segunda-feira, 12 de setembro de 2011

As ditaduras entre nós, ocaso do Ocidente e o que já não cai dos céus

Se, de repente, todos achássemos muito bem matar, roubar e mentir, a sociedade atravessaria um período de violência e destruição, até descer ao nível organizativo da sociedade dos primatas. A ética é, portanto, o bem social mais essencial. Tão importante como a ética, para o funcionamento social, só a existência de linguagem. A ética constitui o regulador social que vem de dentro de cada indivíduo, sem o qual não existe a possibilidade de qualquer modelo social sustentável. De facto, é impossível que exista um controlo social, judicial e jurídico, que seja exaustivo sobre os actos dos cidadãos. Podemos, talvez, colocar um polícia atrás de cada cidadão (segundo Samuel Bowles, o ocidente está a caminhar para isso) mas colocar um polícia atrás de cada polícia e assim sucessivamente, só num sonho, quântico, de Estaline.
Na origem de todas as últimas grandes crises financeiras existiram transgressões à ética que acabaram por propiciar essas crises. Apareceram sempre pessoas a tentar enganar e outras a olhar para o lado e a lavar daí as mãos, até ser tarde demais.
Infelizmente, apesar da grande importância da ética, as reflexões pós-modernas evidenciaram a impossibilidade de fundamentação absoluta das filosofias morais e éticas. Bauman, na sua síntese sobre a ética pós-moderna , di-lo na mais clara das formas, afirmando que “o fenómeno moral é por inerência um fenómeno não racional”. Já o mesmo tinha sido defendido por vários outros filósofos pós-modernos  e muitos outros anteriores, muito pouco aristotélicos, kantianos e espinozianos, como Kierkegaard e Hobbes. Também não devemos esquecer o diabolizado Skinner  e as suas teorias do condicionamento do indivíduo, no qual não devemos ver, apenas, creio eu, o malvado e científico patrono da renovação do admirável mundo novo do Huxley.
Face ao que hoje sabemos sobre a distância entre argumentações filosóficas (a favor dos valores éticos) e os métodos de demonstração científica, temos de pensar que ser ético é uma opção subjetiva, sem nada de científico, sendo que ninguém pode provar se é a melhor opção para cada indivíduo. Apesar disso, é óbvio que é o melhor para a sociedade em geral mesmo que o não seja para quem tem vocação para bandido. De facto, existem muitos bandidos felizes mas uma sociedade só de bandidos pouco mais será do que um combate ininterrupto de facada.
Devido a este cenário, de interesse coletivo e indiferença individual, terão as sociedade o direito de condicionar para a ética, nomeadamente mediante mecanismos culturais de propaganda e instilação dos valores éticos, desde que salvaguardado o pluralismo? Creio que sim e que sem isso o risco de desagregação social será excessivo. Contudo, creio que ao indivíduo deve ser dada a capacidade de desmontar e recriar, criticamente, qualquer propaganda a que seja submetido. Em suma, a sociedade deve moldar o homem como um ser ético mas deve dar-lhe a hipótese de se tornar um crítico dessa ética e até, eventualmente, um bandido, pois esse é o seu direito de liberdade e, também, porque ninguém pode garantir que a propaganda ética seja pura e idealmente ética e não algo bem diferente. Contudo, será bom, para manter a necessária coerência social, que essa eventual passagem, de ético a bandido ou de condicionado a livre, não se faça sem um considerável esforço individual de desconstrução e recriação.

Quem fez, até agora, esta necessária despesa pública da propaganda da ética? Religiões e ideologias tal fizeram, como creio ser óbvio, infelizmente sem qualquer preocupação com a liberdade crítica aos dogmas. Num cenário de fraqueza argumentativa das religiões e ideologias, ocasionado pela super valorização dos métodos científicos de pensamento, quem faz hoje esta propaganda da ética? Duvido que as verdadeiras missas negras, de violência, mentira e desejo de poder, em que se tornaram parte dos mídia, estejam a cumprir essa função social. Vejo os mídia, na recreação e, sobretudo, na publicidade, frequentemente apostados na valorização da procura do poder a todo o custo (por vezes identificando-o com o sucesso, financeiro e sexual, fama e poder de compra), fomentando uma verdadeira paixão pelo poder. Esta “poderanóia” constitui o principal inimigo da ética. Bem longe estamos dos dias de propaganda a favor do principal aliado da ética (juntamente com a empatia e sublimação) que é, no meu entendimento pessoal, o sentimento místico de integridade ética. Esse sentimento de que, se formos éticos, todos os seres se poderão sentir bem e nós seremos recompensados, mesmo sem percebermos bem como, parece arredado da alma do homem atual. Esse sentimento místico e idealista (central nas religiões e ideologias) foi afundado pelo anátema sobre ele colocado por uma interpretação arrogante do que é a ciência e o pragmatismo. Ficou assim o indivíduo enclausurado num ego férreo que esta cultura anti-ética da modernidade entende como indispensável ao sucesso e ao bem-estar psicológico.
Que faz o sistema político a favor da ética? Nem grandes exemplos nem nenhuma promoção da ética (se excluirmos algumas iniciativas de cultura cívica e moral, em ambiente escolar, inspiradas, possivelmente, em Lawrence Kohlberg e seus colegas).
Já descobrimos que a preservação do ambiente e a ecologia não brotam, espontaneamente, das pedras da calçada mas continuamos a pensar que a ética cai do céu aos divinos trambolhões.
Claro que a ética não pode viver só de propaganda. Necessita, igualmente, de uma reflexão argumentativa que desenvolva as competências necessárias ao seu, muito difícil, exercício quotidiano. Aliás, a ética, também não pode viver sem uma cultura de competências existenciais e sociais básicas (comunicar, negociar, sublimar, tolerar, etc.) nem sem uma cultura política e social que permita a expressão socialmente vivida da ética. Creio que a promoção deste triângulo (reflexão ética, competências básicas e cultura política) é tão importante como a propaganda de valores éticos, não obstante a necessidade desta.

Não foram só interpretações excessivamente arrogantes sobre o poder da racionalidade, científica ou aparentada, que enfraqueceram a ética. As falências, na prática, de muitos projetos religiosos e ideológicos, criaram uma cínica fobia a tudo que seja idealismo e generosidade. Juntemos, aos fatores de erosão da ética, a incapacidade de se criarem consensos sobre certas expressões políticas de valores éticos, como os valores da liberdade, da solidariedade e da justiça. De facto, não é fácil ficarmos de boas relações com a ética quando estamos sem resposta política convincente sobre a questão do free rider (o “preguiçoso” que conta com os outros para viver) e sobre a questão, conexa, da justiça na repartição do rendimento social, entre as diversas classes profissionais.
Em próximos artigos tentaremos falar de políticas de promoção da ética, bem como dos problemas do free rider e da redistribuição social do rendimento (a questão eticamente mais fraturante do século XX, quanto a mim). Tentaremos, ainda, escrever sobre as dificuldades da propaganda da ética num mundo que hoje vive em ditadura financista e mediática. Creio que podemos afirmar a existência desta ditadura pois não existe governo mundial que possa submeter à democracia o poder financeiro internacional. Sobre a ditadura mediática já se tem escrito bastante neste blogue. Não parece razoável pedir a uma ditadura (com tendência para a propaganda do medo e para o apagamento de teorias alternativas) que faça uma propaganda mais ética. Contudo, não é ao poder que me dirijo mas sim à capacidade dos cidadãos para se erguerem, da qual sempre dependeu o ocaso das ditaduras e o caminho da civilização, segundo me parece.

autor: José Nuno Lacerda Fonseca

i - Bauman, Zygmunt, 2005, Postmodern Ethics, Blackwell, Malden – MA.
 
ii - Como Gianni Vatimo (1980, As Aventuras da Diferença, Edições 70, Lisboa), com o seu conceito de “infinidade da interpretação”, Jean-François Lyotard, com as suas críticas contra a hegemonia de qualquer dogmatismo (1987, O Pós-Moderno Explicado às Crianças, Publicações D. Quixote, Lisboa), defendidas desde o seu livro "Le Différend", de 1983. De notar, além de vários outros, o contributo do pensador da “terceira via”, Anthony Giddens, com a sua reflexão sobre os complexos processos de criação da confiança social (1990, The Consequences of Modernity, Stanford University Press, Stanford, California).
 
iii - B. F. Skinner, 1945, 1976, Walden Two Prentice-Hall, New Jersey. Beyond Freedom and Dignity, 1971, 2002, Hackett, Cambridge.

3 comentários:

  1. "Bauman, na sua síntese sobre a ética pós-moderna , di-lo na mais clara das formas, afirmando que “o fenómeno moral é por inerência um fenómeno não racional”. Já o mesmo tinha sido defendido por vários outros filósofos pós-modernos e muitos outros anteriores, muito pouco aristotélicos, kantianos e espinozianos, como Kierkegaard e Hobbes. Também não devemos esquecer o diabolizado Skinner e as suas teorias do condicionamento do indivíduo, no qual não devemos ver, apenas, creio eu, o malvado e científico patrono da renovação do admirável mundo novo do Huxley." Este texto é excelente(!)...para os seus amigos, seguidores e aduladores, ou para os seus parceiros escribas no pingue-pongue derramante de inteligência e culto. Por mim, seduzido pelo título do artigo, fiquei logo aí decidido a aproveitar o tempo noutras leituras. Mas...não "baixe o nível", mantenha essa eloquência e elevação, para que "qualquer um" absorva e se enriquece com a sua prosa.
    A Ética tem...dias!

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  2. Comentário ao anterior comentário. Essa parte do texto está realmente obscura. Peço desculpa. Contudo, só faz algumas ligações com autores bem conhecidos, para mostrar q a ideia q a ética não se pode fundamentar racionalmente é uma velha ideia. Aliás , não me parece ser o essencial do texto.
    José Nuno Lacerda Fonseca

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  3. Em Portugal, é pouco comum lermos nas palavras que se escrevem e ouvir nas que se dizem referências - directas, indirectas, conscientes ou inconscientes - à regra base da ética: devemos exigir um comportamento aos outros na medida em que nós mesmo o poderemos fazer ou cumprir também.

    Micael Sousa

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