sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Paradoxos da Abundância

OBJETIVOS E ESTRATÉGIAS PRIMAIS

Numa tentativa de iniciar uma síntese sobre as diversas perspetivas teleológicas, antes referidas, pode-se adotar uma perspetiva, escatológica. Esta consiste em considerar três objetivos primais que são as necessidades humanas onde se irão articular e de onde irão derivar todos os outros objetivos existenciais.

Consideram-se os seguintes objetivos primais:
- O desejo de assegurar a sobrevivência, envolvendo alimentação, abrigo, saúde e descanso;
- O desejo relativo a afetividade e sexualidade;
- A estruturação face ao sentimento de receio da morte, apelidável de vetor ôntico.

Outros desejos podem ser entendidos como estratégias que a história dos seres foi criando, para dar resposta a estes objetivos primais. Trata-se dos desejos estratégicos, por exemplo, o desejo de liberdade, o desejo de relacionamento pessoal, o desejo de transcendência, o desejo de aprender, através do conhecer e do sentir, bem patente no desejo de brincar existente nas crianças (desejo de conhecer-sentir). Outros exemplos, de desejos estratégicos, são o desejo de plena forma física, mental e psicológica (plenitude interna), a satisfação do contribuir para o progresso geral, a satisfação do altruísmo ou, como último exemplo, o desejo de pertencer a um grupo identitário de proteção e ajuda mútua (como as famílias e os clãs culturais). Todavia, estes desejos estratégicos, potencialmente capazes de transmitirem ampla satisfação com a sua realização, têm estado em relativa oclusão, devido à dominância exagerada de outros desejos estratégicos, como o desejo de poder social e de alienação que os colonizam e ostracizam.

De facto, ao longo da história, os três objetivos primais, ocasionaram estratégias primais, como o desejo de poder, com realce para o desejo de poder social e poder acumulativo, bem como desejos de alienação, face a frustrações e ansiedades oriundas da luta em torno dos desejos primais.

Estas estratégias primais têm sido, historicamente, a resposta, absolutamente racional e necessária, para proteger o indivíduo contra o fenómeno da escassez, como o espectro da cíclica escassez de bens de sobrevivência, a dificuldade de acesso sexo-afetivo e o choque da consciência da escassez da vida, que é, inevitavelmente, interrompida pela morte e pelo desconhecido que comporta.

Esta visão escatológica pode, aliás, ajudar a explicar o paradoxo da abundância (formulado por Easterlin) que consiste em não se ter encontrado uma relação clara entre riqueza e aumento da felicidade, apesar da investigação sobre este tema, desde 1974. Talvez o essencial seja a abundância existencial, avaliada nos três objetivos primais, segurança básica de sobrevivência, sexo afetividade e estruturação ôntica e não a abundância de mercadorias.

De notar que a acumulação de bens é, quase sempre, um tipo de estratégia de poder social, por exemplo, quando toma a forma de acumulação de dinheiro. De facto, esta permite ter prioridade a bens escassos, em detrimento do acesso dos outros, devido à intercessão, social, de terceiros. Já há muito que estratégias de poder direto, como a imposição pela força física ou acumulação de bens para consumo pessoal, em caso de escassez, são pouco eficientes e significativas.
Fonte da imagem: https://goo.gl/images/KnJNar

PARADOXOS, EXISTENCIAIS, DA ESCASSEZ DE SEGURANÇA SOBREVIVENCIAL

Embora a tecnologia e o conhecimento moderno tenham quase resolvido a escassez sistémica de bens de sobrevivência, nas sociedades mais desenvolvidas, o facto é que uma cultura humana obcecada pelo poder, acumulação, alienação e pela impulsividade (que subsiste na ausência do sucesso das estratégias racionais) continua a criar desorganizações, guerras e conflitos que restabelecem esta escassez. Por esta via, constitui-se um paradoxo, ou contradição, da escassez, constituindo-se como um anacronismo cultural. O significado deste paradoxo existencial de escassez não se resume à falta de bens materiais mas, sobretudo, à insegurança sobre o acesso a esses bens.

Portanto, não deve suscitar um entusiasmo excessivo a tão anunciada superação da escassez, objeto da denominada literatura sobre sociedade pós escassez, já de alguma forma referida por Marx e notória desde Murray Bookchin (1971), até à economia da pós escassez (Robert Chermonas, 1984, Keynes on Post-Scarcity Society) e outros otimismos tecnológicos, mesmo quando referem algumas possíveis adulterações remanescentes (Philip Sadler, 2010, Sustainable Growth in a Post Scarcity Society, Yuval Noah Harari, 2017, Homo Deus, entre outros).

Por outro lado, numa sociedade cada vez mais complexa, como as atuais, poderá ocorrer um receio de instabilidade. Este renova a obsessão das estratégias primevas e um receio do futuro que acabam por reestabelecer a desorganização, o conflito destrutivo e com ele a escassez. De facto, esta complexidade contém uma ameaça latente que abre para o poder destrutivo das tecnologias e dos seus efeitos colaterais, como os ambientais, assim como novas formas de dominação que possam submeter os grupos mais frágeis. Trata-se do paradoxo secundário da escassez existencial, no qual a complexidade que permitiu uma tecnologia de abundância pode acabar por ocasionar escassez, relançando o peso do seu espectro.

Por último, a tecnologia poderá vir a criar novas fontes de desejo, cuja realização será só acessível a elites, recrudescendo, também por esta via do neodesejo, a obsessão pelas estratégias primevas do poder. Trata-se do paradoxo existencial, terciário, da escassez.

Note-se que muitos dos novos desejos modernos de consumo são, apenas, desejo de consumo sumptuário e consumista. Isto é, são uma exibição, perante os outros e perante o próprio, do seu status de poder (T. Veblen - consumo sumptuário, H. Marcuse-sociedade unidimensional, Braudrillard - o sistema dos objetos, Bourdieu – distinção social, bem como, no marxismo, o fetichismo da mercadoria) não constituindo reais neodesejos mas sim desejos exorbitados pela necessidade de exibição.

Quando falham as estratégias racionais passa a imperar este tipo de teatralidade de ilusões, bem como a impulsividade que consiste em programas neurais que reagem a um pequeno conjunto de variáveis-estímulos e se traduzem em respostas primitivas e, frequentemente, agressivas ou auto- destrutivas. Esta impulsividade pode ascender à forma de estilos de gestão e de ideologias políticas, nos seus vetores de procura de bodes expiatórios, imposições e destruições purificadoras.

Mesmo na execução de respostas racionais existe impulsividade remanescente, traduzida no fenómeno fisiológico do stress. Este prepara o indivíduo para respostas de intensidade física apesar de, hoje em dia, a necessidade dessas respostas físicas ser quase nula. Trata-se dum anacronismo (realmente é um paleostress) e de resposta inadequada à especificidade do estímulo que, aliás, ilustra bem o regime anacrónico e atávico de grande parte do que se passa com o desejo de poder e de alienação.

Perante os vários níveis de paradoxos envolvidos, fazendo oscilar entre a superação da escassez e a acentuação dos seus dramas, caberá à sociedade decidir os caminhos que vai realmente trilhar, em atitude diametralmente oposta à atual sagração, cega, do aumento de produção de mercadorias e da sede de poder que lhe está associada.

Em próximos artigos, serão abordadas a escassez sexo-afetiva e ôntica, as vantagens e desvantagens do poder e assimetria social, bem como da distopia ou alienação.
Posteriormente, será exposta reflexão sobre novos sistemas e prioridades, políticas, económicas, culturais e sociais, traduzidas em programas concretos de reforma, alicerçados numa nova teoria da história e em conceitos como liberdade informativa, obscurantismo pletórico, liberdade negocial, eminência do pico escatológico e ética civilista.

autor: José Nuno Lacerda Fonseca

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