quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A Ideia do Socialismo Cultural

Ao reflectir sobre um assunto, não devemos desprezar o trabalho de todos que já reflectirem sobre ele. Isto parece tão óbvio que deveria ser supérfluo dizê-lo. Infelizmente, neste estranho momento histórico, parece necessário reafirmá-lo. Não parece razoável que as decisões tomadas no âmbito do socialismo moderno ignorem a tradição socialista, de Bernstein a John Roemer, nem ignorem qualquer outra grande tradição de pensamento, como o liberalismo de Locke, Voltaire e tantos outros incontornáveis contributos. Infelizmente a auto-denominada “terceira via” comportou-se de forma diametralmente oposta.
Multidão junto à "Mona Lisa" no museu do Louvre em Paris
Seria de esperar que a tradição fosse criticada, demonstrando a sua insuficiência, antes de se perfilharem os pontos de vista daqueles que sempre se colocaram contra essa tradição. Pelo contrário, a “terceira via”, do Lorde Anthony Giddens, abraça, com entusiasmo, posições neo-liberais, excluindo, por exemplo, qualquer hipótese de economia pública de mercado, sem análise aos argumentos dos defensores desta (isto é, dos defensores do “socialismo de mercado”). Os exemplos deste desprezo pela cultura são muitos e em muitos temas, na “terceira via” e, infelizmente, nalgumas práticas dos partidos socialistas actuais. A cultura exige que as novas propostas, da actualidade, sejam fundamentadas e melhoradas com base no conhecimento já acumulado ou, pelo menos, exigem que o abandono dos caminhos traçados pela tradição se faça após crítica desta. Não basta cavalgar a onda da opinião mais corrente, mesmo quando complementada por livros pretensamente abrangentes ou por tecnocracias economicistas que escondem os seus pressupostos ideológicos.

Como é possível que as teorias do socialismo de mercado sejam, hoje, quase completamente ignoradas na Europa, apesar de serem dos principais temas de debate dos académicos, norte americanos, do grupo Real Utopia?
Como é possível que as ideias de democracia participativa e cognitiva, bem como o debate sobre os contornos que estas devem assumir numa democracia socialista, não passem de notas de rodapé nos programas e debates socialistas, apesar deste ser um dos campos nos quais mais se escreve e investiga, desde Held a Fishkin? Será possível um sistema político com cidadãos realmente informados que não passe por múltiplos fóruns temáticos especializados, constituídos por cidadãos, com efectivo poder descentralizado?
Como é possível que os media continuem a passar encapotadas mensagens ideológicas, a título de uma pretensa neutralidade objectiva que realmente nunca existiu, até porque os interesses políticos dos seus proprietários estão ligados aos interesses das grandes concentrações de capitais? Para quando um verdadeiro pluralismo, com possibilidade de todas as forças políticas serem ouvidas, efectivamente, sobre os conteúdos dos media que veiculem mais importantes mensagens ideológicas? Será possível a democracia sem democracia nos media? Haverá dúvida que a política está à mercê do espectáculo dos media, nos quais o sensacionalismo, a exploração do sadismo, a superficialidade e a repetição substituem o estudo e a solidez dos argumentos? Alguém pensa ser possível que se informem os cidadãos passando, de três em três minutos, para outro assunto sem se aprofundar nada? Porque são esquecidas as várias teorias críticas sobre os media, desde Adorno até ao liberal Karl Popper?
Será que, também, estamos satisfeitos com o indecoroso espectáculo dos media que ignoram os efeitos das suas peças recreativas na sustentabilidade dos valores e da ética?
Como é possível que os media centrem a cultura actual na procura de poder e de consumo, sem uma oposição sistemática do campo socialista que quase parece ignorar todo o contributo da teoria crítica e dos valores éticos que veicula, desde Marcuse a Anselm Jappe?
Como é possível que, apesar de Bernstein e Rawls, não se continue a procura da síntese entre liberalismo e socialismo?
Como é possível que, depois de Kierkegaard, Freud, Gordon Allport e Edward Wilson, entre tantos, não se procurem as pontes entre o idealismo ideológico e o idealismo religioso, entre oriente e ocidente, entre o Concílio do Vaticano II, teologia da libertação e socialismo europeu?
Como é possível que as teorizações sobre a economia do conhecimento, de Arrow a Paul Romer, mostrando as novas insuficiências do sistema de mercado puro, não mobilizem os socialistas em torno de uma economia de transparência, com instituições e regras que facilitam a efectiva apropriação da inovação pela multiplicidade das empresas, bem como um benchmarking amplo e sistemático.
Em suma, como foi possível tanta reinvenção da roda, pela “terceira via”, desaguando na quadrada roda neo-liberal que pouco mais é que o simplismo primitivista da lei do mais forte? Talvez a “terceira via” devesse ser chamada “terceira roda”, do triciclo no qual se quis montar o socialismo a percorrer o íngreme caminho da história.

Efectivamente não sei como explicar tanta obliteração da cultura. Suponho que a enorme campanha mediática, contra o socialismo, orquestrada a partir da oportunidade psicológica da queda do muro de Berlim, tenha desempenhado papel importante, apesar da evidência de que o socialismo democrático, gradual e humanista, de Bernstein, sempre se opôs ao belicismo de Marx expresso, por Lenin e Stalin, no comunismo soviético. Essa evidência foi irrelevante para uma enorme campanha mundial da pior propaganda, contra todo o socialismo, que hoje dá os seus frutos, plenos de veneno e destruição. De facto, os Estados estão à mercê da sofreguidão e cobiça dos mercados financeiros, apesar dos Estados terem, muito recentemente, salvo estes mercados da implosão. A classe política, na qual o povo se devia rever, é detestada pelo próprio povo, o Estado Social aproxima-se da insolvência, o crescimento económico entrou numa dança recessiva na qual só alguns poderosos ganham, as pequenas e médias empresas lutam contra a sufocação por elevados impostos e por condições leoninas impostas pelas grandes concentrações empresariais, a protecção do ambiente é adiada sine die, não se vê como resolver a insegurança, o fanatismo crescente e a degradação da ética. Os partidos socialistas continuam, corajosamente, a defender o Estado Social mas são obrigados a fazê-lo recuando de trincheira em trincheira. Contudo, a conjunção de tradição, ciência, cultura e criatividade encontrou já imensas ideias novas que, todavia, continuam a ser ignoradas pelos media e, até, por largos segmentos da classe política.
Escola de Atenas - Rafael
 Exige-se mais cultura, mais sério, sistemático e profundo debate e menos mediatismo e propaganda. Em boa hora foi criada a Fundação Res Publica, devendo ser apetrechada dos necessários meios e complementada com estratégias de maior risco criativo e desafio paradigmático. Exige-se um socialismo cultural para dar ao mundo uma esperança reformista, gradual mas profunda e inovadora, em respeito por todas as classes sociais, crenças e ideologias. Um socialismo reconstruído com ideias inovadoras e criatividade, amigo do brainstorming, sem ninguém ter receio de errar ou chocar mas em diálogo com a tolerância, com as múltiplas tradições e com a diversidade dos campos do conhecimento moderno.

autor: José Nuno Lacerda Fonseca

5 comentários:

  1. Em primeiro lugar parabéns por este Blog e por esta iniciativa.
    Excelente arranque com esta chamada de atenção para a necessidade de conhecermos o que outros já pensaram e implementaram, se queremos ser capazes de pensar e executar as melhores políticas.
    De facto é necessário "mais cultura, mais sério, sistemático e profundo debate e menos mediatismo e propaganda." .
    Sendo um militante muito recente do PS, vejo na direita (portuguesa e europeia) ideias muito claras sobre o que querem fazer e a visão de sociedade que defendem, e, estranhamente, não vejo o mesmo nos partidos socialistas democráticos, antes uma "colagem" de alguns chavões ("defesa do estado social" "luta conta o domínio dos mercados") e muito vazio ou pouca qualidade sobre as questões chave para o futuro das nossas sociedades: como assegurar crescimento e emprego e médio longo prazo? como competir numa economia global? como manter um Estado Social sustentável?

    Penso que a própria forma como se faz o debate pode e deve ser melhorado, tornando-o mais interactivo e conciso, e que possa verdadeiramente alimentar os conteúdos programáticos do partido. Deixa-me sempre decepcionado, quando constato que a concepção do programa político de governo de um partido, é deixado nas mãos de um "crânio", num processo demasiado fechado, desperdiçando conhecimento, ideias, questões que emanam do debate de muitos dos nossos melhores pensadores e cidadãos.

    É minha convicção, que o principal problema dos partidos de poder ( PS e PSD), e que se reflecte também no facto de "A classe política, na qual o povo se devia rever, é detestada pelo próprio povo", é a crise de valores e comportamentos dentro desses partidos, e que tudo contamina.
    Dois exemplos, do que são práticas "normais" para os partidos, mas inaceitáveis (para utilizar uma expressão simpática) para qualquer cidadão, e que minam a qualificação da nossa democracia

    1- sistematicamente, em eleições partidárias em que a vitória é disputada taco a taco, acontecem práticas duvidosas de pagamento em massa de quotas, arrebanhamento de votos etc,,, que são um "atentado" à verdade democrática. E no entanto, qualquer um dos partidos, tem estatutos, normas e controlo muito permissivo, que acabam por premiar quem viola a verdade democrática. Não ganha quem os militantes elegem, mas sim quem tem mais dinheiro e menos escrúpulos

    2 - sistematicamente, quando um partido ganha eleições e conquista o poder, lança um “assalto selvagem” a todo o tipo de cargos publicos para os seus “militantes queridos”, e se não há cargos em número suficiente, pois criam-se os mesmos. Isso destrói a repeitabilidade de toda a classe política, promove uma mediocridade de valores que minam o desenvolvimento de qualquer sociedade.

    Estas práticas, são da total responsabilidade dos partidos, e provavelmente, o maior “perigo” para o nosso actual sistema democrático a médio e longo prazo, pois retiram legitimidade à nossa democracia.

    O Papa Bento XIV disse quando veio a Portugal, que “os maiores inimigos da Igreja encontra-se dentro da própria Igreja”. Deveríamos ter igual humildade em reconhecer, que “os maiores inimigos da nossa democracia, encontram-se dentro dos

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  2. Caro João Santos
    Um breve comentário sobre os pontos que designou 1 e 2.
    1. Sobre redes clientelares, creio que se deve considerar o estudo sobre "cultura paroquial" dos países latinos, versus "cultura cívica", de Almond e Verba. Estes estudos interculturais começaram com o livro do Weber sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo e, hoje, encontram expressão interessante no site "world values survey". Entre estes dois momentos, será de considerar o Hofstede que revolucionou estes estudos, ao relacionar, estatisticamente, as atitudes culturais com o PIB. Na altura dos Estados Gerais apresentei uma proposta sobre um programa nacional de atitudes. Continuo a pensar que algo idêntico é indispensável para Portugal.
    Especificamente sobre partidos e redes clientelares, creio que foi o Michels (com a sua lei de ferro da oligarquia dos partidos) que constituiu a visão clássica sobe isto.
    2. Neste blogue existe um texto sobre este assunto, com uma proposta alternativa às nomeações políticas.

    Obrigado pelo seu comentário. Foi importante.
    josé lacerda fonseca

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  3. No que toca ao ponto 1, sobre a "sociedade paroquial" deixo aqui o título de uma obra recente sobre o assunto: "Corrupção e os Portugueses" de Luís de Sousa e João Triães.

    Como dizem os autores nesse livro: "Os portugueses fazem mais do que a lei permite e menos do que ética exige"

    Penso que o João tem muita razão quando refere que muitos dos ideias da esquerda estão a tornar-se intangíveis. Penso que urge começar a aprofundar os temas chave e os ditos "chavões", tratando-os com objectividade e rigor. Conscientes da herança e cultura socialista, mas pensando em soluções pragmáticas e palpáveis - acima de tudo sustentáveis.

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  4. Deixo aqui um comentário à primeira imagem do texto. Depois de ter assistido recentemente a esta estranha manifestação de interesse por arte, especialmente por esta célebre pintura de Da Vinci, questiono-me sobre a importância ou valor de algumas obras de arte. Será que estas pessoas realmente apreciam a arte da mona lisa ou simplesmente a querem apreciar à força porque os lhes disseram, sem explicar, que o deveriam fazer?

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  5. Pela quantidade de pessoas que se limitava a tirar uma fotografia sem sequer apreciar, embora ao longe devido às protecções, eu diria que tendencialmente será a segunda opção da questão que eu próprio formulei.

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