quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

“Trabalho digno”: resposta para a crise

Provavelmente, para muitos, a crise é questão de finanças, défices, dívidas, e perguntarão: que tem o “trabalho digno” a ver com soluções para a crise que nos envolve (no País, na Europa, no Mundo)?
Ora, para a O.I.T. (Organização Internacional do Trabalho) tem. Recentemente um estudo da OIT intitulava-se precisamente  A crise económica e financeira: uma resposta pelo trabalho digno (The financial and economic crisis: a decent work rseponse) e continha propostas que vieram a contribuir para o documento aprovado, em Junho de 2009, pela Conferência Internacional do Trabalho e intitulado Recuperação da crise: um Pacto Global para o Emprego.
Desde 1999 que, sob a orientação persistente do seu Director-Geral, o chileno Juan Somavia, a estratégia de actuação da OIT é comandada pela ideia central de “trabalho digno” ou “trabalho decente” (decent work, como vem nos documentos em inglês) consistindo, sinteticamente, em “promover oportunidades para que as mulheres e os homens tenham um trabalho decente e produtivo, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana…O trabalho digno é o foco em que convergem todos os seus quatro objectivos estratégicos: promoção de direitos no trabalho; emprego; protecção social; e diálogo social” (Relatório do Director-Geral Trabalho Digno, 06/1999). Todo um conjunto de programas no Mundo integram o que se chama a Agenda para o Trabalho Digno. A União Europeia, através da Comissão (2006), comprometeu-se com a promoção do trabalho digno. E o programa do governo português também fala em “promover o trabalho digno, a participação e a negociação colectiva”.

Não é possível desenvolver aqui o conteúdo do conceito de “trabalho digno”, mas a criação de emprego com respeito pelos direitos constantes da legislação de trabalho nacional e internacional e a promoção do diálogo social contribuem para um trabalho decente ou digno, um trabalho em que a pessoa se sinta tratada com respeito e justiça e dispondo de segurança social que a apoie, em situação de necessidade. Em Portugal, hoje, para além do desemprego enorme e em que mais de 40% dos desempregados não têm apoio, duas situações estão longe, em grande medida, de um “trabalho digno”: os precários (mais de 22%) e os trabalhadores cujo salário os mantém na situação de pobreza (serão hoje mais de 12%, que é a percentagem de 2008). Com efeito, será uma situação de “trabalho digno” não saber se se tem trabalho no mês seguinte? Será ter “trabalho digno” o receber um salário que pouco mais é que “ganha-pão”? Antigamente, (mas era antigamente!...em Portugal) o trabalho era apenas “ganha-pão” (literalmente, e hoje em dia à escala mundial ainda o é para metade dos que trabalham e só têm 2 dólares por dia). Mas a expressão “ganha-pão”, aplicada ao trabalho, pode ter – e tem-no desde há muito, e também em Portugal – um significado mais amplo: “ganha-pão” significa “o trabalho de que vivo”. Não se trata apenas de garantir a sobrevivência física. Trata-se de satisfazer a necessidade de ter uma vida digna. Uma vida em que possa haver convivência não só familiar, mas também social – o que é impedido por certos tipos de horário; uma vida em que não se sinta excluído ou diminuído; uma vida em que possa aplicar e desenvolver as competências que adquiriu por instrução, formação, experiência; uma vida em que possa assumir-se como cidadão/cidadã; uma vida em que possa ter um futuro..., o que a precariedade está a impedir, principalmente para tantos e tantos jovens. Não poder viver mais que o momento, não ter horizonte de futuro, isso é o contrário de condições de vida digna.
    Olhando hoje para a forma como grande parte das governações está a reagir à crise, não parece afinal que uma recuperação, tendo o emprego como princípio orientador, esteja no centro das atenções dos responsáveis, (apesar de alguns discursos), quando parecem mais preocupados com os humores dos “mercados” (mercados financeiros). Já alguém disse que “capitalismo não é empreguismo”, mas convém não esquecer que não há economia sem trabalho e que a lógica capitalista não tem que ser a única nem a dominante na economia. Juan Somavia lembrava em declaração de Outubro de 2008 que, segundo a Constituição da OIT (de 1919),  “O Trabalho não é uma mercadoria”. E mais adiante diz “Fazer com que o dinheiro trabalhe para as pessoas exigirá que se coloque o objectivo de pleno e produtivo emprego e Trabalho Digno no coração do desenvolvimento económico e social”.
Haymarket affair - evento que deu origem ao dia internacional do trabalhador
A Doutrina Social da Igreja Católica (DSI) também promove o valor da dignidade do trabalho e o Compêndio da Doutrina Social (ed. Principia, 2005) dá-lhe tanto relevo que toda uma secção do capítulo sobre “O Trabalho Humano” intitula-se mesmo “A Dignidade do Trabalho”. E mesmo quanto à pretendida ligação exclusiva do capital à propriedade dos meios de produção, é interessante constatar que a encíclica “Laborem Exercens” (1981)) de João Paulo II, a propósito do “primado do trabalho” sobre o capital (um princípio da DSI) diz que “…continua a ser inaceitável a posição do capitalismo “rígido”, que defende o direito exclusivo da propriedade privada dos meios de produção, como “dogma” intocável na vida económica. O princípio do respeito do trabalho exige que tal direito seja submetido a uma revisão construtiva, tanto em teoria como na prática.” Na mesma encíclica, referências a propostas respeitantes à “compropriedade dos meios de produção” e a que “o simples facto de os meios de produção passarem para a propriedade do Estado, no sistema colectivista, não significa só por si, certamente, a “socialização” da propriedade” poderiam abrir perspectivas no sentido de democratização económica. Mas, mais ainda, o princípio do primado do trabalho é totalmente o contrário de tentativas de reduzir o direito do trabalho ao nível de um simples contrato de serviço, fora de qualquer enquadramento de relações laborais. Ora, essas tentativas vão a par de pressões para “puxar para baixo” os padrões reguladores do trabalho e segurança social, pressões denunciadas, por exemplo, pelo primeiro ministro grego agora em Davos.

autor: Cláudio Teixeira

4 comentários:

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  2. Este texto é muito rico, envolvendo vários aspectos, desde logo os aspectos organizacionais endógenos (relacionados com o tradicional conceito teórico de Job Satisfaction, recentemente ampliado para Quality of Work. http://en.wikipedia.org/wiki/Quality_of_working_life que penso ser a base conceptual plasmada nas posições da OIT). Depois os aspectos mais sociais e políticos.
    Sobre as estas questões endógenas, o Cláudio apresenta uma concepção mais alargada do que a habitual. Tentando juntar algumas listas do Job Satisfaction com os aspectos apresentados pelo Cláudio e, ainda, com algumas sugestões minhas (algumas inspiradas por vários autores da tradição socialista, nomeadamente os “socialistas utópicos” e Marcuse), ficamos com uma lista bastante vasta de factores de uma vida profissional digna e ética: salário compatível com o desenvolvimento de uma família, justiça na recompensa e no despedimento, colocação de todas as capacidades no trabalho, condições para um trabalho não degradante da esperança de vida, organização racional, dialogante e não arbitrariedade, espírito de equipa a todos os níveis da organização, sustentabilidade/visão de longo prazo para o crescimento e inovação, acesso ao melhor conhecimento, desenvolvimento das capacidades e superação do trabalho rotineiro, possibilidade temporal e material de exercício das responsabilidades cívicas e familiares dos trabalhadores, bem como de actividades de restauro pessoal, qualidade e estética das instalações, urbanidade nas relações humanas, facilidade de acessos e segurança do local e arredores, proximidade de certos serviços.
    Creio que é conveniente dizer que se tratam de direitos e de deveres. Aliás, um direito é sempre um dever, pois quem dele beneficia tem o dever de criar condições para que os outros também dele usufruam.
    Em relação aos aspectos mais políticos e sociais, o Cláudio distingue três aspectos: emprego, protecção social e diálogo social. Considero que em relação ao emprego temos de continuar a lutar pela racionalidade da estrutura económica e não dominância do interesse privado sobe o colectivo, bem como pela erradicação de discriminação baseada na raça, sexo, idade, etc.. Todas situações muito distantes da actual. Já sobre a protecção social parecem-me relevantes as questões do subsídio desemprego, indemnização por despedimento (estamos à beira de mais um retrocesso neste aspecto), apoio informativo na procura de emprego, apoio no desenvolvimento de competências profissionais e pessoais e Estado Social (saúde, educação, segurança, ecologia, rendimento mínimo de reinserção). Está visto que a história está, neste momento, mais vocacionada para o Job empobrecimento do que para o Job enriquecimento, até porque o Estado Social está quase insolvente.

    José Nuno Lacerda Fonseca

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  4. Finalmente chego à questão que neste momento mais me interessa e que é a do diálogo social. Esta questão está dependente da cultura de responsabilidade social e participação cívica que mereceria campanhas de marketing social (há muitos anos que ando a propor estas campanhas e a petição do Micael, sobre a corrupção, também inclui algumas vertentes relacionadas). Claro que mais importante que as campanhas seria a implantação de uma democracia cognitiva, muito mais descentralizada e participativa (já neste blogue temos uma breve exposição deste conceito, no seu primeiro texto). Quanto a mim o republicanismo, baseado em parlamentos eleitos por sufrágio universal, tem os dias contados e só está a prejudicar o avanço da sociedade. Não sei como se chamará o novo regime (cognitivismo parece-me muito feio) mas creio que o republicanismo se encontra numa agonia que nos está a levar a todos para uma crise profunda, tanto quanto o fez a monarquia nos seus últimos anos. Ainda sobre a questão do diálogo social, quero frisar a importância de conseguirmos que a democracia domine a economia e que não seja o contrário, como hoje, infelizmente, acontece com uma clareza absoluta. Resta abordar a questão do poder negocial do capital face ao trabalho. Nesta faceta do diálogo social também estamos muito longe de uma negociação livre. De facto, uma das partes tem enormes reservas financeiras que lhe permitem esperar até que a outra ceda, para já não falar no seu nível de concentração que lhe facilita a negociação nem do conhecimento que tem da desutilidade das duas partes (isto é, sabe qual a recompensa que efectivamente recompensa o esforço e o risco envolvido na actividade profissional de ambas as partes, enquanto que o trabalhador não faz a mínima ideia da taxa de lucro que efectivamente incentiva o capital a continuar a investir). Não há mercado livre sem que o Estado e os sindicatos consigam reequilibrar esta assimetria do poder negocial. Este é um dos grandes paradoxos da liberdade e do mercado.
    Por último, a questão da compropriedade dos meios de produção. Creio que a exposição do Cláudio sobre o conteúdo da encíclica “Laborem Exercens” irá deixar perplexos muitos republicanos. Tanto quanto sei existe uma defesa de um certo comunitarismo de propriedade (peço desculpa se estou enganado pois há muito que nada leio sobre isto). Parece-me que seria muito interessante o Cláudio vir a escrever mais sobre os argumentos e formas deste comunitarismo económico, da DSI.

    José Lacerda Fonseca

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