domingo, 2 de dezembro de 2012

Quando a Economia não é pensada para Humanos


Do livro “Pensar, Depressa e Devagar” – obra incrivelmente repleta de conteúdos úteis para iniciar o estudo da economia comportamental e da tomada de decisão -, trago aqui um excerto que pode ser útil para refletir sobre o modo como são construídos os modelos económicos do passado recente e da atualidade. Nessa obra, o psicólogo Daniel Kahneman – vencedor do prémio Nobel da Economia -, relata, entre muitos episódios e estudos de caso, o dia em que um ensaio que lhe chegou, por intermédio de um amigo investigador, ao gabinete. Nele, o economista suíço Bruno frey, que analisava as vertentes psicológicas da teoria económica clássica, dizia: “O Agente da teoria económica é racional, egoísta e as suas preferências não mudam”.


Kahneman continua referindo: mais tarde, uma vez que as pessoas não são completamente egoístas nem totalmente racionais e as suas preferências são tudo menos estáveis, o economista Richard Thaler fez a distinção entre “Econs” e “Humanos”. Ou seja, os economistas clássicos basearam, e alguns ainda continuam a seguir pela mesma trilha, as suas teorias e modelos com base em “Econs” e não em “Humanos”.
Ao contrário dos Econs, os Humanos – as pessoas reais –, por estarem limitados à informação que dispõem num determinado momento e pela sua individual capacidade cognitiva, não são completamente conscientes nem podem tomar sempre a decisão racional, já para não falar da influência das emoções e outras condicionantes na altura da tomada da decisão – como seguramente defenderia António Damásio. Os Humanos também são, por vezes, generosos e, muitas vezes, estão dispostos a contribuir para o grupo a que estão ligados. E, muitas vezes, não fazem a mínima ideia daquilo de que gostarão no ano seguinte ou mesmo amanhã.
Assim, será que podemos confiar em alguns modelos económicos? Será que são pensados e feitos mesmo para pessoas? Claro que considerar indivíduos, verdadeiramente Humanos, nos modelos e previsões económicas tornaria, provavelmente, qualquer tipo de análise demasiado complexa para que em tempo útil se chegasse a uma qualquer conclusão. Obviamente que necessitamos de simplificações, mas simplificar a humanidade nunca deu bons resultados, especialmente quando as grandes decisões políticas dependem disso.

Autor: Micael Sousa

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O anunciado e o realizado - A Função da Mentira Política no contexto Português nos últimos 35 anos – 1ª Parte


Em 139 a.C., num texto de cultura chinesa que procura estabelecer as condições da política eficaz, Liu An, promotor, organizador e principal autor da colectânea "Huainam Zi" - "O Mestre de Huainam"; escreveu que, "num país organizado com sabedoria, os conselheiros que analisam os assuntos obedecem à lei, e as pessoas que são favorecidas com as suas decisões ficam sob vigilância da administração. Os superiores julgam os resultados em função do que foi anunciado, de modo a que os subordinados cumpram as suas obrigações em condições de serem avaliados pela sua capacidade para atingir os objectivos. Não se pode prometer mais do que o que se pode realizar, nem violar as leis com as decisões que são tomadas. É assim que o conjunto dos ministros converge para o Mestre - Soberano; sem nunca usurpar as suas prerrogativas". É uma indicação útil, vinda de tempos antigos, sobre o papel de regulação que está associado à articulação entre o que é anunciado e o que é realizado em política.  É no grau de adequação entre o anunciado e o realizado, que está o factor de avaliação e de disciplina funcional que faz a boa administração e que permite a boa política. É aí que está o critério da estabilidade do poder e onde houver esta adequação do anunciado ao realizado também haverá a convergência, por exercício da responsabilidade própria e por respeito mútuo entre si, das instituições do poder, pois todas ficam obrigadas a realizar o que anunciam. A decisão política pode favorecer alguns grupos  e pessoas, mas estes devem ficar sob vigilância de quem os beneficiou para que se confirme que esse privilégio tem a contrapartida que o justifique – pois só assim a comunidade receberá mais do que entregou com esse privilégio. A avaliação de funcionários e departamentos não depende das fidelidades e das cumplicidades, deverá estar baseada na confirmação do anunciado no realizado (o que hoje tem a designação de “gestão por objectivos”). As leis não podem ser violadas, mas elas não devem prometer mais do que o que se pode realizar, sob pena de entrar no paradoxo em que é a própria lei que estimula, ou torna inevitável, a sua violação. O desvio a estas normas tem como consequência que as instituições do poder se desagregam, cada uma procurando a sua autonomia e impedindo que a função do Mestre – Soberano, seja realizada.

Na Política Portuguesa, onde se encontra um desvio sistemático entre o anunciado e o realizado, nenhum decisor político deveria equacionar uma nova decisão sem reflectir sobre o que provocou esse desvio nas suas decisões anteriores. Se decide sem  ter essa precaução, não será verdadeiramente um decisor político , é um usurpador de um lugar de decisão política, no sentido em que ocupa esse lugar do poder para mera gratificação pessoal ou para favorecer um grupo de interesses, sem obedecer à responsabilidade de quem exerce o poder – porque a responsabilidade política implica a adequação da decisão ao objectivo, a coincidência do anunciado com o concretizado. Quando há usurpação do poder, todo o sistema de administração pública, assim como todas as reivindicações dos múltiplos interesses sociais, serão contaminados por esse mesmo sinal de corrupção, com cada interveniente nas relações políticas a estabelecer as suas posições e as suas exigências na base dos seus interesses exclusivos -  cada um procurando a máxima vantagem no curto prazo, porque não existe uma referenciação de responsabilidade colectiva nem uma perspectiva de sustentabilidade a longo prazo.
Onde nem os responsáveis políticos, nem os comentadores que descrevem e avaliam as suas acções, atenderem à repetição da distância entre o anunciado e o realizado, não haverá nem operacionalidade funcional, nem credibilidade social, para que os dispositivos de regulação democrática tenham eficácia. Onde não há adequação entre o anunciado e o realizado, o recurso à mentira é o dispositivo complementar a que se recorre para ocultar a existência do desvio. A Mentira Política é uma reinterpretação interessada do que foi anunciado e do que foi realizado, com o objectivo de esbater ou ocultar a medida da distância entre o dito e o feito. Assim se espera transformar o inadequado em adequado, (designando-o como globalmente positivo), o que é a condição para poder prolongar a ilusão.
Sendo a Mentira Política um dispositivo que permite ocultar o desvio entre o anunciado e o realizado, ganha especial relevo um dilema conhecido do Gregos Clássicos: como pode um Mentiroso dizer a Verdade?! Para a análise política, a questão pode colocar-se noutros termos – como poderá detectar-se a diferença entre o anunciado e o realizado se quem produz esse desvio Mente para o ocultar, para fazer com o que o realizado e o anunciado pareçam coincidir, ou pareçam vir a coincidir em breve?
A possibilidade da Democracia, como sistema político dotado de dispositivos de regulação, depende  de se poder encontrar uma resposta para esta pergunta. Uma Democracia onde a Mentira fique oculta e, portanto, impune, não poderá ser regulada!    
A Mentira não tem de ser a dissimulação ou a deformação voluntária de um facto ou de uma interpretação. Quando é isso, pode haver a sua denúncia contrafactual ou o reconhecimento, pelo autor da Mentira, de que Mentiu. Pode-se acreditar no Mentiroso quando, ao denunciar a sua Mentira, revela como ela foi construída, (é o processo da reconstituição da falta cometida através da confissão). Mais difícil de esclarecer é o caso em que a Mentira tem a sua origem na impossibilidade, por parte de quem Mente, de aceitar e de reconhecer a verdade da sua Mentira. É uma patologia do comportamento que distorce a avaliação política. Quando alguém Mente porque não pode reconhecer a verdade, isso poderá não ser o efeito da vergonha, da culpa ou de uma intencionalidade perversa, poderá resultar do facto de a Mentira se ter tornado inconsciente. Isto é, foi escondido no inconsciente aquilo que, por tornar a falta indesculpável, se fez desaparecer do nível consciente. A sinceridade consciente de quem Mente, porque reprimiu a Mentira no inconsciente, explica a capacidade de adaptação e de renascimento de muitos protagonistas Políticos Portugueses na última década do século XX e desta primeira década do século XXI.

autor: António José Menezes

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Sobre a participação dos cidadãos e a utilização de tecnologias na democracia

"Voting Technology, Political Responsiveness, and Infant Health: Evidence from Brazil" é o título de um artigo da autoria de Thomas Fujiwara, que demonstra que a introdução do voto electrónico no Brasil – de forma faseada entre 1994 e 2002 – contribuiu para a diminuição dos votos nulos - decorrentes da iliteracia da população -, aumentando o poder de voto dos eleitores mais carenciados e, em consequência disso, para a eleição de candidatos de nível socioeconómico mais baixo; o que acabaria por ter influência na adopção de políticas de protecção social ao nível da saúde pública (nomeadamente ao nível da saúde pré-natal e dos recém-nascidos).

No Brasil, as eleições para as Assembleias Legislativas são feitas através de listas abertas, votando os cidadãos nos candidatos e não nos partidos. A votação, até aí, era feita através do preenchimento de um boletim de voto onde cada cidadão introduzia o nome ou o número de candidato em que pretendiam votar. Este método levava a percentagens elevadas de votos nulos, sobretudo - como se compreende - por parte dos eleitores com menor instrução.
A adopção do voto electrónico – que permite, por exemplo, mostrar uma foto do candidato correspondente ao número introduzido pelo eleitor, e dar-lhe a opção de confirmar ou reverter a introdução feita -, juntamente com uma campanha levada a cabo pelo Governo Federal para ajudar as pessoas a usar o novo método, contribuíram – diz o estudo – para uma redução dos votos nulos e para a eleição de deputados de níveis socioeconómicos mais baixos.
Segundo Fujiwara, estas alterações ao nível dos resultados eleitorais resultaram num maior investimento em matéria de saúde pública, no aumento da proporção de grávidas com acesso a cuidados de saúde pré-natais e à diminuição da prevalência de nascimentos de crianças com peso considerado baixo. A escolha destes três indicadores prendeu-se com três razões: (i) a saúde pública – sobretudo a saúde pré-natal – é um campo político com visibilidade e que os legisladores podem influenciar num curto período de tempo; (ii) as mulheres grávidas carecem mais de apoio médico e beneficiam mais de um acréscimo nesse apoio; (iii) a saúde dos recém-nascidos revela mais rapidamente a melhoria das condições de saúde do que as dos adultos (em que os resultados aparecem ao longo do tempo).
Através deste estudo, Fujiwara demonstrou que, em última instância, a adopção de uma tecnologia que permitiu uma participação mas efectiva da população a nível político, se reflectiu, num espaço de tempo relativamente curto, na melhoria das condições de saúde da população.
Quanto a mim, estão aqui em causa duas ideias:
1. Que as novas tecnologias podem, de facto, ser um aliado importante para efectivação da democracia;
2. Que a participação consciente da população (mesmo que, como neste caso, apenas através do voto) pode, contra muito cepticismo, influenciar as condições de vida dessa mesma população.
Embora os efeitos registados possam ser dependentes do contexto brasileiro – o facto de as votações serem através de lista aberta têm nisso enorme influência -, o estudo demonstra que a eliminação de um obstáculo simples pode ter resultados substanciais nas políticas públicas.
 
autor: Bruno Leal

terça-feira, 23 de outubro de 2012

A crise só se resolve com marketing político europeu

A atual crise resulta de debilidades sistémicas nacionais, internacionais e de modelo de sociedade. Sem prejuízo da absoluta necessidade de equacionar reformas estruturais profundas, temos de ter respostas imediatas a uma situação que não cessa de se degradar. Enquanto na nossa casa é relativamente fácil resolver um problema de excesso de despesa, bastando reduzi-la, já a nível dos países surgem graves problemas adicionais. Temos verificado, agora e na anterior grande depressão, que a diminuição da despesa pública prejudica muito o crescimento económico levando, até, a crescimentos negativos. Mais grave ainda é quando esse golpe no crescimento baixa de tal forma os montantes coletados nos impostos que o défice público aumenta, apesar dos cortes feitos na despesa. A este ciclo vicioso, da espiral depressiva do défice, vem juntar-se a espiral endógena da dívida. Esta segunda consiste no facto dos juros da dívida obrigarem a contrair mais empréstimos para os pagar, numa espiral de acumulação de juros e de dívida, sem fim à vista. 
A solução para estes problemas há muito foi encontrada e consiste em aumentar a massa monetária, de forma a facilitar o investimento e assim estimular o crescimento económico. Este aumento de massa monetária pode ser realizado de duas maneiras. Pode-se “imprimir”mais dinheiro ou pode-se pedir ajuda a terceiros que possam colocar essa massa monetária adicional ao nosso dispor.

No nosso caso, as duas soluções são sinérgicas. Temos de pedir a terceiros para que emitam dinheiro e o coloquem em Portugal. No caso português, esta terceira parte consiste, sobretudo, nos nossos parceiros do norte da Europa. Como o aumento da massa monetária tem alguns riscos de inflação, embora nem sempre, temos de convencer esses terceiros que vale a pena correm esse risco por nós. Claro que também podemos pedir para colocarem essa massa monetária ao nosso dispor, sem emissão de mais moeda, o que significa que os nossos parceiros teriam de poupar mais para nos poderem conceder esse dinheiro. Por razões óbvias esta segunda solução é igualmente difícil de obter. 
Convém dizer que o Banco Central Europeu “inventou” perto de um milhar de biliões de euros, desde 2008, através de um processo de criação de moeda eletrónica (só existe nas contabilidades dos bancos) a que se tem chamado “quantitative easing”. Nos USA, no mesmo período, foi criado perto de 1,5 milhar de biliões de dólares. O FMI também tem criado bastante dinheiro.
Temos portanto de convencer os nossos parceiros que merecemos ser mais ajudados pois o nível presente de ajuda tem-se revelado claramente insuficiente. Precisamos de muito mais dinheiro e sem juros. Esta tarefa não é fácil, pois os nossos parceiros europeus há quase vinte anos que nos estão a oferecer muito dinheiro, sobretudo através dos chamados quadros comunitários de apoio. Quase vinte anos depois, em vez de pagarmos esta generosidade, temos de lhes dizer que ainda precisamos de muito mais do que o costume e muito mais rapidamente do que é habitual. Qual a credibilidade para dizermos que desta vez e que é e que a seguir não vamos pedir ainda mais? A credibilidade é a mesma do que qualquer um de nós concederia a quem nos fizesse pedido idêntico. Após vinte anos de nossa generosa ajuda vinham dizer-nos que a ajuda tinha sido mais ou menos inútil e que iam passar a precisar de dez vezes mais. Provavelmente cada um de nós pensaria que estava perante um caso de vício da droga, em fase muito adiantada, e que a salvação não seria possível e se fosse, remotamente, possível porque é que deveria ser à nossa custa?

Dito isto, temos talvez de considerar que o empréstimo da Troika é generosidade para com os vícios deste país (se a taxa de juro fosse mais razoável não teria dúvida em afirmar esta generosidade), do qual se sabe que fez belas auto-estradas, muitas obras inúteis, albergou salários públicos luxuosos, permite fortunas fabulosas, níveis de corrupção e impunidade notórios, deslizou para maior desigualdade social da União e fez muitas outras coisas que patenteiam um nível elevado de viciação.
Como vamos reconquistar a credibilidade? Certos setores mais à direita estão convencidos que a reconquistamos se baixarmos salários e proteção social e se vendermos (privatizarmos) tudo o que temos. Isto equivale a dizer – ajudem-nos porque já somos outra vez miseráveis pedintes e vocês conseguem ficar com isto tudo por muito pouco dinheiro. Depois disto ser tudo vosso e nós sermos tão miseráveis que até vamos gostar de trabalhar quase de graça, então este país vai recomeçar a avançar e poderá pagar tudo o que vos deve. Finalmente, por via de se ter tornado miserável, este país passaria a ser competitivo. Esta estratégia, de atingir a competitividade e a credibilidade através de nos tornarmos miseráveis, é bastante razoável e poderá ter efeitos. Até porque, enquanto nos tornamos miseráveis, iremos melhorar substancialmente a nossa justiça, a regras da concorrência, a educação e tudo o resto que é característico de países desenvolvidos. Afinal somos super homens de criatividade, sem precisar de dinheiro para melhorar tudo neste país. Super homens de racionalidade e de estoicismo. É uma ideia boa para quem for um génio super estóico. Eu não chego a tal virtude e prefiro outra solução. O marketing do super pedinte assusta-me, apenas porque não sou  super e não quero ser miserável. Fora isso, esta estratégia de marketing é brilhante. Temos, também, de dizer que a miséria é relativa. Se alguém não puder pagar os estudos dos seus filhos sentir-se-á miserável, embora a miséria na Europa nada tenha a ver com a miséria negra que anda grassa por todo o lado. Morrer de fome não é a única forma de ser miserável.

Penso que esta é a estratégia de uma certa direita mas não acredito que seja a estratégia da direita humanista. Não percebi ainda qual é a estratégia de marketing europeu da esquerda. A ideia “que se lixe a troika” não parece um bom marketing para que a troika nos dê credibilidade. Ou será que a ideia da esquerda é dar um pau a cada português e invadir o capitalismo? Esta ideia tem dois problemas. Não temos nem dinheiro para os paus e não sabemos onde fica o capitalismo. Por acaso até tem outro problema. O capitalismo tem tanques e aviões e tem um bocado mais de meios, sobretudo dinheiro, do que aqueles meios que nós temos (os tais paus).
Em alternativa, talvez pudéssemos dizer que as coisas descambaram neste país porque o povo não tinha percebido como podia e devia controlar o sistema político que, afinal, devia gerir bem o país. Coisa bem diferente de dizer que a culpa é dos políticos. Talvez possamos prometer que vamos fazer um sistema político novo e que vamos trabalhar mais para o controlar. Até vamos aprender métodos de trabalho, na política e nas empresas, com o pessoal do norte da Europa. Entretanto vamos prender os corruptos, mais para que não seja para o norte ver que até queremos ser pessoas sérias.

Este marketing da reforma política e das atitudes e métodos de trabalho parece-me melhor que o marketing do super pedinte. Contudo, depende de quem são esses tais países do norte para os quais teremos de fazer este marketing e encetar esta linha de diálogo. Talvez o melhor seja fazer um bocado do marketing do super pedinte (mas o menos possível) e sobretudo fazer o marketing do cidadão arrependido de ter sido preguiçoso para com os seus deveres cívicos e métodos de trabalho. Contudo, este segundo tipo de marketing também tem os seus problemas. Teremos mesmo de fazer uma reforma do sistema político, participar mais ajuizada e intensamente na vida cívica e trabalhar com melhores métodos. Escusado será dizer que temos de fazer isto já e que, coletivamente, ainda não sabemos como se faz, embora alguns de nós tenham a arrogância de ter umas ideias sobre isto. Infelizmente estas ideias têm alguma complexidade e são algo bem diferente de dar chibatada nos políticos ou na cabeça de quem quer que seja.

autor: José Nuno Lacerda Fonseca

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Lutar contra a crise é lutar contra todas as nossas limitações estruturais

 
A atual crise financeira surge imputável à incapacidade regulatória dos governos, nomeadamente nas suas instâncias internacionais, sobre os mercados financeiros, bem como surge devido à imperfeição informativa destes mercados. O enquadramento da crise é, contudo, mais vasto.
De facto, uma globalização, económica, acedendo a grandes reservas de mão-de-obra a valores muito baixos e praticamente sem custos de proteção social (sobretudo na Ásia) pressionou os governos de outros países (com mão-de-obra mais cara e maiores custos de proteção social) para diminuírem as cargas fiscais, o valor do trabalho e outras condições sociais, proliferando a figura dos paraísos fiscais. O equilíbrio entre oferta e procura de capital desequilibrou-se com a entrada, no mercado global, de grandes países tecnologicamente atrasados e com grandes necessidades de investimento. O capital deslocalizou-se na procura de lucros ainda maiores, deixando um rasto de desemprego e falta de liquidez nos países de onde saiu, sem que tal fosse compensado pela produção, no âmbito mundial, de bens a preços muito mais baixos que pudessem ajudar a equilibrar os orçamentos e os consumidores das nações que sofreram a fuga de capitais.

A situação atual é de ausência de equilíbrio entre oferta e procura de capital, originando grandes lucros e baixos salários, bem como recessão nos países mais atingidos por estes movimentos de deslocalização.
Não só o capital se tornou escasso como, também, se tornou “escassa” a energia fóssil face a uma procura crescente, o que veio acentuar as dificuldades de crescimento económico. Claro que sabemos que o custo do petróleo não é determinado pelo mercado mas por oligopólios que conseguem que o barril de petróleo seja vendido a perto de 130 dólares, apesar do seu custo de produção ser de apenas 2 dólares.
Acresce ainda que, devido ao envelhecimento da população e inversão das pirâmides etárias, os custos de proteção social sobem em flecha. A degradação ambiental e climática trouxe, também, custos acrescidos. Infelizmente os governos e as suas instâncias internacionais não só falharam na regulação internacional financeira, como falharam numa regulação internacional fiscal, bem como na regulação dos fluxos de capital e mercadorias no mercado global. Como se tal não bastasse, muitos governos tentaram responder a esta pressão para a degradação do valor do trabalho, fuga de investimento e dificuldades de cobrança fiscal, mediante empréstimos que permitiram, durante algum tempo, manter o crescimento, proteger o valor do trabalho e manter a proteção social. Esse tempo de moratória acabou porque as dívidas assim contraídas assumiram montantes excessivos, ao ponto de se ter perdido a credibilidade face aos credores, cujo nível de racionalidade económica é, contudo, duvidoso.
 

Talvez por tudo isto, a incapacidade europeia, para equilibrar alguns graves efeitos desequilibrantes da globalização, seja muito baixa, não só na sua ausência de contributos decisivos em instâncias de governança e regulação mundial (comercial e financeira) mas, também, na incapacidade para controlar a galopada das cedências fiscais e dos défices financeiros dos Estados periféricos e, ainda, na incapacidade de criar mecanismos de intervenção interna, como um verdadeiro Banco Central Europeu com capacidade para emitir moeda (embora, através da emissão de moeda por meios eletrónicos – “quantitative easing”, o BCE tenha emitido o equivalente a 1 trilião de dólares, em quatro anos). Sem o aumento significativo da massa monetária não se percebe como fugir de uma austeridade necessariamente recessiva. Claro que a emissão de moeda não pode servir como álibi para aumentar o défice público e desprezar a austeridade, infelizmente necessária no curto prazo. Talvez um equilíbrio, entre a emissão de moeda e políticas de austeridade, seja a única resposta, imediata, contra a atual crise económica e financeira, já que a solidariedade europeia, veiculando maiores ajudas financeiras e económicas, dos países com saldo financeiro positivo aos que apresentam défices, não parece viável, de imediato, ao ponto se dar resposta à atual crise. Claro que a resposta imediata à crise atual só será bem sucedida mediante uma série adicional de condições. Muito se tem falado de vários vetores de combate à crise.
 
 
1.1.  A repartição da austeridade por todos (com impostos, acrescidos e possivelmente temporários, sobre as grandes fortunas, grandes salários e grandes pensões de reforma).
1.2.  A renegociação da dívida, com maiores prazos de amortização e juros anuais respetivamente menores mas sem extinção de dívida.
1.3.  A diminuição da massa salarial no setor Estado, sem despedimentos e, nomeadamente, com parte dos salários (sobretudo dos maiores) a serem pagos através de emissão de divida obrigacionista especial (com prazos de resgate e taxas de juro indexadas às taxas de crescimento económico do país).
1.4.  A continuação do esforço de racionalização da despesa do Estado, nomeadamente com renegociação das ppp, cessação da ruinosas operações de outsourcing, verdadeiros planos de reengenharia de processos e reafetação de trabalhadores a novas funções, desenvolvimento de um sistema informático integrado de contabilidade pública analítica e várias outras medidas sobejamente adiadas.
1.5.  Criação de duplas moedas em certos países, para aumentar a massa monetária, minimizando a exportação da inflação. Na ausência de uma política europeia de aumento da massa monetária, os Estados devem emitir dívida obrigacionista sobre uma forma que seja, obrigatoriamente, transacionável no mercado de retalho (por exemplo, títulos com valores nominais pequenos que, na prática, funcionem como papel moeda).
1.6.  A ilegalização dos offshore e luta contra a fuga de capitais, taxando, de forma equilibrada, num regime fiscal nacional todas as empresas e capitais detidos por portugueses, independentemente da sua localização fiscal.
1.7.  Protecionismos alfandegários temporários, nomeadamente com recurso ao marketing social para a preferência por produtos nacionais.

Numa perspetiva de médio a longo prazo outras medidas se devem juntar.
2.1.  A promoção da liquidez num sistema bancário capaz de selecionar, efetivamente, os bons projetos empresariais, o que obriga à especialização da banca, por setores económicos, bem como a criação de um verdadeiro sistema de incubação de empresas e de capital de risco.
2.2.  A cessação das privatizações e o desenvolvimento de um sistema empresarial público, em verdadeiro sistema concorrencial, com recrutamento de gestores efetuado através de métodos de democracia participativa, bem como desenvolvimento de sistemas de “performance related pay”. Num mundo dominado pela economia, um Estado sem braço económico é o mesmo que um leão sem dentes. Por mais que possa rugir e correr, acabará de morrer por inanição, arrastando para a cova o Estado Social, a ética, o equilíbrio social e o desenvolvimento.
2.3.  Políticas de formação e de marketing social dirigidas ao aumento da organização do trabalho e à produtividade, com base nos estudos interculturais, com alteração das atitudes culturais nacionais que nos têm distanciado da produtividade de países com outras matrizes culturais.
2.4.  Reformulação das relações entre empresas e investigação e desenvolvimento, cooperação acrescida entre pme´s no benchmarking, na investigação, no marketing e em vários outros aspetos.
2.5.  Uma verdadeira regulação anti-oligopolista, nacional e internacional. O inimigo do progresso não é o capitalismo (este está naturalmente a transformar-se em socialismo, pois a figura do capitalista está a ser substituída pela figura do gestor, tornando inútil a função do capitalista). O inimigo do progresso é a oligarquia internacional, impedindo a racionalização dos mercados e concentrando cada vez mais poderes, em total egoísmo e desprezo pelo bem estar dos povos.
 

2.6.  Reforma da justiça, educação e saúde, planificação estratégica das redes de transporte de mercadorias e planificação participativa, prospetiva, nacional, setorial e regional, do desenvolvimento a longo prazo, baseado em benchmarking internacional.
2.7.  Política de independência energética, nomeadamente equacionando as energias alternativas, o novo nuclear de fusão e a perfuração petrolífera de grande profundidade.
2.8.  Todas as causas da crise devem ser combatidas. Neste contexto, tão importante quanto o investimento em energias alternativas e no combate ao oligopólio petrolífero, é o investimento na robotização do trabalho, decisivo na resposta aos desequilíbrios do trabalho escravo asiático e à inversão das pirâmides etárias. O investimento na robótica não irá causar desemprego, o investimento nas energias alternativas não irá causar aumento dos custos da energia, o aumento da massa monetária não irá causar inflação, o crescimento do setor público empresarial não irá causar ineficiência. Não é possível neste texto analisar estas recorrentes falácias mas pode-se chamar a atenção para a oportunidade que esta crise oferece ao crescimento de um setor público empresarial na área das energias alternativas e robótica. Um novo setor público empresarial que seja capaz de constituir o passo decisivo no pagamento das dívidas dos Estados, no financiamento do Estado Social e no aumento da capacidade negocial da política governativa face aos oligopólios financeiros internacionais.
 

2.9.  O reforço de mecanismos de controlo europeu das dívidas nacionais, sem o qual não será viável apelar a solidariedade europeia do norte para com o sul. Contudo, o aprofundamento da integração europeia não pode ser apenas um meio dos países do norte controlarem as ineficiências dos governos latinos. Esta integração deve ser entendida como um caminho para efetivos meios mundiais de regulação fiscal, de fluxos comerciais, de capitais e de informação. Efetivamente, não se pode esperar que a austeridade que, de facto, é apenas uma diminuição relativa do valor social do trabalho, venha a resolver a crise, mesmo se acompanhada de corretas medidas de promoção do crescimento económico. É que os países podem encetar uma competição de austeridades. De facto, se a diminuição do valor do trabalho tornar mais competitivos alguns países, poderá haver a tendência de outros responderem implementando, também, desvalorizações do trabalho (isto é, diminuição de salários e de impostos para o Estado Social) de forma a não perderem competitividade. De tudo isto resultará a continuação da espiral da degradação do valor do trabalho e recrudescimento do valor esmagador das grandes concentrações financeiras internacionais. É, pois, imperativa uma governança mundial democrática. Sendo que esta integração mundial implica centralização do poder e seu afastamento dos cidadãos, tal deve ser contrabalançado por novas forma de democracia mais direta e mais informada.
2.10. Política diversificada de promoção da ética, sem a qual nenhuma sociedade é viável. Não se pode esperar que as debilitadas religiões e ideologias atuais continuem a desempenhar o papel central no desenvolvimento de éticas modernas. Devem, contudo, proceder a reformas e atualizações profundas, de forma a constituírem indispensáveis parceiros na promoção da ética e de sociedades menos voltadas para o consumismo e para a procura do poder, como desidrato para a felicidade humana.  
2.11. Por último, a reforma das reformas, sem a qual nenhuma outra terá sucesso. Reforma, global, do sistema político e dos mass media, na perspetiva da democracia participativa, descentralizada, deliberativa, cognitiva e eletrónica. A implementação de todas as medidas antes referidas necessitam de um sistema político mais inteligente e menos permeável a interesses privados, sem o qual não serão viáveis avanços significativos em nenhum campo.
 
Provavelmente as medidas aqui expostas são necessárias e muito mais terá de ser feito. É muito duvidoso que políticas que não recorram a todas as possibilidades e sinergias, erradamente colocando excessivas expetativas num restrito número de medidas, possam vir a ter sucesso. Infelizmente, as políticas de combate à crise têm sido excessivamente unidimensionais e de curto prazo. Sabemos que os oligarcas internacionais estão interessados na continuação, contida, da crise, para que possam comprar o mundo ao desbarato, nomeadamente através das privatizações, descredibilizar ainda mais a política e a democracia, arrastar o trabalho para a escravatura. Temos de escolher de que lado estamos. Esperamos, ainda, algumas ricas benesses com que a oligarquia nos possa seduzir ou estamos a favor dos povos e de uma luta sem quartel, pela liberdade, contra a progressiva ditadura plutocrata. Já não há meio termo, embora a moderação, a cultura e o bom senso devam continuar a ser os principais aliados da liberdade, esta, contudo, não sobreviverá sem grande coragem.
 
 
autor: José Nuno Lacerda Fonseca
 

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O Presente como Sombra, O Futuro como Esperança

1. Houve tempo em que uma posição anti-capitalista explícita era a marca de uma radicalidade de objectivos, quase sempre entrelaçada num extremismo de processos. Isto é, a autenticidade do anti-capitalismo media-se pela decisão de derrubar pela força a ordem vigente, em nome de um programa simples marcado por uma alternatividade clara, mas difusa. O anti-capitalismo também não estava ausente entre os que, apostando nas eleições como alavanca de mudança, não deixavam de inscrever nos seus objectivos a superação do capitalismo através de uma cadeia de políticas públicas que em muitos aspectos não se distanciavam muito do programa dos que seguiam a via anterior. Apenas queriam agir num quadro democrático.
Persistência da Memória - Salvadro Dalí

Muitas destas medidas eram reflexo de uma ambição social igualitária e de uma identificação com as justas aspirações dos que viviam dos frutos do seu trabalho ( e não do fruto dos seus investimentos em capital ou das suas rendas).  Para concorrerem eleitoralmente com eles, os partidos da direita, para melhor protegerem o sistema capitalista e através deles os interesses de todos os que eram beneficiários da desigualdade reinante, foram aprendendo a inscrever na sua agenda algumas medidas próximas das apresentadas pela esquerda, para evitarem derrotas eleitorais sucessivas e excessivas.

O nacionalismo emancipa tório  anti-colonial subsequente à Segunda Guerra Mundial, exprimiu-se através de um novo tipo de protagonistas que praticavam a violência como instrumento principal de libertação , embora nem sempre assumissem um anti-capitalismo radical..

Antes do desmoronamento soviético, a guerra-fria tendeu a reduzir a amplitude das mudanças em cada um dos lados, deixando o imprevisto para uma parte do mundo, aberta á expansão de cada um dos blocos. A transgressão do pacto tácito entre os dois lados não desapareceu mas era rara. A sombra de uma possível guerra nuclear continha os ímpetos, ainda que evidentemente não apagasse por completo os conflitos estruturais existentes. Cada lado tinha os seus centros imperdíveis, os seus vassalos mais distantes e ambos disputavam um vasto terreno de caça a ambos consentida.

 2. Esse mundo bipolar acabou com o desmoronamento soviético e o esmorecimento da guerra fria. O capitalismo pareceu triunfante, apesar da sobrevivência da excepção chinesa. Uma grande excepção que ainda hoje verdadeiramente não se sabe o que significa geoestrategicamente num plano prospectivo.

Mas passadas algumas décadas, mesmo desembaraçado da competição com o colectivismo de estado soviético, o capitalismo não funciona como um precioso relógio capaz de fazer a felicidade dos povos por intermédio da prosperidade dos ricos. Pelo contrário, tornou-se num predador compulsivo, tendo-se conseguido libertar da tutela política dos Estados , objectivamente condicionados, em maior ou menor medida, pelo exercício democrático da vontade dos povos. Vagueia agora como uma cão sem dono, produzindo um conjunto cada vez mais pequeno de ricos cada vez mais ricos, à custa do exacerbar da miséria de multidões de seres humanos, de um relativo  esvaziamento das classes médias e da desqualificação acelerada do trabalho, reduzido à desumana condição de mercadoria. Desgovernado, parece imune à interferência dos poderes democráticos, contaminado por uma sofreguidão do capital financeiro que se tornou num jogo de roleta russa praticado por uma incontrolável pistola apontada á cabeça dos povos.

Por isso, não é realista não ser radicalmente anti-capitalista. O capitalismo é um cancro que corrói a humanidade, não é sensato combatê-lo apenas com chás de cidreira. E isso acontece á escala global e acontece dentro de cada país.

3. Como em todos os grandes combates históricos, não é possível conseguirem-se vitórias sem inteligência, sem persistência, sem sacrifícios e sem uma coragem persistente e incansável, mas não se trata de preparar um golpe de força para tomar o poder num assalto feliz a um palácio de inverno. Não se trata de tomar bruscamente as rédeas  do poder em Lisboa para exercer depois uma acção política  forte e transformadora. Trata-se de pôr toda a sociedade em movimento, especialmente os membros da sociedade que pagam com o cinzento desesperado das suas vidas o preço da sobrevivência do capitalismo. Sem uma cultura popular emancipatória, sem um protagonismo social radicado num território susceptível de contribuir para identidade cívica dos seres humanos, sem uma economia humana suficientemente pós-capitalista para se deixar impregnar pelos valores do socialismo, sem uma clara instrumentalização do capital ( que, no fundo,  é trabalho morto) pelo trabalho vivo dos humanos, o poder do Estado que é indispensável nunca terá a força suficiente para pilotar uma superação do capitalismo sem catástrofe.

Por isso, todas as estratégias que na prática se esgotem no plano da política institucional, por mais brilhantes e certeiras que sejam, objectivamente, são insuficientes e estão condenadas ao fracasso. É preciso jogar em todos os tabuleiros, saber pôr a sociedade em movimento em convergência e através de políticas transformadoras.  Não estamos dispensados de fazer o melhor no plano da política institucional, mas o melhor, apenas num tabuleiro, não é suficiente.

Por isso, me parece mais grave a ausência de intervenção do PS nas áreas que acima referi do que a prática de erros conjunturais ou de tomada de posições pouco convincentes.

4. Sei que é difícil percorrer um caminho tão complexo. Mas não há outro. Para além, de que os explorados e os oprimidos, os excluídos e os desempregados, já perceberam intuitivamente que os vários discursos das várias oposições de esquerda, das oposições cuja identidade essencial é a não identificação com o capitalismo, são palavras que escorrem ao longo da realidade pouco contribuindo para a modificar. Realmente, e para dar apenas um exemplo, é cada dia mais claro que um desemprego como aquele que existe em Portugal, como aquele existe na União Europeia, não se combate satisfatoriamente com simples estratégias de crescimento económico. De facto, mesmo que através apenas delas, o reduzissem a metade do que é hoje isso já seria um  êxito retumbante. E a outra metade, os seres humanos desempregados  que nessa hipótese idílica ficariam de fora ? Esqueciam-se ? Os defensores de capitalismo, não o dizem, mas acham que sim. os socialistas que também assim pensarem só podem dizer-se socialistas por hipocrisia.De facto, a única maneira realista de combater o desemprego é a repartição dos trabalho e dos rendimentos (não a dos rendimentos do trabalho, mas a de todos os rendimentos ), o que é incompatível com o tipo de capitalismo hoje existente, mas pode ser um aspecto do caminho a percorrer como saída do capitalismo, como transição para um pós-capitalismo, democraticamente controlada.
Pode discutir-se a via a seguir , o seu ritmo, as suas características , a distribuição dos sacrifícios que essa metamorfose implica, mas um partido de esquerda , um partido socialista, não pode continuar amarrado á ficção de que bastam alguns pontos de crescimento económico para se atingir uma sociedade digna. Não menosprezo a importância dessas medidas se forem tomadas com a noção de que são apenas um pequeno aliviar de tensões,  que nada valerá se não for completado por outro tipo de medidas verdadeiramente transformadores.


5. Se os militantes do PS, se os militantes de todas as esquerdas, souberem  concentrar-se nestas questões, se conseguirem criar dinâmicas colectivas em torno delas, podemos ter esperança. Se tudo continuar no remanso das rotinas e das previsibilidades, cada um fechado nas suas luzidias razões, incólume ás opiniões diferentes, aristocrata da sua verdade olhada como única, mestre de uma visão da história tecida de anjos e demónios, é realista recearmos o pior.

Enquanto os de baixo e as suas organizações se digladiarem pelas suas diferenças e prezarem mais o que julgam ser a sua verdade do que a saída desta sociedade através de uma metamorfose libertadora, os de cima podem dormir descansados. Mas se os de baixo e as suas organizações aprenderem a pôr, ao serviço de um amplo movimento comum de mudança total, as suas ideias e as sua emoções, mesmo com todos os seus labirintos, os de cima perderão o sono. Os de baixo e as suas organizações não têm que ser o eco de uma só voz, mas têm que ser o colorido de uma única orquestra que nem precisa de ter maestro. Basta que os violinos dêem às trompas o direito de o continuarem a ser; e que estas se habituem ao entrelaçamento com eles.  Sem esperar guias, sem aguardar sinais de partida, é da responsabilidade de todos os de baixo porem-se a caminho já, cada um à sua maneira, mas fazendo também  com que as suas organizações se ponham a caminho.

Se soubermos partir rumo ao futuro, mesmo de sítios diferentes, um dia nos encontraremos numa  corrente histórica. Se esperarmos, pessimistas e desesperados, a oportunidade única de um caminho bem nosso, estacionados num pessimismo certamente esclarecido e rigoroso, apenas poderemos esperar encontrarmo-nos no futuro  coma nossa  própria solidão, dia após dia , ano após ano.

autor: Rui Namorado

terça-feira, 24 de abril de 2012

Um Novo Socialismo Democrático - O modo Interactivo Cívico


Pode dizer-se, de um modo geral e genérico, que o socialismo (ou os vários socialismos conhecidos como tal) terá (ou terão) brotado das sociedades industriais ou industrializadas. Pode dizer-se, como já se referiu aqui no blogue, que, de um modo bastante pragmático, os primeiros projetos socialistas  surgiram pela ação de pensadores e filantropos que tentaram inverter e mudar a realidade das condições de vida dos trabalhadores industriais. Depois desses primeiros testes, posteriormente apelidados de utópicos por outros socialistas – principalmente os defensores do socialismo científico ou marxista -, a “diversidade socialista” foi crescendo em causas e tendências teóricas e ideológicas, algumas radicalmente diferentes. Do século XIX ao XX muitos foram os movimentos que tentaram defender e implementar essa diversidade que foi mutando as tendências da esquerda, ora mais democrática ora mais totalitária, supostamente com o intuito de criar novas sociedades mais equilibradas e justas. Do Socialismo Democrático de Bernstein ao Marxismo de Lenine, houve espaço no início do século XX para vários experimentalismos, nem que fosse apenas na esfera do ideal. Posteriormente, especialmente no pós 2ª Guerra Mundial, foi a época da ascensão de muitos Estados tendencialmente de Socialistas. Emergiram em força, especialmente na Europa, os Estados Providência, de ideologia social-democracia ou do socialismo democrático, tal como os estados comunistas de influência Soviética ou Maoista, com tamnha diversidade por vezes dificulta a classificação. 
Durante os anos 80, toda a Esquerda soçobrou. Os Estados providência começam a ser desmantelados pelas tendências governamentais cada vez mais neoliberais - independentemente de serem governos de direita, centro ou esquerda moderada. A queda do Império Soviético trouxe ainda mais dúvidas quando ao futuro das esquerdas e dos socialismos. 
No Ocidente capitalista repensou-se o socialismo democrático. Nasceu a 3ª Via, teoria defendida por Giddens e, em parte, posta em prática por Blair no Reino Unido. Hoje a 3ª Via é constantemente atacada por muitos socialistas, pois, na prática, tal teoria resultou numa grande indefinição que tornou o socialismo cada vez mais indistinto das tendências do neoliberalismo (principalmente no papel do Estado e do próprio funcionamento da Economia). A solução da 3ª via, para além de ter descaracterizado o socialismo, é de tal forma uma teoria difusa e esguia, onde não se definem verdadeiramente limites de base e orientação, que a sua própria crítica é difícil de ser levada a cabo. No fundo, pode-se dizer que o socialismo democrático ficou, um tanto ou quanto, desmontado, com as suas partes coladas e ligadas pelo contágio avassalador das tendências neoliberais, numa espécie de simbiose entre opostos antagónicos
O curioso na história do socialismo é que foi, quase sempre, construído e liderado por elites, o que pode ser paradoxal tendo em conta o propósito e razão de ser do ideal (ou dos ideias) político (ou políticos) em causa. Apesar das classes menos privilegiadas se terem envolvido diretamente na construção dos vários socialismos, de um modo geral, o poder, mesmo o poder de pensar e definir teorias, foi um processo de poucos e a cargo de elites. No entanto, a tecnologia contemporânea parece estar a abrir algumas portas e a concretizar uma verdadeira mudança de paradigma político-social.
Hoje, em plena era da informação, deu-se o passo para uma distinta “sub-era”. As terminologias tendem a utilizar, ao jeito informático, os sufixos acabados em “ponto e numeral”. Hoje, no momento que se adjetivam muitas coisas como sendo “2.0”, o modo como lidamos e utilizamos as ferramentas de informação, especialmente as informáticas e a Internet, está a mudar a própria era da informação. Hoje o comum dos cidadãos, através de um panóplia imensa de ferramentas da WEB2.0 – pois a Internet chegou também à fase 2.0 -, pode aceder, produzir e interagir com a informação de um modo revolucionário e sem precedentes, com implicações no mundo real e em toda a sociedade. Estas mudanças têm acontecido de modo tão rápido que ainda é difícil, nos dias que correm, compreender verdadeiramente os impactos  que terão nas sociedades modernas a curto e médio prazo.
Então, nesta época contemporânea, de mudanças nas áreas da informação e com sociedades em convulsão, provavelmente as mudanças serão tão transversais que mudarão também muitos outros paradigmas:  políticos, sociais, económicos e etc. Com as novas tecnologias de comunicação e informação emerge também uma nova cidadania,  uma mudança - a meu ver - de oportunidade de renovação para o próprio Socialismo Democrático. 
Teremos então a oportunidades para um Socialismo verdadeiramente Interativo?, logo mais democrático? Não terá sempre o Socialismo Democrático tentado possibilitar um acesso generalizado e livre de informação aos cidadãos, dotando-as de ferramentas onde possam fundamentar as suas opiniões, interagir em grupo e fomentar os movimentos e sinergias necessárias para novas construções sociais e políticas? Não terá sempre sido um objetivo ter um “governo de iguais” respeitando a diversidade e particularidade de cada, em igualdade de oportunidades? Penso que sim! Penso também que a mudança de paradigma pode ser a oportunidade para um novo tipo de socialismo, um ainda por apelidar ou designar. 
Tal como o socialismo, enquanto ideia, brotou principalmente das sociedades industriais e pós-industriais, um novo tipo de socialismo democrático poderá brotar das sociedades da informação ou pós-informação! Neste novo socialismo poderá ser conseguida, através da tenologia, a utopia de uma sociedade verdadeiramente governada, numa aproximação ao ideal de democracia, pelos cidadãos em pé de igualdade. Concretiza-se a possibilidade de uma nova cidadania, longe de ser passiva, irresponsável e desinformada. 

autor: Micael Sousa

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Pensadores anarquistas


Como filosofia política, o anarquismo foi sempre uma doutrina controversa. Alguns dos seus activistas enveredaram por caminhos violentos condenados ao insucesso (embora isso também se explique pelos contextos da época), mas a grande maioria foi gente abnegada e sinceramente devotada à realização de um mundo melhor. Em todo o caso, na linguagem corrente a “anarquia” tomou então o lugar que antes era ocupado pela “república” como situação onde “todos gritam e ninguém se entende”.


A carruagem - Camille Pissarro

Apesar do tempo transcorrido, é ainda hoje instrutivo conhecer-se o fundamental do que escreveram os seus principais pensadores, a partir do início do século XIX.
O inglês Godwin arquitectou mentalmente uma sociedade reformada a partir de uma educação de base científica, em vez da religiosa-tradicional da sua época. O francês Proudhon foi um autodidacta imaginativo e contundente nas suas afirmações, criticando o regime de propriedade vigente e opondo um princípio federativo à organização centralizada do governo e do estado nacional. O alemão Stirner foi um descendente da filosofia hegeliana que evidenciou a singularidade genuína do “eu”, onde seguidamente se apoiaram os individualistas. O russo Bákunine foi apenas um discípulo sofrível da mesma escola mas, sobretudo, revelou-se um revolucionário de indomável energia que disputou com Marx a orientação ideológica do nascente movimento operário, escrevendo páginas veementes de crítica aos apóstolos de “Deus e o Estado”. Temperamentalmente bem diferente, o seu compatriota Kropótkine, de sangue real, foi pagem e jovem oficial do Czar, realizou importantes trabalhos de geografia mas, revoltando-se contra a situação, coube-lhe a prisão, a deportação e o exílio, onde de novo foi condenado pelos seus belos escritos sobre uma visão comunitarista do futuro e pela sua infatigável acção de apoio e incentivo às lutas populares. O também russo Tolstoi configurou nos seus romances e na sua própria vida apaixonada a ideia de um anarquismo místico, cristão, de feição não-violenta. O italiano Malatesta foi a última grande figura do anarquismo militante vinda do século XIX, que se opôs à carnificina da guerra europeia e veio a morrer sofrendo já as agruras do regime autoritário e populista do duce. Benjamin Tucker defendeu a propriedade privada para todos (em vez da sua abolição), bem como os tribunais com jurados, constituindo-se como o mais all-yankee dos libertários de além-Atlântico. E a russa-americana Emma Goldmann teve a enorme virtude de introduzir no pensamento anarquista a questão da emancipação da mulher.      
Já bem dentro do século XX, devem ainda referir-se mais uma dúzia de nomes.
A brasileira Maria Lacerda de Moura associou aqueles apelos pacifistas e feminista à vontade neo-malthusiana de uma procriação desejada e consciente. Na sequência da reivindicação do amor livre por Armand, o também francês Daniel Guérin escreveu algumas obras históricas mas talvez sobretudo tenha ajudado a retirar a homossexualidade do “gheto social e pecaminoso” a que era votada. Oriundo do marxismo, Castoriadis desenvolveu a sua análise sobre a burocracia dos países de socialismo-de-estado e deu outros contributos para uma focagem libertária da actualidade, de base psicanalítica, tal como também o fez Michel Foucault. O americano Paul Goodmann e o inglês Colin Ward rejuvenesceram esta corrente de pensamento nas condições das actuais sociedades urbanas e tecnológicas, com as suas múltiplas novas minorias. Murray Bookchin, americano, não sendo um cientista, foi sobretudo um ideólogo do pensamento ecologista, que tanta relevância atingiu nas últimas décadas. No plano da epistemologia, o americano Paul Fayerabend inovou ao tentar sustentar uma metodologia “anarquista” do conhecimento científico. O igualmente americano Robert Nozick é o autor do conceito de “Estado mínimo”, por isso rotulado de “anarco-capitalista”. E, finalmente, mais do que o filósofo francês Michel Onfray, há quem considere o linguista americano Noam Chomsky como o maior pensador anarquista ainda vivo, o que é bastante discutível, pois tal epíteto nada parece ter a ver com o seu importante contributo para a estrutura do pensamento humano articulado com a linguagem, mas antes com o seu persistente posicionamento político anti-americano.
Em suma, pode dizer-se que estes pensadores estiveram no século XIX essencialmente preocupados com a afirmação de uma cidadania política, e no século XX com a emergência de uma cidadania social.


autor: João Freire

terça-feira, 3 de abril de 2012

Esternocleidomastoideo!

A opinião publicada, rejubilou com a nomeação de Nuno Crato como Ministro da Educação e Ciência, reverenciando a sua pose de cientista independente e de crítico das coisas óbvias. Nada mais falso. A sua ação tem-se pautado por uma meticulosa agenda política de desmantelamento ao sistema público de ensino, numa senda sem precedentes. Porque o espaço é curto observemos, apenas, dois exemplos recentes com que o MEC nos brindou: o regresso aos exames da 4ª classe desfraldado como bandeira do rigor e exigência, mas que mais não é do que uma falácia que entretém a comunicação social descuidada do impacto quase nulo de que esta medida se reveste. Tais exames à saída do 1º ciclo - coisa inexistente em TODOS os países da OCDE - contarão 30% da avaliação das crianças, pelo que só uma prestação muito desastrosa poderá determinar a sua retenção. Assim sendo para que serve a sua implementação e o esforço humano e material na sua concretização ?  Apenas tem explicação no quadro da propaganda mediática e no bafiento preconceito ideológico contra a modernidade "mãe do facilitismo". Crato e a sua gente têm da avaliação das aprendizagens uma visão carcomida pelo tempo, ainda com as imagens das orelhas de burro e das palmatórias,  ou recordatória da célebre cena do exame de medicina de Vasco Santana no filme "Canção de Lisboa", que a todos espantava porque até sabia o que era o músculo esternocleidomastoideo?


Na mesma linha de ataque à escola pública, mandou acelerar o movimento de agregação de escolas e agrupamentos, que criará unidades orgânicas gigantescas (vulgo mega-agrupamentos) que destruirão a relação de proximidade, as ligações escola-comunidade, que farão desaparecer a identidade e a cultura próprias de cada unidade, que abrirão portas à insegurança, a maior indisciplina, há desumanização do ensino, em nome de uma racionalidade de meios ainda não demonstrada. Tudo isto, enquanto permanece intocada e até protegida a estrutura do ensino privado
Por detrás do seu discurso de estilo brando, o Ministro Crato está a revelar-se um dos mais acirrados protagonistas da concretização da agenda política liberal deste governo. Não se sentirá realizado na sua "missão superior" enquanto não fizer o ensino público enveredar por aquilo que diz ser o caminho do "return to basics"
 O impacto vai ser demolidor!

autor: Pedro Melo Biscaia

sexta-feira, 2 de março de 2012

De onde vimos, para onde vamos. Discurso de Jacques Généreux de 2002

De 27 a 29 de Setembro de 2002, por iniciativa de Henri Emmanuelli e Jean Luc Mélenchon, o essencial de duas correntes minoritárias do PS (Francês) esteve reunido para constituir o Clube “Nouveau Monde”.Este extracto foi retirado do discurso de encerramento de Jacques Généreux, Discurso de Argelés, no sábado, 28 de Setembro.

Fonte: http://www.politis.fr/Jacques-Genereux-passe-du-PS-au-PG.html

“A verdadeira divergência entre esquerda e direita não consiste portanto numa listagem diferente de valores, mas numa diferente concepção dos mesmos valores. A liberdade não é mais um valor de direita, do que a justiça seria um valor de esquerda. As duas são valores universais, a propósito dos quais a esquerda e a direita desenvolvem concepções radicalmente opostas.
Refundar a esquerda consiste portanto em sair desta confusão ideológica generalizada.
Trata-se portanto, para nós (socialistas franceses), de explicar:

(a) Que uma sociedade eficaz é aquela que consegue realizar os seus objectivos. E uma sociedade só poderá ser eficaz, se fôr ao mesmo tempo justa.
Que sociedade poderia assumir a injustiça como uma finalidade?
(b) Que uma sociedade justa é aquela que oferece a cada pessoa, uma capacidade igual de escolher a sua vida.

O que se consegue pela igualdade de direitos sociais. Direito ao trabalho, à habitação, à educação, à formação, à saúde.
(c) Que a história e a teoria económica demonstram que a redução das desigualdades e a solidariedade são mais eficazes, no longo prazo, do que a competição generalizada pela sobrevivência ou pela maximização de um nível de  rendimento.
(d) Que a responsabilidade individual supõe uma liberdade igual dos indivíduos e não pode servir de máscara à irresponsabilidade social e ecológica daqueles que, de facto, são mais livres do que os outros.


Sublinhemos de passagem a mascarada filosófica que constitui este empenhamento súbito pela responsabilização de todos aqueles que são os menos livres (os desempregados, os jovens dos bairros da periferia pobres e os seus pais) por forma a deixar subentendido que os pobres são culpados de serem  pobres, e  isso sem se julgar os responsáveis por essa situação, os patrões, que cercam  os assalariados até ao suicídio para economizar as indemnizações por despedimento!
Cabe-nos portanto (a nós socialistas) explicar que uma sociedade pacificada pela igualdade de direitos sociais e pela solidariedade nos garante melhor liberdade e segurança do que uma sociedade minada pela injustiça. Sociedade essa onde os ganhadores da competição geral devem financiar o desenvolvimento de uma repressão sem fim, para se protegerem do rancor dos vencidos.
Assim, falar de valores, é também falar, concretamente, do mundo no qual queremos viver”.

Autor (Tranacrição e Tradução): F. Silva Alves

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Lançamento da moção e petição: PARA UMA DEMOCRACIA FORTE – EMPRESAS DE CIDADANIA E DEMOCRACIA ESPECIALIZADA


Estamos convencidos que o problema matricial das sociedades modernas, com raras exceções, é um baixo nível de responsabilidade social e falta de espírito de grupo que anda a par com assimetrias sociais cada vez maiores, crescente instabilidade e degradação ética. As debilidades da atual situação financeira talvez ajudem a despertar para uma consciencialização do caminho que temos de percorrer. Talvez só a descentralização do poder político possa animar o cidadão para uma maior responsabilidade e intervenção
Os sistemas políticos atuais estão excessivamente governamentalizados e centralizados. A complexidade e opacidade das matérias governamentais é tão grande que o eleitor não consegue avaliar a qualidade das governações, sobretudo nos seus efeitos de longo prazo e devido à interferência de muitas variáveis externas à governação que ninguém sabe muito bem quais são. O cidadão não consegue avaliar, efetivamente, a qualidade das governações e por isso já não há democracia verdadeira mas sim um sistema democrático, empobrecido e fraco, de alternâncias e de marketing, mediatizado e, em grande parte, controlado por elites plutocratas e governamentalistas. Felizmente, o desenvolvimento das tecnologias informáticas e dos conceitos de mini-público (estatisticamente representativo da população) e de democracia especializada tornam viável o que até agora foi um sonho milenar - a democracia fundamentalmente direta, podendo emergir de forma progressiva, polimorfa e humanista mas efetivamente revolucionária.  
Lançámos um manifesto, com propostas para uma democracia mais direta e usando meios eletrónicos e que está associado a uma petição (porque foi a única forma prática que encontramos de recolher as subscrições do manifesto). Coloco o assunto à vossa consideração, na esperança que subscrevam e comentem. Trata-se do manifesto "Para uma Democracia Forte" que se encontra no disponível AQUI.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Para Uma Politica Ambiental Sustentada: o Processo de Co-incineração


Actualmente, a sociedade encontra-se cada vez mais industrializada e desenvolvida tecnologicamente. A actividade humana é por si só, uma actividade poluidora e consequentemente, a indústria é uma fonte de poluição complexa sendo extremamente difícil avaliar as suas implicações, quer para o meio ambiente, quer para a saúde pública.
 A Industria Portuguesa, não é uma excepeção à regra e tal como todos os outros países, produz uma infinidade de resíduos com características próprias e distintas, que por vezes, devido à Politica de Gestão de Resíduos Industriais das empresas, o caminho seguido não é o mais aconselhável.


 A definição de uma forma correcta da composição destas matérias que sofrem ou sofrerão um tratamento, é extremamente difícil, contudo é necessário ter-se consciência que uns resíduos industriais são mais perigosos do que outros.  Em Portugal, ao longo dos últimos 15 anos, arrasta-se a discussão da melhor alternativa para minimizar o problema dos Resíduos Industriais. Este debate interminável, com constantes alterações de políticas pelo caminho, pode dar a entender que todos os resíduos abrangidos nesta categoria não estão a ser tratados, sendo despejados por todo o lado e de qualquer maneira. A realidade, no entanto, é bem mais complexa do que esta simplificação.
 A primeira questão relevante a ser analisada é a própria definição de Resíduos industriais: O que são Resíduos Industriais? Os Resíduos Industriais são resíduos gerados pela actividade industrial e pelas actividades de produção e distribuição de electricidade, gás e água. Estes resíduos são classificados mediante a sua perigosidade, contenham ou não determinadas substâncias nocivas para o ambiente e para a saúde humana. Em Portugal e na União Europeia são as próprias industrias que zelam pelo destino final dos seus resíduos. Portugal dispõe de um Plano Estratégico de Gestão dos Resíduos Industriais (PESGR) e de um Plano Nacional de Prevenção de Resíduos Industriais (PNAPR).
 Na Lista Europeia de Resíduos, existem cerca de quatro centenas de resíduos perigosos, incluindo vários tipos de lamas industriais, solventes, soluções contaminadas, líquidos de laboratórios fotográficos e óleos usados, e apresentam na sua composição, substâncias com elevado risco (imediato, médio ou a longo prazo) de constituir danos graves á saúde humana ou ao ambiente.
 Em Portugal, representam um por cento de todos os resíduos industriais (255 mil toneladas) mas são os que mais preocupações inspiram e mais polémicas alimentam. Este facto, deve-se em parte, à inexistência de um Sistema de Gestão Ambiental adequado para este tipo de resíduos, limitando a prevenção e favorecendo as deposições clandestinas destes produtos em lixeiras a \"céu aberto\" ou descargas nas linhas de água, provocando contaminação do solo e dos recursos hídricos por substâncias perigosas. Exemplo disto, é o caso do mercúrio das pilhas e acumuladores que utilizamos.
 A União Europeia estabelece uma hierarquia de prioridades para os resíduos: \"evitar e reduzir tanto quanto possível a produção; valorizar, através da sua reciclagem ou valorização energética e tratar ou depositar em aterro\".
Considerando todas as condicionantes e dificuldades de resolução deste tipo de resíduos, coloca-se então a questão: O que fazer aos Resíduos Industriais de forma a minimizar os impactes na Saúde e no Ambiente?  
Nas várias estratégias pensadas para analisar e resolver o problema dos Resíduos Industriais Perigosos, nenhuma chegou a ser colocada cabalmente em prática. Entre as inúmeras formas de tratamento para os resíduos perigosos, salienta-se a co-incineração, pelo facto de existirem estudos minuciosos e aprofundados, permitindo ponderar esta estratégia como alternativa ao problema dos resíduos industriais.
 O processo de co-incineração baseia-se no mesmo principio da incineração de resíduos(queima), diferindo no facto das instalações conterem outro tipo de funções. Na industria cimenteira este processo foi desenvolvido no sentido de valorizar e/ou eliminar resíduos industriais no decorrer do seu processo produtivo. Os fornos das cimenteiras serão alimentados com os resíduos industriais conjuntamente com os combustíveis utilizados para a produção do clínquer. 
 A co-incineração dos resíduos industriais perigosos e não perigosos nos fornos das cimenteiras é reconhecido como um processo de valorização energético, visto que permite o aproveitamento do calor da combustão para a produção do cimento e incorporação das cinzas no produto como matéria-prima. O projecto de co-incineração visa a queima nos fornos de cimento de cerca de 100 mil toneladas anuais de resíduos industriais com poder combustível que substituirão parte do carvão utilizado no processo de combustão, serão também utilizados resíduos inorgânicos numa quantidade aproximada de 25 mil toneladas que funcionarão como substitutos de parte da matéria-prima (calcários, argilas, escórias metalúrgicas, cinzas de pirites, escórias de alto forno, etc.). Os argumentos normalmente apontados em seu favor são o facto de a co-incineração nas fábricas de cimento não exigir um grande investimento inicial e acomodar melhor uma politica de redução de resíduos, dado que a indústria cimenteira pode funcionar mesmo se não houver mais resíduos para queimar. É importante lembrar que as cimenteiras já há muitos anos incorporam resíduos industriais não perigosos nos seus fornos, como cinzas das centrais térmicas a carvão.
 Como principais vantagens do processo de co-incineração de resíduos industriais em cimenteiras há a destacar as seguintes: A taxa de destruição dos resíduos pelo processo de co-incineração é superior á das incineradoras. No caso das incineradoras estas devem garantir temperaturas entre os 850 e 1200ºC durante 2 segundos. No caso da co-incineração nos fornos das cimenteiras as temperaturas são superiores 1450ºC atingindo na zona de combustão temperaturas na ordem dos 2000ºC com um tempo de retenção na ordem dos 4 a 6 segundos, assegurando-se desta forma uma elevada taxa de destruição dos resíduos.
 Os fornos das cimenteiras ao utilizar os calcários como matéria-prima principal, têm um ambiente tipicamente alcalino e por isso comportam-se como \"lavadores\" naturais dos gases. Este facto, dispensa o tratamento complementar dos gases e não há produção de efluentes líquidos ou lamas.
 Os fornos das cimenteiras que efectuarão a co-incineração incorporarão também as cinzas da combustão dos resíduos na estrutura do próprio cimento, fixando assim os metais pesados ao produto numa percentagem superior a 99,99 por cento. Deste processo, não resultam quaisquer resíduos, devido á grande taxa de incorporação das cinzas no produto final, ao contrário das incineradoras, onde as poeiras produzidas teriam de ser depositadas em aterro, de acordo com as normas para resíduos perigosos.
 Os fornos das cimenteiras não dependem dos resíduos industriais para o seu funcionamento, uma vez que utilizam combustíveis fosseis para laboração, e a matéria-prima utilizada é proveniente de pedreiras calcárias, pelo que uma redução da produção de resíduos não colocará em causa o funcionamento do sector cimenteiro.
Com a utilização dos resíduos como combustível existe uma diminuição no consumo de combustível primário. Para o tratamento de 1 tonelada de resíduos industriais numa incineradora iria custar cerca de 400 euros enquanto na co-incineração o custo ronda os 150 euros. Este processo permite uma valorização dos resíduos industriais em termos energéticos. Neste ponto de vista teremos uma reutilização de um resíduo que aparentemente poderia funcionar apenas como \"lixo\" e poluente.
Consideram-se desvantagens do processo de co-incineração: Os fornos das cimenteiras não terem uma temperatura constante, terem uma extremidade com temperaturas muito elevadas e a outra com temperaturas mais baixas, o que não garante a formação de gases indesejados como as dioxinas, substâncias classificadas como cancerígenas.
Para as co-incineradoras o limite máximo do valor das emissões é cerca de 3 vezes superior ao máximo admissível para uma unidade de incineração. Pode-se com este processo criar um desincentivo à redução de produção de resíduos uma vez que o processo estará dimensionado para queimar uma percentagem bastante mais elevada do que a que actualmente é produzida. Quando a laboração é interrompida, os filtros deixam de funcionar e os gases escapam-se, praticamente sem tratamento, pela chaminé porque os filtros de manga previstos para as poeiras não têm capacidade para reter gases mais voláteis como o mercúrio.
Não está suficientemente estudada a questão das emissões de metais pesados pelas cimenteiras na sequência da queima de resíduos industriais perigosos, nem a incorporação destas substâncias cancerígenas no cimento. Não se conhece ao certo a composição química dos gases produzidos pela co-incineração, contudo, apenas se sabe que há em maior ou menor percentagem os seguintes elementos: dióxido de enxofre, ácido clorídrico, ácido fluorídrico, óxidos de azoto, monóxido de carbono, mercúrio, cádmio, titânio, arsénico, níquel, selénio, telúrio, antimónio, chumbo, crómio, cobalto, estanho, cobre, manganésio e vanádio.
Finalmente, será a co-incineração a melhor solução para resolver o problema dos Resíduos Industriais?
As soluções que já existem em Portugal estão longe de serem suficientes para minimizar os impactes dos resíduos perigosos que o País produz. Mas mostram que, ao contrário do que o bloqueio da incineração ou da co-incineração possa sugerir, não está tudo completamente parado, mesmo porque o tratamento dos resíduos é um negócio e muitas empresas estão a mover-se nesta área, apresentando alternativas para as indústrias.
Por outro lado, não há nenhuma razão para se dar tanto destaque às polémicas em torno da escolha do método de tratamento dos resíduos perigosos, e dedicar menos tempo aos efeitos dos depósitos sem controlo que já existem há décadas no País. Isto pode soar a requentar assuntos velhos, mas se há situações que realmente representam riscos para a saúde pública são de facto estas, muito mais do que uma cimenteira a co-incineraçar resíduos, onde o controlo ambiental será certamente muito maior.
Portugal tem muitos pontos negros de poluição, parte deles devido á deposição de resíduos perigosos, que com certeza levarão muito tempo até serem limpos, se é que algum dia serão.
Neste contexto, são necessários desincentivos á produção de resíduos, como iniciativas governamentais que incentivem a não produção de resíduos perigosos, a criação de taxas a aplicar a quem produz os resíduos; a aposta em metas claras para se atingir uma redução na produção, aplicando coimas ás empresas que não respeitem essas metas; a não atribuição de certificações a empresas que não possuam uma Politica de Gestão de Resíduos que visem uma redução de produção, reutilização ou reciclagem dos resíduos e a criação de perspectivas aliciantes para as empresas que pretendam melhorar os seus processos produtivos, quer a nível tecnológico, quer a nível de fiabilidade dos processos, por forma a reduzir, a reutilizar ou a reciclar resíduos.

autor: António José Menezes
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