas subjacentes ao aparecimento das grandes religiões, atualizada no liberalismo, ao acentuar os valores da liberdade e democracia, recusando imposições, como a escravatura e o governo monárquico autocrático e hereditário. Por sua vez, o social estatismo surgiu como forma de complementar a atualização liberal das grandes religiões, compreendendo que liberdade sem igualdade de oportunidades e equilíbrio de poderes sociais fica vazia de efeito. Por último, a filosofia civilista, decorrente do civismo libertário, previne contra as formas e tendências de degradação de qualquer centro de poder, por melhor intencionado e útil que seja o seu impulso inicial, reafirmando o valor da liberdade sobre qualquer imposição e manipulação, bem como clamando que a liberdade de expressão fica vazia de efeitos sem uma verdadeira capacidade de informação e da sua compreensão, constituindo uma verdadeira liberdade informativa.
 
 
O ANACRONISMO DA SEDE DE PODER, A VIDA GENUÍNA E A ESTABILIZAÇÃO ABERTA
 
A sede de poder, via consumismo, fama ou outras hegemonias, enquanto meio de acesso prioritário a bens eventualmente escassos é, cada vez, menos racional, devido a uma sociedade com grande potencial de capacidade produtiva e capacidade cognitiva para antever possíveis disrupções. Esta consciência abre caminho a estilos de vida mais abertos aos prazeres genuínos e processos de desenvolvimento pessoal que têm sido colonizados e destruídos pela sede competitiva de poder. São exemplos, da vida genuína, o prazer de descobrir e de sentir, o sentimento de liberdade, a autonomia, o sentimento de saúde plena e a vivência estética. Ideias sobre pós escassez (Bookchin), automatização do trabalho (Rifkin) e vida autêntica (Heidegger) parecem confluir.
 
A sede de poder deve, também, relativizada pelo desenvolvimento de filosofias sexo-afetivas, mapeando todas as possibilidades relacionais, pela compreensão serena dos instintos, tecnologias, necessidades sociais e tabus, pulverizando padrões de atratividade física, atávicos e muito seletivos, redefinindo contratos sociais, culturas eróticas, românticas e de sublimação.
 
A descolonização da felicidade pode abrir para modelos sociais de estabilização aberta, nos quais o progresso consumista é relativizado e são amplificadas as dinâmicas de paz, sustentabilidade e estabilidade social, bem como de progresso científico e cultural.

LUTA DE CLASSES OU SUBSTITUIÇÃO DE CLASSES?

Esta visão civilista e idealista da evolução social não oblitera a compreensão de que só os grandes movimentos de substituição de classes sociais são os momentos da mudança de regime e de aliança reformista entre elites e outras classes.
As funções tradicionais da aristocracia monárquica foram substituídas pelo sistema jurídico independente e pelo exército profissional. A atual plutocracia financeira internacional assiste às suas funções tradicionais serem substituídas pelos gestores, incluindo gestores de capital de risco, empreendedores produtivos e sistemas bancários baseados em aforradores da classe média, pressionando a plutocracia para se tornar numa classe de alugadores passivos de capital, sem efetivas competências e necessidade social, erodindo a legitimação do seu enorme poder. Todavia, essa crise de legitimidade contínua ocultada pela excessiva influência do marxismo na social democracia e respetiva análise crítica defeituosa. Excessiva influência que, aliás, ao negar a visão da história enquanto evolução adaptativa de princípios éticos, acabou por subvalorizar a ética, vindo a colaborar, objetivamente, na degradação, ética e funcional, provocada pela senescência da plutocracia rentista. Tal como o protestantismo funcionou como um preâmbulo para a reforma liberal, será que também as diversas formas de socialismo terão sido ser uma forma inicial para as mudanças civilistas de responsabilidade libertária?
 
CIVILISMO E PICO ESCATOLÓGICO
 
Por outro lado, sociedades cada vez mais complexas, na sua estrutura e elevado ritmo de mudança, são mais atreitas aos atavismos do poder, exigindo mais civismo, mas, também, o reconhecimento das limitações adaptativas, dos seres humanos, a elevados ritmos de mudança e complexidade, instituindo a progressividade como valor ético e clamando pelo direito à lúcida navegação no saber, enquanto processo de transparência e de liberdade informativa.
 
Em suma, os diversos níveis de atavismo do poder, devem ser equacionados face à complexidade social, multiplicando centros de poder, exigindo a vigilância sobre o seu equilíbrio e evolução constante, num quadro ético de modernos valores, como o civismo, a participação construtiva das regras, o controlo do poder, respetivo estudo cívico, com vista a liberdade informativa, transparência, humildade cívica e progressividade. Realça-se, ainda, o direito a saber navegar e optar, na enorme informação e diversidade da sociedade complexa, de forma a potenciar o seu uso, individual e social, numa perspetiva de longo prazo e sustentabilidade que é, afinal, a perspetiva da ética. Neste contexto de exigência cognitiva aos cidadãos, a educação obrigatória ao longo da vista torna-se inultrapassável, abarcando a ética, as dinâmicas do poder e a gestão organizacional. Vivemos hoje uma censura contra as novas ideias, exercida pelo excesso de informação. Esta censura pletórica exige o contraponto duma educação obrigatória ao longo da vida que capacite o cidadão para a vivência efetiva do civismo libertário.
 
Numa sociedade complexa e de rápida mutação as crises sistémicas podem ser resolvidas rapidamente, mas também podem, em sentido contrário, redundar em destruições e recessões inauditas, em momentos como o atual, de pico escatológico, quando se sente que qualquer dos extremos pode ocorrer, no médio prazo a longo prazo.
 
 
A PLURICRACIA DO CIVILISMO POLÍTICO
 
Na perspetiva da estabilização civilista, bem como dos seus valores de participação, estudo e transparência emerge um sistema político em que os conceitos de separação de poderes, poliarquia e decisão devidamente informada, mediante o conhecimento das diversas e antagónicas perspetivas possíveis (preocupação patente na democracia deliberativa) se reúnem num sistema caracterizável pela ideia de pluricracia.
 
Trata-se de sistema com ênfase, simultaneamente, na multiplicidade de centros de poder (na senda de Montesquieu e Robert Dahl) e no conhecimento efetivo que o cidadão deve ter da pluralidade de perspetivas e visões (na visão da democracia deliberativa de Habermas, Ned Crosby, James Fishkin e Manuel Arriaga, entre vários outros).
 
De facto, num sistema político e económico sempre passível de assimetrias de informação, entre representado e representante e entre consumidor e fornecedor, tornam-se necessárias novas instituições, como as seguintes.
Fóruns deliberativos, sectoriais e temáticos, abertos a todos os cidadãos, privilegiando a continuidade dos seus membros e respetiva acumulação de conhecimentos específicos, diferenciando entre a componente de representação corporativa e a do público utente e consumidor, corporizando a ideia de uma divisão técnica do trabalho político, entre todos os cidadãos e uma democracia segmentada e especializada;
Constituição e cartas informacionais, onde ficam definidos os indicadores objetivos por onde se pode aferir o sucesso das governações, nos seus diversos níveis, incluindo os administrativos;
Dependência entre os valores obtidos nesses indicadores e a recompensa financeira e social a auferir pelos agentes eleitos e pelos funcionários públicos escolhidos por estes;
Conselho distal, constituindo parceiro legislativo, em que os seus membros são escolhidos vitaliciamente e remunerados em função da evolução a muito longo prazo dos indicadores de progresso social;
Governações simultâneas em que a oposição vencida gere um orçamento importante, facilitando a comparação de performances com os vencedores das eleições;
Várias outras novas instituições e métodos, no sentido das preocupações da democracia deliberativa e expandido os conceitos de poliarquia e separação de poderes, no sentido do conceito de pluricracia, como o voto ponderado pelo conhecimento, em certas situações, escola e exames para políticos e cidadãos, media partidarizada anulando a ficção da objetividade noticiosa, instituições de avaliação da performance dos eleitos e servidores públicos, escolha nominal de representantes que conhecem nominalmente quem os escolheu, processos eletrónicos de construção e divulgação de petições e referendos, etc.
 
O CIVILISMO ECONÓMICO
 
As componentes participativas, de estabilização e de transparência, do civilismo, impelem para modelos económicos de transparência informativa e de planeamento participativo, tentando evitar excessos competitivos.
Trata-se de juntar a ideia de planeamento com a de concorrência, num modelo de planeamento da concorrência que implica, nomeadamente uma mais aberta e transparente circulação da informação. Inspirações da democracia económica (Schweickart e Hahnel), auto planeamento dos cluster (Porter), socialismo das guildas (G.D.H Cole), socialismo de mercado (Lange), das teorias de desenvolvimento endógeno (Romer) e da informação no livre mercado (Akerlof, Spence e Stiglitz) devem ser consideradas, entre várias outras. 
 
Primeiro que tudo, será de acentuar o paradigma do livre mercado, contribuindo para a sua efetiva libertação de poderes hegemónicos e para uma real circulação da informação, tentando ultrapassar as barreiras à entrada na concorrência e as assimetrias negociais e de informação que enviesam o livre mercado. Neste desiderato, torna-se crucial a participação dos poderes públicos na sistematização da informação ao consumidor, do benchmarking e na apropriação social das patentes que evitem monopólios informativos, não deixando de compensar devidamente os criadores, em função dos resultados económicos das suas criações.
Esta libertação do mercado afigura-se sinérgica com o planeamento, democrático, participado por todos os interessados, realçando-se os consumidores finais devidamente informados. De facto, os sectores económicos podem beneficiar de um planeamento interempresarial que defina os investimentos comuns e os campos de cooperação, transpostos para acordos jurídicos e legislativos, bem como certas características dos produtos, referências de quantidades e preços, bem como, com especial significado, definir o tipo de informação a fornecer a todos os consumidores, negando a publicidade manipulativa, melhorando as suas decisões de compra com informação ambiental, energética, de segurança, etc.
No contexto de critérios de eficiência e eficácia, para além do lucro imediatista, emergem tipos de empresas centradas no desenvolvimento dos seus participantes. Trata-se de verdadeiras empresas cognitivas, humanizadas, estimulando, nomeadamente, a proximidade socialmente responsável com os clientes, a indexação dos rendimentos dos colaboradores aos resultados, globais e departamentais (incluindo nas empresas públicas, atuando em livre mercado e com recrutamento racional de gestores e colaboradores em geral), a perenidade dos laços profissionais e humanos, a flexibilização do trabalho a tempo parcial e a transparência interna e externa.
A transição para este modelo de empresa, para um mercado liberto e planificado exigirá empresas públicas eficientes que evitem a fragilização excessiva do poder político face às plutocracias rentistas senescentes.
 
Por último, será de frisar a importância do subconsciente na eficiência económica, exigindo o desenvolvimento da psicologia nas organizações, a apropriação precoce de métodos de estudo, trabalho e pensamento, a promoção do autoconhecimento psicológico e o desenvolvimento dos estudos de cultura organizacional e dos estudos interculturais que, já hoje, explicam as diferentes performances económicas entre nações, regiões e culturas, trazendo o subconsciente económico para a luz do dia. Visões como as de Weber, Almond e Verba, Hofstede, Inglehart, Fukuyma, Acemoglu e Robinson, parecem poder fundamentar a ideia de que a estabilidade social que permite assegurar a recompensa do trabalho e dos riscos constitui o pano de fundo para a vontade de investir e a crença no sucesso das equipas que impulsiona o desenvolvimento económico. Estabilidade esta impossível em sociedades de elites ditatoriais e caprichosas, compaginável com o facto de sociedades com longas histórias ditatoriais terem maiores dificuldades económicas muito após esses períodos históricos terem passado. Embora outros fatores, como invernos duros que exigem disciplina e plano para a eles sobreviver, possam determinar o subconsciente económico das nações, a história duma estabilidade de respeito mútuo parece ser o principal fator.
 
 
ECONOMIA POLÍTICA E LIBERDADE NEGOCIAL
 
Tendo assim apresentado a perspetiva civilista para o desenvolvimento económico pode-se, agora, passar à economia política.
Na inexistência de liberdade negocial, isto é, na inexistência de condições para que todos os grupos profissionais negoceiem, a nível mundial, sem pressões assimétricas, a parte que a cada deve caber na distribuição do valor financeiro, gerado pelas empresas, não pode ser definido o valor de cada trabalho.
Todavia, tentando uma aproximação à liberdade negocial, poder-se-ão definir valores de referência para os diversos tipos de atividade profissional, pela observação das desutilidades relativas das diversas profissões e atividades, efetuada através de fóruns com profissionais de várias atividades, recorrendo a dados científicos, estatísticos e estruturando argumentos a ser decididos pelas instâncias governativas, de forma assegurar, para todos, um incentivo para a excelência profissional num cenário de minimização das assimetria de rendimento. As ideias da luta de classes de Marx e as ideias de incentivo económico e tributação de Mirrlees parecem poder aqui confluir.
 
CONTRA A MANIPULAÇÃO CULTURAL E POR ESCOLHAS CULTURAIS CONSCIENTES DOS SEUS EFEITOS
 
A cultura mediatizada veicula conceções e competências relativas a modelos de felicidade que podem ser de vários tipos e com relações diversas com a sede de poder, nomeadamente traduzíveis em modelos hegemonistas, consumistas, libertinos e exo-expiatórios. Todavia, sobretudo devido à influência de religiões e filosofias sociais, pode transmitir modelos contrários a estes. Uma real liberdade informativa é desiderato para que os cidadãos possam fazer uma análise crítica a todas as mensagens veiculadas pelos media e pela cultura, podendo assim optar em consciência. Esta liberdade informativa só é possível com educação para os media e para a análise das opções e dos efeitos de cada tipo de conceção do mundo, bem como com informação analítica sobre cada peça cultural, expressando a real diversidade de análises possíveis. Esta análise apensa a cada peça mediática deve ser produzida por organizações culturais que controlem os media e que interfiram no sistema educativo e que expressem a real diversidade de visões, sendo eleitas pelos cidadãos, garantindo-se que as organizações culturais com menos votos tenham um tempo de antena não muito distante das mais votadas.
 
As ideias da teoria crítica, de Adorno a Marcuse e Habermas, parecem aqui sinérgicas com as teorias sobre as dificuldades do mercado de produtos de informação e críticas à publicidade (Ralph Nader, Cass Sustein, Shlomo Sher e muitos outros) e sua substituição por verdadeira informação técnica científica sobre produtos e serviços constituindo real publinformação.
 
A consciência sobre as peças mediáticas e formas culturais é, todavia, insuficiente para que o indivíduo tenha a possibilidade de usar todos os recursos da cultura, desde a religião à arte, passando pelas filosofias e ciências sociais e humanas, tecnologias e conhecimentos científicos que otimizem as competências necessárias à vivência de modelos de felicidade sofisticados e não meramente centrados na procura de superioridades competitivas. Cabe ao Estado e às organizações tradutoras da sociedade civil a organização de portais que possam ajudar o indivíduo a navegar em toda a cultura humana, fornecendo mapas do conhecimento.
 
O EQUILÍBRIO ENTRE A ILUSÃO MÍSTICA E A RAZÃO PRÁTICA
 
De realçar que o uso da cultura pode assumir formas menos racionalizadas como religiões e tradições místicas, artísticas e a militância em filosofias fechadas. 
 
No contexto da análise das culturas enquanto componentes não racionais de ilusão social, considera-se que existem tipos de programas neurais que levam o indivíduo a associações mentais e comportamentos que criam a perceção duma realidade fictícia, de forma a ultrapassar a ansiedade existencial. A visão desassombrada e corajosa sobre a existência humana revela a sua fragilidade, bem como a inultrapassável insegurança, face ao risco aleatório sempre presente. Surge assim a ansiedade existencial e a necessidade inultrapassável das ilusões místicas.
Estas programas neurais são místicas sociais, constituintes do subconsciente cultural, e expressando-se no niilismo, rotinização, revivalismo e acomodação em tudo o que ficou distante dos episódios amargos da vida de cada um, exo-expiação, procurando nos outros os culpados para as limitações e incapacidades de cada um, maledicência e denegrir outros para uma auto valorização relativa e processos de catarse. 
Nestas místicas também joga papel predominante a identificação com o poder, sendo o mais frequente a identificação com entidades totalmente poderosas assumindo autoritarismo, arrogância, social e intelectual (desprezando conhecimentos e experiências dos outros), agressão e imposição. Igualmente frequente é a identificação com níveis elevados do poder e status social, através do consumismo sumptuário, através da identificação com grupos considerados de beleza física e atratividade, identificação com figuras parentais ingenuamente concebidas como totalmente poderosas, sonhos familiares dinásticos, identificação com tribos culturais e clubistas, etc.
Os programas neurais de simulação das místicas sociais são indispensáveis ao equilíbrio emocional face a um mundo imprevisível, agressivo e assombrado pelo espectro da morte. Este equilíbrio é essencial para se poder fazer face à realidade e exercer a racionalidade quotidiana.
Considera-se que os programas de simulação mística são como o sonho acordado que retempera o psiquismo, para assim se poder voltar a olhar para a realidade na sua plenitude. Estas místicas podem expressar-se de forma direta ou primitiva ou serem elementos cruciais de místicas evoluídas, veiculadoras de ética, morais e programas sociais, como religiões e ideologias.
Foi o existencialismo que trouxe esta preocupação, sobre a ansiedade e respetivas respostas culturais alienatórias, para o centro da reflexão filosófica. O conceito de angústia existencial (Kierkegaard) devida à aleatoriedade e fragilidade da vida é acentuado por conceber a morte sem refúgios místicos nem distrações com outros pensamentos que constituem a estratégia, usual, para evitar pensar o significado da morte (Heidegger). Este tipo de conceções criam o campo para a necessidade das místicas enquanto processos de aprendizagem e modelação social (por processos semelhantes aos definidos por Bandura).
 Os conhecidos processos de conformismo aos grupos dominantes, na perspetiva de Muzafer Sherifn e Salomon Asch e, sobretudo as tendências de renúncia a valores para obedecer à autoridade (Stanley Miligram), bem como a tendência para o abuso do poder (evidenciada na experiência de Philip Zimbrano), identificam um quadro propício a processos místico de identificação com o poder social instituído.
A teoria do mundo justo, de Melvin Lerner, na qual constata que existe a tendência para culpabilizar os outros pelas desgraças que lhes acontecem e pelas suas fragilidades é mais uma faceta da irresponsabilidade social, sustentada na vivência das místicas primevas.


Para evitar o perigo de indução de irracionalidade, rigidez, seguidismo e radicalismo, contido nas místicas, exige-se que o indivíduo tome consciência do papel irracional das místicas na sua vida.
 
Em relação a formas evoluídas destas místicas que são parte das estruturas religiosas, a sua sustentabilidade e o resguardo da racionalidade prática e social exige que essas formas mais evoluídas encontrem novas mediações com esta, consubstanciado a possibilidade da racionalidade mística enquanto expressão do real, num contexto de prevalência dos remanescentes mistérios da vida.
 
São possíveis exemplos de mediações os conceitos panteístas e evolucionistas da divindade e o entendimento desta divindade consistir nas componentes das leis da física que permitem a harmonia social e a felicidade humana.
Não obstante, este tipo de meso-interpretações consideram-se interpretações parciais, provisórias e convivendo com outras possíveis, sendo apenas peças geráveis pela capacidade de filosofancia e criatividade. A filosofancia é a virtude das virtudes cognitivas, pois é a capacidade de compreender os pressupostos e efeitos das diversas opções que a mente humana tem de tomar, em zonas dominantemente subconscientes, nas quais não pode ser orientada por métodos científicos e pelas racionalidades inerentes. 
 
 
CONCLUSÃO
 
Com base numa conceção sobre os ciclos do poder e a expressão concreta e progressiva de valores éticos, ao longo da história, conclui-se sobre a centralidade da ética e do valor ético do civismo libertário.
 
A declinação das diversas vertentes deste valor, apontam para uma sociedade mais orientada para a vida genuína e para a estabilidade social do que para o crescimento consumista e para a luta obsessiva pelo poder. 
 
Neste contexto, emerge a necessidade de sistema de pluricracia política, com multiplicidade de centros de poder e efetivo conhecimento do pluralismo de informações e perspetivas. Emerge, também, a importância do planeamento participativo da concorrência económica, da economia de transparência e da liberdade negocial. 
Como indispensável base para a efetiva realização da ética, da vida genuína e destes sistemas políticos e económicos, impõe-se uma cultura consciente dos seus efeitos, equilibrando, por um lado, a vida criativa e as ilusões do sonho cultural com o outro prato da balança, onde assenta a racionalidade e a visão corajosa sobre o aleatório e a fragilidade da existência humana.
 
  
José Nuno Lacerda Fonseca
Caldas da Rainha, 26 de setembro de 2020.
 


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