quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Uma relação paradoxal e de pouca ética: desenrasque e burocracia

  Muitos caracterizam os Estados – incluindo o nosso obviamente - como “gordos e pesados”, referindo que isso - seja lá o que que quiser dizer - influencia negativamente a performance da economia de um país. Se a Administração Pública Portuguesa é pesada, ou não, é (um pouco) relativo, pois tudo depende do que se espera dela. Mas, a tendência, é para ser excessivamente burocrática – presa por grilhões e barreiras fastidiosas -, com restrições à inovação e uso da criatividade para a adaptar aos problemas e desafios que é suposto enfrentar. Quem conhece por dentro os processos - a panóplia de etapas, procedimentos, pontos de decisão, requerimentos, formulários e afins - compreende o porquê de algumas tarefas simples se tornaram incrivelmente morosas, tornando o serviço público por vezes ineficiente e nada célere. No entanto, verdade seja dita, até se percebe o porquê dessas restrições, pois inovar nem sempre é positivo – a história está cheia de exemplos de inovações catastróficas, já para não falar das pequenas inovações que levam ao “desenvolvimento particular à custa do coletivo” tal como a corrupção.

  Parece ser um contrassenso que um povo que é conhecido pelo seu natural “desenrasque” tenha criado um serviço e administração pública tão burocrático. Não seria normal esperar um grande sistema público de desenrasque? Não sei, provavelmente acabamos todos por ser “mais papistas que o papa”, importando modelos desajustados para a nossa realidade cultural e funcional. Se o desenrasque, e até uma certa desorganização, realmente nos está nos “genes” – pelo menos naqueles que nos passam pela educação, formal e informal – o excesso de burocracia pode ter sido a inovação negativa, confundida com o controlo e nível de planeamento que nos fazia falta enquanto povo, nação ou o quer que se lhe queira chamar. Acabamos por usar e abusar da burocracia, criando a ilusão de que assim se teria um melhor serviço público. Curiosamente, se há povo que desconfie dos portugueses somos nós mesmos - os próprios portugueses. Será isso? Será porque nos conhecemos bem, ou porque desenrascando preferimos desconfiar cegamente ao invés de construir uma confiança responsável? Chega de especulações, pelo menos tão insustentáveis.
  Então, e que dizer das aplicações nacionais dos Sistemas de Gestão de Qualidade (SGQ) – segundo a norma internacional ISO 9001 – tão na moda no sector privado? Apesar desse tipo de sistemas obrigar uma certa burocracia, a tendência é complicar muito mais os processos do que seria necessário. Então se a burocracia é tão criticada no sector público porque é replicada quando se implementa um SGQ numa empresa privada? A razão será a mesma da do sector público, interessa a “bandeira” mais do que os fins e princípios em si: entramos então no campo da ética e da real compreensão e objetivos do que se cria e implemente.
  Será que a tendência para a burocracia e redundância é mesmo genética? Duvido mesmo muito! A resposta talvez seja: nunca nos ensinaram a pensar de modo organizado, nem a escola nem a própria sociedade que nos criou e ajudamos continuamente a criar. Antigamente, lá para o Estado Novo, ensinava-se decorando, agora ensina-se tentando dar aos jovens o máximo de autonomia possível, o que pode contribuir para alguns individualismos nada benéficos. Provavelmente falta aqui um meio-termo, onde nos possamos organizar, partindo do conhecimento acumulado para a capacidade de quebrar alguns grilhões e barreiras que impedem um novo tipo de organização. Provavelmente é mesmo uma questão de ética, esse será mesmo o nosso maior défice ou deficit – jargão da moda em puro “economês”. Mais do que criar e conhecer as regras, há que compreende-las, de modo a poder melhora-las e substituindo-as por outras mais eficientes e eficazes sempre que necessário; abolir umas quantas quando forem redundantes e desnecessárias ou criar novas quando apenas a simples ética individual e coletiva não for suficiente para a regulação, pois estamos longe de sermos sempre racionais. No fundo, a própria ética gera ética, até porque a ética não é uma obra acabada - ela vai-se construindo -, basta é ter consciência da sua existência e todo o potencial que acarreta e dela pode advir.
  Não será o excesso de burocracia simplesmente umas quantas barreiras desnecessárias quando a ética de facto existe? Sendo isto transversal a toda a sociedade, todos os seus membros e atividades, mais do que ensinar doses massivas de conhecimentos, temos de ensinar à nossa juventude a mais-valia que é a ética nas suas vidas, públicas e privadas. Talvez assim os cidadãos portugueses do futuro evitem as pequenas e grandes burocracias redundantes nas suas vidas, aquelas que os impedirão de progredir sustentavelmente rumo a uma sociedade consciente.

autor: Micael Sousa

domingo, 4 de dezembro de 2011

A velha Teoria Crítica e a Nova Acampada

A teoria crítica reflete sobre os sistemas sociais e culturais, tentando perceber os mecanismos de dominação, alienação e distorsão da realidade (sobretudo no campo da cultura) que favorecem a manutenção de qualquer forma de poder e subjugação. A crítica a mensagens e conceções distorcidas que são transmitidas na cultura e nos mídia, constitui um dos principais objetivos da teoria crítica.
A teoria crítica tem vivido dos trabalhos de Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, e, mais recentemente, de Jürgen Habermas.
Como antecedentes destes autores (que constituíram a “escola da frankfurt”, pois os três primeiros fundaram o Instituto de Investigação Social de Frankfurt) podemos considerar a sociologia não positivista de Max Weber e Georg Simmel, bem como as teorias marxistas de Georg Lukács e Antonio Gramsci, sobre a cultura e a importância da luta cultural e do esclarecimento.

No seu livro, “O Homem Unidimensional”, Marcuse escreveu que as pessoas identificam-se com o que possuem; encontram a sua alma no seu automóvel e aparelhagem doméstica. Com este “consumismo” ter-se-á chegado ao cúmulo da alienação, pois o homem já não é capaz de refletir sobre os seus objetivos e, muito menos, sobre os objetivos da sociedade. Na minha perspetiva, já não se trata, apenas, de não ter conhecimento da realidade, trata-se, também, de nem sequer querer ter conhecimento de si mesmo nem dos mecanismos sociais. A aniquilação da vontade de conhecer, o homem e a sociedade, na sua globalidade, constitui o supra-sumo da alienação.
Marcuse foi muito criticado por ter defendido a violência da luta de classes como única forma de destruir os processos alienatórios e distorcidos com os quais o poder económico dominaria a cultura e subjugaria os homens, pela ignorância e doutrinamento. Esta luta de libertação não caberia aos trabalhadores, inevitavelmente alienados pelo sistema cultural e mediático mas sim a certos grupos sociais, minoritários, como estudantes e artistas.
Foi um dos arautos da flexibilidade dos costumes sexuais, nos anos 60, tentando conjugar Marx e Freud, ao considerar que muita da infelicidade e violência social advém de frustrações libidinosas. Marcuse defendeu, também, novos processos de trabalho produtivo que libertassem a criatividade do homem, como única forma, através de um trabalho económico criativo, de realização pessoal e libertação da dominação.

No seu último trabalho (A Dimensão Estética), de 1979, Marcuse apresentou o papel da arte no processo de emancipação dos seres humanos.
A teoria crítica influenciou muito os trabalhos do grupo da Internacional Situacionista, contando com Guy Debord e Raoul Vaneigem, autores importantes para as revoltas do Maio de 68, em França.


Por seu lado, Marcuse, influenciou, nos U.S.A., o aparecimento do movimento chamado então “Nova Esquerda”, também nos anos 60 e 70, inicialmente restrito a estudantes universitários na Students for a Democratic Society. Este movimento, sem nunca ter desenvolvido uma organização tradicional, advogou a democracia participativa e protestou contra a guerra no Vietname.

Atualmente o trabalho da teoria crítica tem sido desenvolvido por Jurgen Habermas. Os seus conceitos mais conhecidos são os de Racionalidade Comunicativa e Esfera Pública. A Racionalidade Comunicativa é aquela que é possibilitada, por qualquer linguagem, num debate em que nenhum dos participantes esteja limitado por coação e todos estejam apostados em produzir a melhor proposta e os melhores argumentos. A Esfera Pública é o local onde se exerce esta racionalidade comunicativa (distinto da esfera privada e da esfera do Estado). Com estes conceitos Habermas pretende legitimar propostas e ideias que estejam fora do alcance das ciências, valorizando a democracia participativa e o debate, livre de coações e de jogos de força. A posição de Habermas acaba por ser uma crítica à forma dominante de produção de propostas e intervenções políticas, manipuladas pelos mídia e sem participação dos interessados.
Surgindo, agora, em diversos países do sul da Europa, mais atingidos pela crise financeira, movimentos que propõem uma democracia verdadeira, mais participativa, devemos perguntar quais são as ideias novas que trazem que já não estivessem presentes na Nova Esquerda e no Maio de 68. Talvez seja preciso algo mais, pois esses anteriores movimentos da “esfera pública” pouco deixaram na transformação das seculares democracias parlamentares, há tanto tempo incapazes de governar devidamente as complexas e globalizadas sociedades modernas, como está à vista.  

Centenas de experiências de democracia participativa e outros tantos estudos, artigos e livros decorreram desde os anos 60. Recomendo The Deliberative Democracy Handbook, editado por John Gastil e Peter Levine; Democratic Innovations, Graham Smith – ambos descrevendo várias destas experiências. Para abordagens teóricas: Information. Participation and Choice, editado por Bernard Grofman; Information and Democratic Processes, editado por Ferejohn e Kuklinski; Deliberative Democracy, editado por Bohmam e Rehg; Deliberative Democracy and Beyond, John Dryzek; The Principles of Representative Government, Bernard Manin. Acho também interessantes os livros de Maria Eduarda Gonçalves, sobre ciência e participação e Boaventura Sousa Santos, sobre democracia fiscal e orçamento participativo. Paul Hirst é um inovador, com o seu conceito de democracia associativa, James Fishkin é um inovador com o seu conceito de sondagem deliberativa, Russel Ackoff com a sua ideia da empresa democrática. Os grandes pensadores da evolução da democracia que são Held e Bobbio refletem bastante sobre o tema. A teoria dos jogos e os estudos da escola da public choice também apresentam implicações. O iniciador de toda esta visão alternativa sobre informação, participação e democracia é Anthony Downs. Também existem alguns estudos meus publicados na revista Sociologia – Problemas e Práticas e na revista Economia Global e Gestão.

Baseado nalgum conhecimento que tenho sobre este mundo da democracia participativa, acredito que só fóruns de debate, permanentes e muito especializados tematicamente, podem elaborar propostas suficientemente arrojadas e consistentemente realistas. Claro que terão de existir fóruns de coordenação inter-fóruns, sendo que a ideologia (visão global e reformista do mundo) terá de voltar a ter um papel determinante. Acredito que esses fóruns devem estar organizados, internamente, de forma que não haja prevalência de nenhum grupo de interesses. Creio que a internet e as redes sociais constituem a “esfera pública” que assegurará a continuidade e persistência necessárias para o sucesso destes fóruns. Parece-me, ainda, que a recolha, sistematização e disponibilização da informação, relevante para as decisões dos fóruns, constitui uma primeira fase, necessária nestes fóruns. Creio, por último, que devem estar continuamente abertos a todos os cidadãos mas que o voto deve ser ponderado, de forma a equilibrar os grupos de interesses e em função do conhecimento que cada cidadão detém sobre a matéria (devendo este conhecimento ser, facilmente, acessível a todos).

Este tipo de democracia direta exige um novo paradigma representativo. Repare-se que nenhum cidadão se poderá dedicar senão a uma minoria de temas, de entre os vários que interessam para a governação. Não se poder ser especialista em tudo. Terá de confiar que os outros cidadãos serão capazes de um bom governo nos vários outros temas. Esta confiança encontrar-se-á amparada no direito que terá de passar a participar em qualquer tema que ache que esteja a ser mal governado pelos outros cidadãos. 


Trata-se de percorrer um longo caminho, de uma progressão difícil, política e tecnicamente, desde o parlamentarismo até à auto-governação e à democracia cognitiva. Note-se que em Portugal, para além de várias experiências de orçamento participativo, temos um dos mais avançados sistemas de gestão das escolas secundárias no âmbito da democracia participativa. O sistema político atual contém vários actores e políticos que há muito lutam, de forma até agora muito isolada, por profundas mudanças, precisando de forte apoio externo a favor da mudança verdadeira.
Obviamente que esta revolução paradigmática terá de ser sinérgica com várias outras, para poder mudar os paradigmas civilizacionais do capitalismo, da democracia, da anomia ética e da alienada cultura de massas.

Temos sincera expetativa que os movimentos contestatários de rua, partidariamente desalinhados, que surgiram nas cidades europeias por altura da crise atual, possam absorver conhecimentos da longa tradição da cultura reformista, liberal e socialista, entre várias outras tradições e novas experiências, sem o que arriscam a não ser mais do que um corpo agitador, apenas promovendo novas estrelas mediáticas e conquistando vitórias pontuais mas sem espírito e sem efetiva influência na história.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Quem deve, teme!!!

Até 2009 pouco se falava de dívida soberana. Existia como sempre existiu, mas era um daqueles dados macroeconómicos que só interessava a especialistas, e provavelmente o comum dos mortais nem sabia o que quer dizer. Os cidadãos tinham as suas dívidas pessoais com que se preocupar - o que já não era pouco, uma vez que aumentavam constantemente. Mas enquanto os bancos as suportassem e até apoiassem, ia-se vivendo. Agora, o drama da dívida soberana. A nossa e a dos outros, uma vez que com a globalização está tudo interligado. A incapacidade de pagar a nossa. E a incapacidade da Europa nos ajudar a pagá-la. A discussão se se deve ou não fazê-lo – afinal de contas fomos nós que a criámos.


Outro facto que não é novo mas que também só agora nos caiu a ficha é que a dívida dos outros afecta a nossa. Se a Grécia falir, as nossas hipóteses de falir aumentam exponencialmente. E então, se a coisa chega à Espanha...
Então e os Estados Unidos? Esta semana foi a dívida americana que esteve na berlinda. Sim, porque eles também devem. E como! Neste momento estão a dever ao mundo – isto é, à China – nada mais nada menos do que 1,2 triliões de dólares. Depois de uma disputa entre o Presidente e a oposição que faz lembrar as nossas disputas politicas – isto é, em que os interesses partidários estiveram acima do interesse nacional - o tecto da dívida soberana americana foi fixado em 2,4 triliões. Mas espera aí; o que são 2,4 triliões? Um trilião é um valor com 12 zeros: qualquer coisa como isto - 1.000.000.000.000! O que é que a dívida americana nos pode interessar? É muito simples: se os americanos não puderem pagar a sua dívida, ou pelo menos amortiza-la regularmente, toda a economia mundial sofre, até chegar a nós aqui neste cantinho á beira-mar plantado.
O que podemos fazer? Nada. Somos todos responsáveis, cada um na sua infinita insignificância. Basicamente, responsáveis por consumir de mais. Quem é que resiste a um iPhone? O iPhone é feito na China, porque só com os salários de miséria pagos na China é que é possível um iPhone chegar ao consumidor final (português ou americano) por 500 euros. Quem diz um iPhone diz um berloque de plástico ou um guindaste industrial. Com poucas excepções, tudo o que adquirimos de duráveis e muitos dos consumíveis é fabricado na China. Como não temos dinheiro para pagar, a China tem financiado o nosso consumo: empresta-nos o dinheiro para comprarmos os produtos deles ao preço da uva mijona. A nossa única safa é que têm de continuar a dar-nos crédito para nós podermos continuar a comprar – senão a economia deles desaba. São preocupações de mais para uma pessoa singular, cujo universo monetário não passa os três, quatro zeros.
Já não bastava sentirmos o peso da hipoteca da casa e da dívida das férias do ano passado; não chegava termos de sofrer com a dívida nacional, que tem entre seis e nove zeros; não, não era suficiente. Agora temos de ficar acordados por causa de uma dívida com 12 zeros!

autor: António José Menezes

Nota: texto datado de Agosto de 2011, a propósito dás dívidas soberadas, e da novidade da dívida dos EUA

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Limitações Públicas Vs. Liberdade Privadas

É do senso comum dizer-se “no privado trabalha-se melhor que na função pública” e que “o sector privado e mais eficiente”. Mas será verdade? Admitindo que é, não será importante refletir sobre isso, sobre quais as razões que podem originar posições desiguais?
Exemplo da opinião depreciativa generalizada face aos funcionários públicos

Pessoalmente não diria que o privado – só pelo facto de o ser e pela sua essência - é mais eficiente e produtivo que o sector público, diria somente que o sector privado tem muito mais liberdade e incentivos a ser mais produtivo e eficiente que o seu congénere – se é que isso se pode dizer deste modo – público. Se no sector privado existe mais liberdade e possibilidade de incentivar a produtividade dos funcionários (com prémios de produção, horas extra devidamente remuneradas, elogiar dos funcionários por chefias ou outros métodos de reconhecimento entre colegas, da progressão na carreira pela próprio percurso meritório do funcionário, etc.) essas mesmas opções para o sector público estão muitas vezes vedadas. Como poderemos motivar e incentivar ao aumento da produtividade dos funcionários públicos se impedimos que o sector tenha ferramentas para a concretizar? Poderão dizer que existe o SIADAP e que as avaliações de desempenho servem para isso mesmo, mas com carreiras congeladas e com limitações no tipo de avaliações que meios existem na prática para destacar o mérito?
Algo que pouco ajuda também à dignificação da função pública e melhoria do serviço prestado é a opinião pública das populações. Muitos cidadãos, desconhecendo as limitações a que são submetidos os funcionários públicos, e restrições que impedem os melhores de se destacarem, catalogam e rotulam os funcionários públicos todos por igual – tomando o particular pelo todo tendencialmente pela negativa - de serem incapazes e improdutivos. Terá alguém – funcionário público ou privado - a resiliência e capacidade mental de aguentar entraves ao desvendar dos seus méritos e os preconceitos e juízos de valor alheios em simultâneo? Terá o funcionário público a opção de ser melhor do que aquilo que dele fazem? Mas nem todos os cidadãos são injustos nos seus juízos de valor e muitos reconhecem em determinados funcionários públicos grande capacidade de trabalho, mas referem-se a esses casos quase sempre como casos pontuais e não o contrário. Provavelmente, para além do SIADAP, seria interessante poderem ser os próprios cidadãos, munidos de dados fidedignos e adequados, a fazerem ou contribuírem com uma parte da avaliação dos funcionários públicos. Seria um caso a estudar e até um ponto de ligação com uma cidadania mais activa.
Por outro lado, que dizer das burocracias impostas aprovadas por decretos, regulamentos e leis? Aquilo que é célere numa empresa pode torna-se um infindável e moroso processo no sector público. Por mais boa vontade que os funcionários públicos tenham, muitas vezes, para serem eficientes e competentes nas suas funções – naquilo que têm de fazer enquanto burocratas - são obrigados a procedimentos que os desmoralizam. Ninguém gosta de servir mal quando pode servir bem, e ninguém, igualmente ou ainda em maior grau, gosta de ser mal servido quando sabe que pode ser tratado de modo diferente.
Assim, sempre que quisermos pelo menos tentar comparar a eficiência e eficácia entre sector privado e público, teremos de atender, sem ideias pré concebidos e juízos de valor infundados, que em muitos casos os dois sectores são incomparáveis por não se regerem pelas mesmas regras e por não terem as mesmas oportunidades e liberdade de trabalho.

Pensando numa solução de âmbito geral, tendo em conta a ideologia em que assenta o socialismo democrático, os funcionários públicos, tal como todos os funcionário, deveriam ter as condições mínimas para exerceram as suas funções, mas nunca limitações que os impeçam de produzir mais e melhor, pois perdem eles, perde o serviço e a comunidade que não tem a qualidade de serviço que poderia ter.

autor: Micael Sousa

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O ataque ao Estado Social


A ideia retratada nesta imagem, apesar de se reportar à realidade norte-americana – e às visões opostas de democratas e republicanos –, não deixa de estar também bastante próxima do que acontece actualmente em Portugal e na Europa.
Nos últimos tempos têm-se ouvido várias vozes – seja de políticos mais à direita, seja dos economistas e pseudo-economistas neoliberais que preenchem a comunicação social – que culpam o Estado Social pelo estado das contas públicas e pelas dificuldades de equilíbrio no orçamento nacional.
É isso que nos dizem. É essa a motivação para cortar no Estado Social. É essa a desculpa que usam para defender privatizações de empresas públicas em sectores essenciais e em que não há concorrência.
Não interessa se há outras soluções. Na realidade, nem se ouvem outras soluções, porque o «tempo de antena» para quem as tem é escasso, e reservado para os habituais «fazedores» de opiniões, que apontam para um caminho: a redução do papel do Estado na sociedade, cortando em serviços sociais. Resumindo, o ataque ao Estado Social. E é nessa a direcção que seguem as estratégias políticas traçadas para o nosso país.
Tudo isto sob o pretexto de que vivemos uma grande crise financeira, que a sua causa é o défice público, e que um dos grandes culpados é o perfil de providência do Estado. Esta perspectiva é gravosa de diversas formas e por diversas razões, que agruparei em três grandes níveis: no contexto, na natureza e no alcance.

Porquê no contexto?
Porque Portugal vive outras crises para além da financeira. Esta é recente e, apesar da necessidade que temos de a resolver, resulta de outras crises e de outros problemas mais antigos. Se os esquecermos e não os resolvermos, o mais certo será daqui a uns anos, dada uma nova conjuntura negativa, vermo-nos novamente a braços como uma crise como a actual.
Tal como refere Boaventura de Sousa Santos (2011), no seu livro “Portugal: Ensaio Contra a Autoflagelação”, Portugal vive uma crise financeira de curto-prazo – a urgência do financiamento do Estado –, uma crise económica de médio prazo – a falta de competitividade da nossa economia – devido à especialização da nossa produção(1)  e à nossa integração numa moeda demasiado forte –, e uma crise político-cultural de longo prazo – decorrente do défice na qualidade e competência das nossas «elites» políticas, sociais, económicas, empresariais. E, citando-o, “enquanto as urgências de curto prazo nos soarem aos ouvidos como sirenes, não vai ser possível reflectir sobre as exigências de médio e longo prazo que são feitas ao país para deixar de viver de tropeço em tropeço, de abismo em abismo“(2).

Porquê na natureza?
Porque o problema real não é bem o que nos fazer crer que é. Em primeiro lugar, porque uma boa parte da nossa situação actual resulta da existência de uma grande dívida externa que é sobretudo privada e pertencente aos bancos nacionais – quase metade –, enquanto menos de um quarto é dívida pública(3) . Esta dívida foi crescendo sobretudo devido às baixas taxas de juro que a integração na Zona Euro nos garantiu, que se reflectiu numa facilidade de acesso ao crédito pela qual os portugueses – particulares e empresas – se deixaram deslumbrar, continuamente incentivados por uma banca cujo discernimento não raras vezes é toldado pela ganância.
Por outro lado, porque a nossa situação se deve a uma conjugação de factores que incluem a socialização da dívida dos bancos(4)  (através da nacionalização e da injecção ou disponibilização de capital); as ondas de choque da crise financeira mundial que começou em 2007 ou do choque petrolífero de 2008; a rigidez imposta pela União Europeia aos seus países membros (quer pela definição de níveis máximos, aparentemente arbitrários, para défice e dívida públicos, que pela impossibilidade de financiamento dos Estados através do seu banco central); uma União Europeia pouco unida, com uma moeda e mercados únicos, mas com visões estratégicas e interesses diferentes; a natureza pouco racional dos mercados financeiros (muito ao contrário do que é aceite como dogma pelas teorias capitalistas); e também por uma estratégia política nacional que acabou por se revelar não ter sido a melhor no que toca à gestão da situação nacional.
Por fim, porque mesmo esquecendo todos os factores anteriormente mencionados, e assumindo que os nossos únicos problemas são a dívida pública e o défice nas contas do Estado, não se pode afirmar que a sua causa seja a despesa pública. Em primeiro lugar, é preciso ter presente na análise, a dinâmica da receita, quando se analisa o défice estatal. Em segundo lugar, mesmo que a dívida pública tivesse aumentado devido às despesas públicas, não é garantido que uma redução das despesas contribua para a diminuição da dívida – a evolução da dívida depende de vários factores e se, nomeadamente, o crescimento da economia for inferior ao da taxa de juro, o resultado será um crescimento da dívida (por via dos juros).
Ora, o que tem acontecido do lado da receita nos últimos anos é uma redução de impostos para alguns. E este não é um fenómeno apenas nacional. Segundo os relatórios da KPMG, a taxa média de imposto sobre as empresas tem vindo a descer nos últimos anos em vários países; em Portugal baixou dos 39.6% em 1997 para os 25% em 2007(5)  (um terço do seu valor!).
 Embora esta redução até possa ter sido feita com a melhor das intenções – com a ideia de que uma redução nos impostos das empresas se traduziria em melhores resultados, que dariam origem à criação de mais emprego, a mais exportações e a mais riqueza para o país, que se traduziria em nova receita fiscal que compensaria a redução inicial de impostos – a realidade é que, quando combinada com outros factores que se foram sucedendo no nosso país, a ideia inicial saiu gorada(6) .
O que acontece é que durante o mesmo período, o nosso país viveu a «êxtase» dos fundos estruturais e de coesão, passámos pelo auge da política do betão, assistimos ao crescimento brutal do sector não-transaccionável e as parcerias público-privadas nasceram como cogumelos. As grandes empresas cresceram e concentraram-se em torno do sector não-transaccionável e das parcerias com o Estado. Isto quer dizer que não foi através dessas grandes empresas que as exportações cresceram, a economia não cresceu como esperado e não foi criada riqueza como perspectivado inicialmente; quando muito, gerou-se mais emprego, mas pouco mais que isso. Isto originou, obviamente, uma quebra nas receitas do Estado.
Ora, mas não sendo este um problema exclusivamente português – embora em Portugal tenha sido agravado pelos factores atrás especificados –, não pode ser corrigido por Portugal sozinho. Se um país, sozinho, aumentar os impostos sobre as grandes empresas, o mais certo é elas se relocalizarem noutros países com condições fiscais mais favoráveis ou em paraísos fiscais, ou usarem subsidiárias nesses países para assumirem os negócios dos grupos. Veja-se, em Portugal, o caso da Sonae ou da PT(7) . Isto é um problema deste sistema capitalista globalizado. Para haver alterações a este nível, é necessária uma acção conjunta de vários países, que neste momento não se vislumbra como possível – acima de tudo, porque não parece existir esse desejo por parte das «entidades competentes».
Além disso, é preciso não esquecer a fraca taxação aplicada à banca, às grandes fortunas, ou ao capital ganho em investimentos financeiros(8) . Tudo isto contribui para um défice na receita do Estado. Se a taxação fosse mais justa, possivelmente não teriam de existir cortes cegos na despesa.
Ainda assim, o foco das políticas (nomeadamente dos países europeus) é a redução daquilo a que os governantes, de um modo populista e chamativo, chamam de «gorduras do Estado» (que não nego que existem), quando na realidade a real intenção (ou, pelo menos, o que daí resultará) é a venda / cedência de partes do Estado ao capital privado. Além disso, não falta quem acuse os gastos na saúde ou nos programas de apoio social como os grandes culpados da nossa situação.

O problema apontado pelos analistas, economistas e políticos ultraliberais não é a receita, é a despesa. E é aqui que surge o terceiro nível da perspectiva com que olham o nosso problema: o alcance.

Porquê no alcance?
Porque esta visão dos problemas nacionais terá impactos na qualidade de vida dos portugueses. Justificadas com a crise da dívida soberana e com o peso do Estado Social no défice orçamental português, mas na realidade motivadas – ou pelo menos orientadas – por uma visão político-económica que se diz neoliberal mas que, acima de tudo, mascara outros interesses de natureza oligárquica, é para aí que apontam as políticas perspectivadas.
Estão previstas privatizações de empresas em sectores sem concorrência e de empresas que dão lucro. Está planeada a reestruturação (com custos assumidos pelo Estado) de empresas que dão prejuízo, para que possam ser vendidas quando derem lucro. Estão perspectivados cortes na saúde, na educação, na segurança social, ao mesmo tempo que se abrirá caminho aos privados nestas áreas.
A motivação por trás destas intenções é fácil de entender: tudo aquilo que é assegurado pelo Estado representa dinheiro que foge ao bolso dos privados. Qualquer grupo empresarial está interessado no mercado sem concorrência da água, na televisão(9) , nos correios, na TAP ou na CP, Metro e Carris (assim que o Governo faça o trabalho previsto de saneamento das contas destas empresas e as torne lucrativas). O mercado potencial da saúde e da educação representa um valor de 10% do PIB(10)  e o da segurança social mais de 20% do PIB – cerca de 30 mil milhões de euros por ano.
As consequências desta ganância serão extremamente nefastas. O resultado da pretendida diminuição do papel do Estado e consequente aumento da participação dos privados traduzir-se-á na eliminação da tendência gratuita da saúde e a sua entrega a privados (algo que já vem acontecendo através, por exemplo, de parcerias público-privadas – em que os riscos são sempre assumidos pelo Estado – nos hospitais-empresa); no bloqueio da mobilidade social que a educação pública garante e na sua degenerescência (seja através da utilização do sugerido cheque-ensino, seja através do fecho de escolas que contribui para a desertificação do interior); na passagem para a mão de privados de uma fonte enorme de poupança acumulada – os descontos para a velhice – que podem agora substituir o capital que ultimamente tem vindo a escapar no mercado imobiliário – durante os últimos anos, o destino principal da poupança dos portugueses – devido à crise que o atingiu.
Isto afectará (e já afecta) pobres e os sectores médios e baixos da classe média, que estão a ser os grandes prejudicados pelas medidas de austeridade e que serão afectados pelas estratégias que se perspectivam para a educação ou para a saúde.
É preciso ter presente que os impostos pagos ao Estado servem para que este assegure certos serviços públicos que, dessa forma, garantem algum retorno ao cidadão que os paga; e quando o Governo fala em redução da despesa através do corte destes serviços, é o mesmo que falar de um corte nos nossos ordenados – é do nosso ordenado indirecto que se fala –, quando o défice fiscal resulta, afinal, de uma distribuição desigual da carga fiscal, da protecção estatal a algumas empresas ou dos negócios ruinosos do Estado com o sector privado.
Não se pode falar em cortar ordenado indirecto, quando o trabalho não é taxado da mesma forma que o capital.
Não se pode aplicar austeridade a quem vive do seu trabalho e até a quem não consegue trabalho, quando o sector financeiro consegue lucrar com as suas próprias asneiras.
Nada disto pode ser esquecido.

autor: Bruno Leal


 Notas e Referências:
  1. A nossa baixa produtividade deve-se, em grande parte, ao pouco valor acrescentado dos nossos produtos. Por outro lado, as baixas qualificações de boa parte da população portuguesa são um obstáculo à reorientação da nossa economia.
  2. Santos, B. S. (2011), Ensaio Contra a Autoflagelação, Lisboa: Almedina
  3. Gross External Debt Position, Banco de Portugal 
  4. É preciso não esquecer que os bancos contaram com o apoio (financeiro) dos estados quando dele precisaram; que quando a crise afectou os estados, a banca lhes emprestou dinheiro a taxas elevadas, enquanto simultaneamente ganhou o direito a financiar-se junto do Banco Central Europeu a taxas muito baixas – ganhando dinheiro como o empréstimo aos estados –; e que ainda se perspectiva nova disponibilização de capital dos governos aos bancos. Com tudo isto, as instituições financeiras ainda saem a ganhar de uma situação que elas próprias provocaram.
  5. KPMG’s Corporate and Indirect Tax Rate Survey 2007, KPMG’s Corporate and Indirect Tax Survey 2010
  6. Está mais que visto que a redução da TSU que se avizinha – também ela feita com boas intenções, numa perspectiva liberal – se traduzirá em resultados semelhantes.PT lucra recorde mas paga menos impostos; Empresa não pagará imposto em Portugal, porque sede é na Holanda; Projecto de anúncio de lançamento de oferta pública geral de aquisição de acções representativas do  capital social da Portugal Telecom, SGPS, S. A.; Como as grandes empresas escampam ao fisco e ganham milhões.
  7. Sobre este tema, recomenda-se a consulta de informação sobre a venda da participação na Vivo por parte da PT, ou sobre a OPA da Sonae à PT: 
  8. O artigo de Warren Buffett, no NY Times, de 14 de Agosto, fala precisamente disto e torna-se especialmente interessante por se tratar de um super-rico, com boa parte da sua fortuna construída com investimentos na bolsa, que exige que ele e outros como ele sejam taxados da mesma forma que quem ganha o seu capital através do trabalho.
  9. Excepto os concorrentes, por razões facilmente perceptíveis.
  10. E a saúde assume-se como um excelente negócio de futuro: Telejornal, 2007/04/18.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Agonia da Democracia Parlamentar e o surgimento da democracia especializada – Uma Nova chance para a democracia verdadeira?

Parece ser cada vez menor a capacidade do sistema político para intervir em defesa do Estado Social, para promover crescimento, regular o sistema financeiro e a globalização. Numa sociedade cada vez mais complexa, cresce a dúvida sobre a qualidade e alcance efetivo da governança política, nestes e em muitos outros aspetos.
O afastamento entre o cidadão e sistema político tem, também, vindo a crescer e começa a dirigir-se para o ponto de rutura, no qual grande parte dos cidadãos poderá recusar a legitimidade do sistema político e dos seus agentes.
James Fishkin
É virtualmente impossível que o cidadão consiga, efetivamente, avaliar a qualidade das governações, pois estas incidem sobre uma grande diversidade de assuntos complexos que, aliás, são influenciados por muitas variáveis que escapam ao controlo dos governos nacionais. Esta incapacidade de avaliação impede a realização da lógica democrática de controlo, pelos cidadãos, dos seus representantes, colocando em causa um dos pressupostos essenciais da democracia. Não é, pois, de estranhar a mediatização e o peso excessivo do marketing na orientação do voto do cidadão, incapaz de avaliar, de forma racional e devidamente informada, a globalidade das situações concretas.

As críticas ao défice informativo da democracia não cessaram de aumentar desde Anthony Downs, logo em 1957, passando, depois, pelos trabalhos da escola da Public Choice e pela teoria dos jogos, ao colocar a questão das assimetrias informativas entre representado e representante. O orçamento participativo e as sondagens deliberativas de James Fishkin são talvez as experiências mais conhecidas na tentativa de superação deste défice. Os conceitos e experiências de democracia participativa, preocupada com a devolução do poder aos cidadãos, bem como as reflexões e inovações no âmbito da democracia deliberativa, preocupada com o nível de informação e isenção que assiste à decisão, são dos conceitos hoje mais estudados da teoria política.

David Held
 Interessa, portanto, acentuar reformas no sistema político, capazes de garantir melhor controlo, qualidade e maior alcance da governança, através de menores assimetrias informativas, mobilizando os cidadãos para as difíceis tarefas que hoje se colocam.
A atual crise exigirá atuação a diversos níveis, desde a austeridade, até a promoção do crescimento, passando pela reestruturação do Estado, do tecido empresarial, dos níveis de protecionismo e globalização, da gestão da massa monetária, da cultura e da ética, das metodologias de trabalho e das atitudes, bem como de vários outros níveis que terão de ser geridos numa sinergia que exigirá uma governança de alta qualidade.

 Os princípios das reformas na governança devem ser uma maior participação, a transparência e o cuidado com a disponibilização da informação necessária à correta deliberação.
Por razões óbvias, as reformas devem ser, também, encetadas dentro dos partidos políticos, paralelamente a reformas, de sinal idêntico e progressivas, a nível de todo o Estado, administração pública, organizações da sociedade civil e empresas.

As deliberações políticas podem ser efetuadas por fóruns suficientemente especializados para poderem coligir e usar a informação relevante e, simultaneamente, abertos a todos os cidadãos.

Neste enquadramento podem emergir as seguintes propostas:
1.    Criar uma rede de fóruns temáticos, cada um correspondendo ao tema de cada uma das atuais Secretarias de Estado. Posteriormente, deverão ser criados fóruns progressivamente mais especializados. Criar, também, fóruns que, embora não correspondendo a esta estrutura, constituam temas agregadores, como fóruns vocacionados para questões de ideologia e desenvolvimento do pensamento estratégico social e económico, bem como fóruns vocacionados para a prospetiva geo-estratégica do mundo globalizado e para o desenvolvimento e promoção da ética.
2.    Dotar estes fóruns de meios eletrónicos de comunicação e deliberação, através da internet.
3.    Preparar e disponibilizar material pedagógico, formação e informação que permita a qualquer participante estudar e apreender, com a maior facilidade que as temáticas setoriais permitirem, as especificidades das matérias próprias de cada fórum, evitando o elitismo e o fechamento dos fóruns. A preparação de módulos, informativos e formativos, de caráter mais genérico (filosofia política, teoria do valor económico, ética, etc) devem, também, constituir uma vertente de uma democracia preocupada com a qualidade informativa das deliberações. Estes módulos devem estar organizados em níveis, permitindo que cada participante possa ir, progressivamente, percorrendo os diversos níveis de formação.
4.    Conceder, progressivamente, poderes deliberativos aos fóruns temáticos. O poder deliberativo deve ir passando dos órgãos tradicionais da governação para estes novos fóruns.
5.    Abrir os fóruns a todos os cidadãos mas limitar o número de fóruns a que cada um pode pertencer, de forma a permitir reflexão e deliberação aprofundada.
6.    De forma a evitar a captura corporativa dos fóruns temáticos, em cada fórum ter-se-á de separar as votações em duas câmaras, uma representado a procura e o consumidor e outra os profissionais do setor respetivo.
7.    Equacionar a possibilidade de cada cidadão escolher um seu representante no fórum ou em órgãos executivos que dele possam derivar mas reservar a possibilidade de substituir-se ao representante, sempre que o desejar.

Norberto Bobbio
Num sistema deste tipo, novos paradigmas de legitimidade democrática fazem a sua aparição em pleno, configurando uma democracia especializada e temática. Cada participante delega, na prática, nos outros participantes a legitimidade para assumir decisões em seu nome (decisões estas tomadas nos outros fóruns ou em derivados do fórum no qual participa), reservando, contudo a capacidade de retirar essa delegação sempre que o desejar. Bem distantes estamos do paradigma da representação tradicional, no qual um participante delega poderes, vastos e genéricos, nos representantes políticos que escolhe, através do seu voto.

A possibilidade dos cidadãos mudarem de uns fóruns para outros onde sentem que a governação não está a ser correta, poderá permitir um equilíbrio que realize o interesse geral.
A expetativa de revolução paradigmática na democracia pode ser o primeiro passo para um conjunto vasto de reformas económicas, mediáticas, culturais e éticas que, tal como a crítica à democracia parlamentar, estão há bastante tempo a ser estudadas mas que, infelizmente, continuam fora das agendas das democracias parlamentares, presas de oligarquias, excessivamente mediatizadas e permeadas pelo marketing massificador.

autor: José Nuno Lacerda Fonseca

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Para uma entrada no campo político - parte 1

1 - O Campo Político (1)

Pierre Bourdieu
 É inevitável, em sociologia, falarmos em campos (nomeadamente em campo político) e imediatamente nos ocorrer à memória o nome de Pierre Bourdieu, que tão bem especificou as noções de espaço social e de campos sociais, através da sua Teoria da Estruturação dos Campos Sociais(2) . É segundo esta perspectiva que aqui vamos tentar definir o campo político.
Assim, na sua linha de pensamento, um campo define-se como:
«(...) un système spécifique de relations objectives, qui peuvent être d'alliance et/ou de conflit, de concurrance et/ou de coopération, entre des positions différenciées, socialment définies, largement indépendantes de l'existance physique des agents qui les occupent.»(3)
Por definição, o campo político é simultaneamente um campo de forças e um campo de lutas permanentes. O objectivo primordial daqueles que actuam no campo político é transformar a relação de forças que o estrutura num determinado momento, ou seja, é alterar a sua estrutura dirigente, sendo que a vontade de atingir o poder se assume aqui como central, como iremos ver mais adiante, no capítulo dedicado aos partidos políticos.
Também António Teixeira Fernandes (4) , quando pretende definir o poder político na sua especificidade, nos diz que o poder se torna político quando agentes sociais diversos se confrontam pela imposição de uma determinada forma de organização e pela sua orientação. E Joaquim Aguiar, a propósito da sua análise do sistema partidário português, refere que:
«O partido é uma organização inserida num espaço de concorrência. É uma concorrência que se define em múltiplos níveis, que se processa em relação a cada uma das suas áreas de actividade e de manifestação.»(5)
 Resulta daqui uma primeira definição de partido político construída em torno da ideia de espaço concorrencial e de conflitos, não só internos ao campo, como também com os outros campos que compõem o espaço social.
Pierre Bourdieu transporta uma lei central na economia para a sua teoria dos campos sociais ao explicar o campo político. Assim, no campo político, a desigual distribuição dos instrumentos de produção de uma representação do mundo social permite analisar a vida política do ponto de vista da oferta e da procura:
«O campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de consumidores, devem escolher, com probabilidades de mal-entendidos tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar de produção.»(6)
Jean François Bayart
Bourdieu fala-nos ainda das condições sociais da formação de competências sociais e técnicas exigidas para a entrada e participação no campo político. Assim, o desapossamento, perdoe-se-nos o termo talvez demasiado conotado com algum marxismo, dos que estão em maior número é correlativo com a concentração dos meios de produção política nas mãos de profissionais, que só possuindo alguma competência específica é que entram no jogo político com alguma probabilidade de sucesso.
O campo político exerce assim um primeiro "efeito de censura"(7)  ao limitar o universo do discurso político e, simultaneamente, o universo daquilo que é politicamente pensável, num espaço restrito de discursos susceptíveis de serem produzidos ou reproduzidos, nos limites do espaço político como espaço de tomada de posições. A intenção política só se constitui com o estado do jogo político, num momento determinado, e concretamente no universo das técnicas de acção e de expressão à disposição do actor político. Daí que o acesso ao campo político seja restrito a um pequeno número de indivíduos.
No que respeita à análise do político, Jean François Bayart(8)  fornece-nos uma imagem feliz do modo como devem ser analisados os sistemas políticos: à semelhança daquilo que fazem os linguistas relativamente à não possibilidade de separar um livro de quem o lê, também os sistemas políticos não têm validade senão enquanto permanente actualização de um actor para outro actor e de um contexto para outro.
Assim, o político só adquire sentido enquanto produto de relações sociais e é só nas e através das relações sociais é que ele pode ser analisado, do ponto de vista dos actores que nele participam, das redes que estabelecem, das interacções que mantêm quotidianamente.
Em suma, a sociologia política busca uma teorização dos fenómenos que se constituem em torno das lutas e dos conflitos pela obtenção do poder. Mas a política não é somente poder e luta pelo poder; a política mais do que isso:
«(...) constitui igualmente um sistema de relações sociais, devidamente estruturado e dotado da necessária constância e, por isso, de uma relativa autonomia. É com estas dimensões e características que ela é recortada do mundo social e tornada objecto de análise sociológica.»(9)
Aproximando-nos agora do nosso tema, o "efeito de censura" estabelecido pelo campo político afecta as decisões político-partidárias, que estão constantemente sujeitas a pressões e a controlos vindos do interior (diversas facções partidárias em luta e grupos de interesse internos) e do exterior (eleitorado, comunicação social, grupos de pressão).
A produção de tomadas de decisão depende do sistema (concorrencial) de tomadas de posição, propostas pelos partidos antagónicos; ou seja, da problemática política como campo de possibilidades estratégicas objectivamente oferecidas à escolha dos agentes (políticos), sob a forma de posições ocupadas e de tomadas de posição propostas no campo e pelo campo.
Isto significa que o campo político, nomeadamente o dos partidos políticos, não têm qualquer existência senão relacionalmente e qualquer tentativa de os definir (bem como àquilo que professam) independentemente do que são os seus concorrentes e do que estes últimos professam, será em vão.
O campo político exerce, para além de uma acção de censura, uma acção pedagógica sobre os agentes que nele se movem, fazendo com que eles adquiram o conjunto de saberes essenciais à sua correcta integração no conjunto das relações sociais em que se movem. Há toda uma aprendizagem necessária, por exemplo, aos deputados pela primeiras vez eleitos para a Assembleia da República, que vai dos estatutos aos próprios comportamentos permitidos, como veremos mais adiante.

2 - Campo e "Habitus" Político

De facto, não podemos ainda abandonar os contributos de Pierre Bourdieu. Não sem antes procedermos a uma breve apresentação de mais um dos seus conceitos fundamentais: o conceito de “habitus”.
Por "habitus" entende-se um conjunto de disposições, ou melhor, um sistema de disposições, de modos de agir, de pensar, de percepcionar, construído ao longo de toda uma vivência social, ao longo de um acumular permanente de experiências e que vai moldar a actuação do indivíduo. 
Pierre Bourdieu
Tal como qualquer outro, o "habitus" político pressupõe um treinamento particular: toda aquela aprendizagem que acima referimos e que se torna necessária para adquirir o corpo de saberes específicos produzidos e acumulados pelo trabalho político dos profissionais do passado ou do presente, bem como a necessária retórica para o correcto desempenho de funções. É o trabalho pedagógico do campo político, construído e reconstruído através dos tempos pelas diversas gerações.
Aquilo que torna a cultura e o campo político inacessível à maior parte dos agentes não é tanto a complexidade da sua linguagem, diz P. Bourdieu, mas a complexidade de relações sociais que compõem o seu campo. A luta que opõe os profissionais da política adquire a forma de uma luta pelo poder propriamente simbólico, de fazer crer, de fazer ver, de fazer conhecer e reconhecer, valores, decisões, ideias e, numa palavra, diferentes formas de olhar a realidade social.
São estes saberes adquiridos ao longo da própria experiência política, ou da experiência política de outrém, que constituem o sistemas de disposições, de representações, de modos de agir, pelos quais se constrói um "habitus". Rapidamente recordamos os chamados "barões" dos partidos, ou todos aqueles políticos cuja experiência torna o seu discurso e a sua postura logo identificável e vulgarmente rotulada como de "velhas raposas".
Este à vontade com que se movimentam no seio do campo político só é possível graças a toda uma aprendizagem, não só aí construída (no próprio campo) mas também no exterior. Não pretendemos aqui descurar a importância das outras aprendizagens feitas durante o percurso social dos indivíduos, pretendemos apenas destacar a importância daquilo que podemos chamar "aprender a ser político".
Assim, a aprendizagem em torno do que é ser político produz-se ao longo de toda a experiência política do indivíduo e condiciona o modo como o indivíduo percepciona e representa o espaço em que se move. Condiciona também sobremaneira, como veremos mais adiante, o discurso que o indivíduo constrói acerca desse mesmo espaço, circunscrevendo esse discurso aquilo que não porá em causa o seu estatuto nem o estatuto do partido (no caso da nossa análise) que o representa.

autora: Patrícia Ervilha

Referências:
  1. A Tomada de Decisão no Grupo Parlamentar do PS, Patrícia Ervilha, Dissertação de Licenciatura em Sociologia, Universidade Nova de Lisboa, 1996
  2. Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico, Col. Memória e Sociedade, Difel, Lisboa, 1992
  3. Alain Accardo, Initiation à la Sociologie de l'Illusionisme Social, Le Mascaret, Bordeux, 1983, p. 55 
  4. António Teixeira Fernandes, Os Fenómenos Políticos - Sociologia do Poder, Biblioteca das Ciências do Homem, Edições Afrontamento, Porto, 1988
  5. Joaquim Aguiar, A Ilusão do Poder - análise do sistema partidário português 1976/82, Col. Participar, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1983, p. 42
  6. Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico, Col. Memória e Sociedade, Difel, Lisboa, p. 164
  7. Pierre Bourdieu, La representation politique - Éléments pour une théorie du champ politique, in «Actes de la Recherche en Science Sociales», nº 36/37, 1981
  8. Jean François Bayart, L’énonciation du politique, «Revue Française de Science Politique», Vol. 35, Nº3, 1995
  9. António Teixeira Fernandes, Os Fenómenos Políticos - Sociologia do Poder, Biblioteca das Ciências do Homem, Edições Afrontamento, Porto, 1988, p. 93


quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A redução de Freguesias em época de vacas magras

Actualmente em Portugal, contamos com cerca de 4200 freguesias distribuídas pelo continente e regiões autónomas, respectivamente distribuídas por 308 concelhos. Isto num país com uma superfície de 92 152 km2 e cerca de 10,6M de habitantes.
Mergulhados numa profunda crise económica e com um défice altíssimo, Portugal é obrigado a cortar em tudo, até no número de freguesias e de municípios... Mas será que estamos assim tão mal quando comparados com outros países da Europa dos 27?
São quatro os países com uma menor superfície e simultaneamente menor população do que Portugal na União Europeia mas que contam com muitos mais concelhos, nomeadamente, a Áustria com 2.357 , a Bélgica com 589, o Chipre com 378, a Eslováquia com 2.928.
Mapa dos Concelhos de Portugal de 1876
Recorrendo ao uso de interpolações, relacionando o número de habitantes e a área da superfície dos países mais ricos da UE, torna-se muito mais pertinente a comparação entre Portugal e os mesmos.
No que toca ao número de habitantes, se as maiores potências da UE seguissem o exemplo de Portugal, a Alemanha deveria ter 2.374 municípios, no entanto, tem mais de 12.000, já a França deveria ter 1.063 mas conta com 36.600.
No que toca à área da superfície do território da Alemanha e da França, verifica-se que se as grandes potências da UE seguissem o exemplo de Portugal, deveriam ter 1.178 e 2.088 concelhos respectivamente.
No que toca ao número de freguesias salienta-se dois casos especiais:
  1) Até ao ano de 2001 , Portugal contava com a maior freguesia da Europa (Algueirão – Mem Martins) com mais de 100.000 habitantes para 16,37 km2 de superfície.
  2) Em Lisboa, segundo o jornal Público, a redução do número de freguesias de 53 para 24 vai permitir acabar com 38% dos cargos. 
No entanto, os gastos com a despesa serão os mesmos pois apesar de irem funcionários para o desemprego, os que estavam em part-time vão passar a trabalhar a tempo inteiro.
Continuando com a reflexão acerca do número de freguesias, verifica-se que no Porto existem várias freguesias com menos de 5000 habitantes, nomeadamente Miragaia, Sé, Vitória e S. Nicolau, o que dá que pensar numa possível união devido também à proximidade.

De facto, existe uma desproporção muito grande entre o tamanho das freguesias a nível nacional, que na minha opinião se deve sobretudo à problemática do centralismo que ao longo dos anos tem adiado a questão da regionalização. Existe a necessidade de reformular o mapa de Portugal, mas sim no sentido de uniformizá-lo e dotá-lo do enriquecimento da igualdade de oportunidades para cada região, que por si só poderá ajudar a combater o flagelo do desemprego com a possibilidade da criação de novas portas para o investimento e desenvolvimento industrial.

Em época de vacas magras, recessão, desemprego e sobretudo numa conjuntura europeia fortemente dominada por Políticas de Direita que em nada dignificam o significado da palavra união, surge na população portuguesa o sentimento que é tempo de cortar em despesas e em cargos na função pública, mas quando se trata do corte de Municípios e Freguesias, é bom que se tenha consciência da qualidade do serviço que é prestado com menos gente e olhar para o caso lisboeta que em nada dignifica a sensibilidade social.
O que é certo neste momento é que o memorando da Troika exige o corte de municípios e freguesias, mas como nem só da Troika vive a política, deve-se ter em atenção a maneira como os cortes são feitos de maneira a não servirem meramente para inglês ver. Mais do que cortar, há que uniformizar e reestruturar, pois a crise tem que tocar a todos tal como tocou a Portugal que não teve a culpa de ser afectado pelos erros das agências americanas que hoje nos chamam “lixo” e simultaneamente querem enriquecer com os seus próprios erros, afectando o Euro e alavancando a subida dos juros.
No fim de tudo, quem perde somos nós, com serviços de menor qualidade, mais impostos e com o dinheiro proveniente de toda a penalização social, dispensado para o pagamento de dívidas externas.

autor: André Lopes

Material de Apoio:

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

As ditaduras entre nós, ocaso do Ocidente e o que já não cai dos céus

Se, de repente, todos achássemos muito bem matar, roubar e mentir, a sociedade atravessaria um período de violência e destruição, até descer ao nível organizativo da sociedade dos primatas. A ética é, portanto, o bem social mais essencial. Tão importante como a ética, para o funcionamento social, só a existência de linguagem. A ética constitui o regulador social que vem de dentro de cada indivíduo, sem o qual não existe a possibilidade de qualquer modelo social sustentável. De facto, é impossível que exista um controlo social, judicial e jurídico, que seja exaustivo sobre os actos dos cidadãos. Podemos, talvez, colocar um polícia atrás de cada cidadão (segundo Samuel Bowles, o ocidente está a caminhar para isso) mas colocar um polícia atrás de cada polícia e assim sucessivamente, só num sonho, quântico, de Estaline.
Na origem de todas as últimas grandes crises financeiras existiram transgressões à ética que acabaram por propiciar essas crises. Apareceram sempre pessoas a tentar enganar e outras a olhar para o lado e a lavar daí as mãos, até ser tarde demais.
Infelizmente, apesar da grande importância da ética, as reflexões pós-modernas evidenciaram a impossibilidade de fundamentação absoluta das filosofias morais e éticas. Bauman, na sua síntese sobre a ética pós-moderna , di-lo na mais clara das formas, afirmando que “o fenómeno moral é por inerência um fenómeno não racional”. Já o mesmo tinha sido defendido por vários outros filósofos pós-modernos  e muitos outros anteriores, muito pouco aristotélicos, kantianos e espinozianos, como Kierkegaard e Hobbes. Também não devemos esquecer o diabolizado Skinner  e as suas teorias do condicionamento do indivíduo, no qual não devemos ver, apenas, creio eu, o malvado e científico patrono da renovação do admirável mundo novo do Huxley.
Face ao que hoje sabemos sobre a distância entre argumentações filosóficas (a favor dos valores éticos) e os métodos de demonstração científica, temos de pensar que ser ético é uma opção subjetiva, sem nada de científico, sendo que ninguém pode provar se é a melhor opção para cada indivíduo. Apesar disso, é óbvio que é o melhor para a sociedade em geral mesmo que o não seja para quem tem vocação para bandido. De facto, existem muitos bandidos felizes mas uma sociedade só de bandidos pouco mais será do que um combate ininterrupto de facada.
Devido a este cenário, de interesse coletivo e indiferença individual, terão as sociedade o direito de condicionar para a ética, nomeadamente mediante mecanismos culturais de propaganda e instilação dos valores éticos, desde que salvaguardado o pluralismo? Creio que sim e que sem isso o risco de desagregação social será excessivo. Contudo, creio que ao indivíduo deve ser dada a capacidade de desmontar e recriar, criticamente, qualquer propaganda a que seja submetido. Em suma, a sociedade deve moldar o homem como um ser ético mas deve dar-lhe a hipótese de se tornar um crítico dessa ética e até, eventualmente, um bandido, pois esse é o seu direito de liberdade e, também, porque ninguém pode garantir que a propaganda ética seja pura e idealmente ética e não algo bem diferente. Contudo, será bom, para manter a necessária coerência social, que essa eventual passagem, de ético a bandido ou de condicionado a livre, não se faça sem um considerável esforço individual de desconstrução e recriação.

Quem fez, até agora, esta necessária despesa pública da propaganda da ética? Religiões e ideologias tal fizeram, como creio ser óbvio, infelizmente sem qualquer preocupação com a liberdade crítica aos dogmas. Num cenário de fraqueza argumentativa das religiões e ideologias, ocasionado pela super valorização dos métodos científicos de pensamento, quem faz hoje esta propaganda da ética? Duvido que as verdadeiras missas negras, de violência, mentira e desejo de poder, em que se tornaram parte dos mídia, estejam a cumprir essa função social. Vejo os mídia, na recreação e, sobretudo, na publicidade, frequentemente apostados na valorização da procura do poder a todo o custo (por vezes identificando-o com o sucesso, financeiro e sexual, fama e poder de compra), fomentando uma verdadeira paixão pelo poder. Esta “poderanóia” constitui o principal inimigo da ética. Bem longe estamos dos dias de propaganda a favor do principal aliado da ética (juntamente com a empatia e sublimação) que é, no meu entendimento pessoal, o sentimento místico de integridade ética. Esse sentimento de que, se formos éticos, todos os seres se poderão sentir bem e nós seremos recompensados, mesmo sem percebermos bem como, parece arredado da alma do homem atual. Esse sentimento místico e idealista (central nas religiões e ideologias) foi afundado pelo anátema sobre ele colocado por uma interpretação arrogante do que é a ciência e o pragmatismo. Ficou assim o indivíduo enclausurado num ego férreo que esta cultura anti-ética da modernidade entende como indispensável ao sucesso e ao bem-estar psicológico.
Que faz o sistema político a favor da ética? Nem grandes exemplos nem nenhuma promoção da ética (se excluirmos algumas iniciativas de cultura cívica e moral, em ambiente escolar, inspiradas, possivelmente, em Lawrence Kohlberg e seus colegas).
Já descobrimos que a preservação do ambiente e a ecologia não brotam, espontaneamente, das pedras da calçada mas continuamos a pensar que a ética cai do céu aos divinos trambolhões.
Claro que a ética não pode viver só de propaganda. Necessita, igualmente, de uma reflexão argumentativa que desenvolva as competências necessárias ao seu, muito difícil, exercício quotidiano. Aliás, a ética, também não pode viver sem uma cultura de competências existenciais e sociais básicas (comunicar, negociar, sublimar, tolerar, etc.) nem sem uma cultura política e social que permita a expressão socialmente vivida da ética. Creio que a promoção deste triângulo (reflexão ética, competências básicas e cultura política) é tão importante como a propaganda de valores éticos, não obstante a necessidade desta.

Não foram só interpretações excessivamente arrogantes sobre o poder da racionalidade, científica ou aparentada, que enfraqueceram a ética. As falências, na prática, de muitos projetos religiosos e ideológicos, criaram uma cínica fobia a tudo que seja idealismo e generosidade. Juntemos, aos fatores de erosão da ética, a incapacidade de se criarem consensos sobre certas expressões políticas de valores éticos, como os valores da liberdade, da solidariedade e da justiça. De facto, não é fácil ficarmos de boas relações com a ética quando estamos sem resposta política convincente sobre a questão do free rider (o “preguiçoso” que conta com os outros para viver) e sobre a questão, conexa, da justiça na repartição do rendimento social, entre as diversas classes profissionais.
Em próximos artigos tentaremos falar de políticas de promoção da ética, bem como dos problemas do free rider e da redistribuição social do rendimento (a questão eticamente mais fraturante do século XX, quanto a mim). Tentaremos, ainda, escrever sobre as dificuldades da propaganda da ética num mundo que hoje vive em ditadura financista e mediática. Creio que podemos afirmar a existência desta ditadura pois não existe governo mundial que possa submeter à democracia o poder financeiro internacional. Sobre a ditadura mediática já se tem escrito bastante neste blogue. Não parece razoável pedir a uma ditadura (com tendência para a propaganda do medo e para o apagamento de teorias alternativas) que faça uma propaganda mais ética. Contudo, não é ao poder que me dirijo mas sim à capacidade dos cidadãos para se erguerem, da qual sempre dependeu o ocaso das ditaduras e o caminho da civilização, segundo me parece.

autor: José Nuno Lacerda Fonseca

i - Bauman, Zygmunt, 2005, Postmodern Ethics, Blackwell, Malden – MA.
 
ii - Como Gianni Vatimo (1980, As Aventuras da Diferença, Edições 70, Lisboa), com o seu conceito de “infinidade da interpretação”, Jean-François Lyotard, com as suas críticas contra a hegemonia de qualquer dogmatismo (1987, O Pós-Moderno Explicado às Crianças, Publicações D. Quixote, Lisboa), defendidas desde o seu livro "Le Différend", de 1983. De notar, além de vários outros, o contributo do pensador da “terceira via”, Anthony Giddens, com a sua reflexão sobre os complexos processos de criação da confiança social (1990, The Consequences of Modernity, Stanford University Press, Stanford, California).
 
iii - B. F. Skinner, 1945, 1976, Walden Two Prentice-Hall, New Jersey. Beyond Freedom and Dignity, 1971, 2002, Hackett, Cambridge.
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