quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A Crise Acabou e o que vem depois - O Milagre da Sulândia

Segundo rezam as crónicas, estaremos próximos do momento em que o défice público primário será zero. Duvido algo desta notícia, pois o FMI, ainda há meses, dizia que por cada euro de cortes de despesa a receita descia mais do que um euro. Seria portanto impossível reduzir o défice, nesta conjuntura.
Todavia, consideremos, a possibilidade do cenário de défice público primário nulo. Isto é, só precisaríamos de pedir dinheiro emprestado para pagar o dinheiro que já pedimos antes. Neste cenário, se o Estado não tivesse de pagar juros e amortizações, da dívida pública, não teríamos défice público.
Nessa altura, se o Estado deixar de pagar as dívidas, esse terrível papão de deixarem de, no futuro, nos emprestar já assustaria menos, pois já não precisaríamos desses futuros empréstimos para pagar as futuras despesas correntes e de investimento do Estado português.
Imagino que os rebeldes contra as finanças internacionais já estão a pensar que esse seria o momento ideal para deixarmos de pagar juros e amortizações. Infelizmente, as finanças internacionais somos também nós, todos os que temos poupanças nos bancos e os que precisam que continue a haver investimento (sobram só os mortos). Se os bancos credores adoecerem é natural que as nossas poupanças e rendimentos também fiquem com uma certa indisposição. Os cipriotas que o digam. É inegável que a crise tem sido um bodo para quem está no topo da pirâmide social, o que é inadmissível e deve ser corrigido com uma profunda mudança de regime mas, por agora, que grande gripe sistémica em que estamos metidos!

Todavia esta ideia do “default” (deixar de pagar juros e amortizações dos empréstimos, incluindo PPP´s e quejandos) não é monopólio de rebeldes. Um governo pode decidir entrar em default e só voltar a pagar quando o desemprego baixar para um certo valor, com uma indexação compósita, do pagamento, a outros indicadores, para além do desemprego. Estes indicadores podem conter duas vertentes. Uma delas pode expressar os níveis de efetivo sofrimento dos mais fragilizados e inocentes no processo da dívida. Quanto mais alto estes indicadores mais alto deve ser o default – isto é, maior será o montante que não se paga ou não se paga tão cedo. A outra vertente deve expressar correcções estruturais, como o nível de corrupção (quanto mais baixasse maior poderia ser o default), o grau de participação dos cidadãos no espaço público e de descentralização, etc. Obviamente, tratar-se-ia de um processo com uma vertente de imposição unilateral mas, também, de um modo de obter apoios políticos e solidariedade de outros povos, bem como credibilizar a nossa capacidade de pagamentos e de ser parceiro comercial e político, no futuro. Trata-se, no fundo, de uma renegociação de taxas de juro, prazos e anulamentos, parciais, de dívida, com uma componente heterodoxa (a indexação compósita, com as referidas duas vertentes) e partindo da força da posição de que existe pouca ou nenhuma necessidade de contrairmos novos empréstimos em breve (devido ao referido défice primário ser nulo ou muito baixo). Aliás, este default poderia atingir só certo tipo de credores, como os mais institucionais e políticos. Todavia, muito provavelmente depois de sofrimento inútil, estes vão conceder o perdão da dívida que têm em seu poder, até porque esse dinheiro foi produzido pelo quantitative easing (emissão eletrónica de grandes quantidades de moeda) e nada custou a ninguém.
Será que o default indexado rebentaria com os mercados financeiros e faria a Europa vir bater-nos com pau bondoso de troika? Acho que não e entre a catástrofe do desemprego (e outras desgraças sociais) e a catástrofe da ética (não honrarmos as nossas dívidas mas quanto a deshonrar contratos internos os governos têm sido pródigos contra os mais fracos) e os sismos nas finanças este seria um equilíbrio, salomónico, que talvez deixasse o menino vivo.
Aliás, para conseguirmos honrar integralmente a dívida precisaríamos de começar, já, a crescer perto de 10% ao ano (supondo que aproximadamente 1/3 iria parar aos cofres do Estado) e quanto mais tarde começarmos mais teremos de crescer em cada ano, devido à acumulação de dívida. Por outro lado, mais austeridade vai acabar por diminuir as receitas públicas e não liberta consideráveis montantes para superavit, como se tem visto. Mesmo que, um dia, por milagre, tal venha a acontecer nunca seria de grande magnitude, talvez 1 a 2%/ano e os cortes implicam mais pobreza, mais fome, perda de população jovem e qualificada (saldo negativo de 130.000 habitantes nos últimos anos), menos saúde, mais morte precoce e menos educação (a longo prazo será pior emenda que o soneto). A conjunção destes dois milagres (super crescimento e cortes superavitarios) parece muito improvável (mesmo só um já será difícil), relegando para Oz o pagamento integral da dívida, com um percurso de inferno para os devedores.
 
Mesmo supondo que o crescimento interno possa, por milagre, vir a ser de 1%/ano e virmos a ter 2%/ano de eventual redução da despesa primária, só com um setor exportador capaz de garantir crescimentos do PIB à volta 6 %/ano é que poderíamos pagar a dívida anual. Não esquecendo que se só tivermos uma conjunção destas daqui a 3 ou 4 anos, a dívida seria maior e todos estes números teriam de ser maiores também. Nunca tivemos nada parecido e não parece que a procura internacional hesitante e os países exportadores com mão de obra muito barata nos venham a deixar este espaço, para além do milagre do crescimento interno apesar de imensos cortes.
Temos, então, mais uma ideia salvadora – este default indexado ou melhor este “pagamento compósito” (que não mate nem incapacite o devedor e o deixe vivo para continuar a pagar). Infelizmente e com grande probabilidade, vai fazer companhia a outras ideias do panteão das ideias sebastianistas mesmo se boas, como o abandono do euro, as eurobonds, o quantitative easing maciço (como nos USA), a bi-moeda (defendida por Ventura Leite, embora não a chamando assim), as empresas públicas geridas por “stakeholders”, novos acordos de comércio internacional, taxa tobin, robotização e sociedade de part-time, autonomia energética, reindustrialização, etc.
E podem vir mais ideias, altas nobres e lúcidas e, quem sabe, se realizáveis que nunca encontrarão ouvidos de gente nem verão a luz do sol. O mundo é para quem o conquista e não para quem sonha conquistá-lo, mesmo que tenha razão, parafraseando vencidos doutras vidas.
Tudo isto faz lembrar a história da Sulândia e da Nortelândia, num planeta estranho.
As elites da Sulândia não parecem capazes de conquistar o apoio da Nortelândia para as novas ideias contra a crise, a não ser para as pauladas caridosas dos austerimos (o que, infelizmente, é melhor que nada).
O que as elites da Sulândia deveriam fazer? Deveriam fazer as reformas que assegurassem que desgraças desta dimensão, como o monstro da dívida pública e do engordamento de grupos rentistas e de corruptos, não voltariam a acontecer. Isto é o que a Nortelândia precisa de ouvir, para abrir as torneiras do quantitative easing (para promover crescimento e se fosse em grande dimensão talvez nem fosse preciso o “pagamento compósito”, o que seria bem melhor) e para apoio às outras novas ideias de combate à crise. A Nortelândia quer ouvir como na Sulândia se vão tornar mais precavidos, ter menos corruptos, ser mais seletivos na despesa pública e ficarem mais produtivos no geral (a produtividade da Sulândia é quase metade da dos países mais produtivos). Como é óbvio, estas serão reformas no sistema que governa a Sulândia. Sistema político e sistema cultural de atitudes, no trabalho e na vida pública. Aqui não há, aliás, grande segredo. As democracias do norte têm qualidade porque os cidadãos nelas participam ativamente, em associações, movimentos, decisões locais e várias outras instâncias às quais oferecem várias horas de trabalho por semana, para que a sociedade funcione devidamente e se desenvolva um espírito de equipa e responsabilidade que é muito útil, também, no mundo económico.
“Onde estava você no 25 de Abril da Sulândia” pode dizer-se agora de outra maneira – “Quantas horas você dedicou a atividades cívicas, de gestão dos bens públicos”? A “culpa” não é, afinal, unicamente, das elites sulândesas, dos políticos, dos mercados, dos exploradores, dos corruptos, dos funcionários públicos, dos constitucionalistas, dos banqueiros e de outros dessa laia expiatória – a culpa é tua, a culpa é minha, a culpa é nossa (diria um blogger sulândes). Certo que houve quem se aproveitasse regiamente e uns são bem mais responsáveis que outros. Não perguntes o que o país pode fazer por ti, sulândes – pergunta, também, o que podes fazer pelo país, como disse JFK, no século passado, na nortelândia das américas. Bem sei que há muito a mudar, muita exploração e corrupções diversas, está muita coisa errada mas não é a Nossa Senhora nem o Karl Marx que vão meter a mão na massa (supondo que a Sulândia e Nortelândia terão seres destes). Valha-nos a Nossa Senhora de Fátima que os ponha todos em peregrinação para a responsabilidade cívica. Só mesmo Ela, pois esta Sulândia detesta ideias novas (como provam os inquéritos do Hofstede, um Nortelândes homónimo do conhecido antropólogo da Holanda) porque, no fundo, ainda só gosta de césares e se acomoda nos seus quintais onde simula domésticos e radicais césares. Cultura cesarista, paroquial e individualista, oriunda de 20 séculos de impérios a partir de Roma da Sulândia. Para quando uma crítica das culturas nacionais e respetivo marketing social? Os sulândeses também têm muitos traços excelentes a acentuar, como a criatividade e o humanismo.

Na Sulândia existe uma espécie de Martinho Lutero que se revoltou contra a indulgência do regime (o nosso Martinho foi contra as indulgências dos pecados mas é parecido). O seu movimento político concentrou-se em escrever, nas portas das catedrais e nas paredes, os nomes de pensadores que eram desprezados pelas elites sulândesas. Alguns nomes de seres que fizeram reflexões e estudos inter-culturais, com aplicação aos dilemas sulândia/nortelândia – Weber, Almond, Verba, Unamuno, Antero, Putnam, Hofestede, Peyrefitte, Fukuyama, Inglehart e até o, recente, “Porque falham as Nações”, de Acemoglu e Robinson, apesar de não ser, propriamente, um estudo inter-cultural. Substituí os nomes sulândeses pelos equivalentes no nosso querido planeta, como é óbvio. E mais os homens das novas formas de democracia que poderiam ajudar a Sulândia a queimar algumas etapas e, já agora, a ajudar a Nortelândia que estava a ficar cada vez mais disfuncional - Crosby, Fishkin, Ackof, Dutra Faria, Schweickart, Hannel, Laliberté e Dryzek. E mais uns conceitos, escritos a letras amarelas nos sítios mais estranhos da Sulândia – democracia deliberativa, cognitiva, especializada, eletrónica, referendária, democracia líquida, transparência, vigilância cívica, ética, responsabilidade, participação, empowerment, descentralização, seriedade e planeamento a longo prazo. E ainda, escrevem o seguinte (o que já passou a ser punido com pena de cadeia) – “Suíça” (muitos referendos e decisões diretas, há séculos naquele país nortelandês), “Cromwell” (um César que abandonou o poder depois de o conquistar para a democracia e só voltou a ele em segundas núpcias e após insistência fatal) e “Demoex” (o mais simples, embora tosco, modelo de democracia direta eletrónica, de criação sueca-landesa e então muito usado pelo movimento populista “5 estrelas”). Tenho substituído os nomes sulândeses/nortelândeses pelos equivalentes no nosso planeta, como é óbvio.
Se aborreci com estas filosofias, pretensamente satíricas, peço desculpa mas relembro que a filosofia é uma consequência de estar mal disposto e estar mal disposto é uma consequência de um império sem filosofias.
 
autor: José Nuno Lacerda Fonseca

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