
Todavia, consideremos, a possibilidade do cenário de défice público primário nulo. Isto é, só precisaríamos de pedir dinheiro emprestado para pagar o dinheiro que já pedimos antes. Neste cenário, se o Estado não tivesse de pagar juros e amortizações, da dívida pública, não teríamos défice público.
Nessa altura, se o Estado deixar de pagar as dívidas, esse terrível papão de deixarem de, no futuro, nos emprestar já assustaria menos, pois já não precisaríamos desses futuros empréstimos para pagar as futuras despesas correntes e de investimento do Estado português.
Imagino que os rebeldes contra as finanças internacionais já estão a pensar que esse seria o momento ideal para deixarmos de pagar juros e amortizações. Infelizmente, as finanças internacionais somos também nós, todos os que temos poupanças nos bancos e os que precisam que continue a haver investimento (sobram só os mortos). Se os bancos credores adoecerem é natural que as nossas poupanças e rendimentos também fiquem com uma certa indisposição. Os cipriotas que o digam. É inegável que a crise tem sido um bodo para quem está no topo da pirâmide social, o que é inadmissível e deve ser corrigido com uma profunda mudança de regime mas, por agora, que grande gripe sistémica em que estamos metidos!

Será que o default indexado rebentaria com os mercados financeiros e faria a Europa vir bater-nos com pau bondoso de troika? Acho que não e entre a catástrofe do desemprego (e outras desgraças sociais) e a catástrofe da ética (não honrarmos as nossas dívidas mas quanto a deshonrar contratos internos os governos têm sido pródigos contra os mais fracos) e os sismos nas finanças este seria um equilíbrio, salomónico, que talvez deixasse o menino vivo.
Aliás, para conseguirmos honrar integralmente a dívida precisaríamos de começar, já, a crescer perto de 10% ao ano (supondo que aproximadamente 1/3 iria parar aos cofres do Estado) e quanto mais tarde começarmos mais teremos de crescer em cada ano, devido à acumulação de dívida. Por outro lado, mais austeridade vai acabar por diminuir as receitas públicas e não liberta consideráveis montantes para superavit, como se tem visto. Mesmo que, um dia, por milagre, tal venha a acontecer nunca seria de grande magnitude, talvez 1 a 2%/ano e os cortes implicam mais pobreza, mais fome, perda de população jovem e qualificada (saldo negativo de 130.000 habitantes nos últimos anos), menos saúde, mais morte precoce e menos educação (a longo prazo será pior emenda que o soneto). A conjunção destes dois milagres (super crescimento e cortes superavitarios) parece muito improvável (mesmo só um já será difícil), relegando para Oz o pagamento integral da dívida, com um percurso de inferno para os devedores.

Temos, então, mais uma ideia salvadora – este default indexado ou melhor este “pagamento compósito” (que não mate nem incapacite o devedor e o deixe vivo para continuar a pagar). Infelizmente e com grande probabilidade, vai fazer companhia a outras ideias do panteão das ideias sebastianistas mesmo se boas, como o abandono do euro, as eurobonds, o quantitative easing maciço (como nos USA), a bi-moeda (defendida por Ventura Leite, embora não a chamando assim), as empresas públicas geridas por “stakeholders”, novos acordos de comércio internacional, taxa tobin, robotização e sociedade de part-time, autonomia energética, reindustrialização, etc.

Tudo isto faz lembrar a história da Sulândia e da Nortelândia, num planeta estranho.
As elites da Sulândia não parecem capazes de conquistar o apoio da Nortelândia para as novas ideias contra a crise, a não ser para as pauladas caridosas dos austerimos (o que, infelizmente, é melhor que nada).
O que as elites da Sulândia deveriam fazer? Deveriam fazer as reformas que assegurassem que desgraças desta dimensão, como o monstro da dívida pública e do engordamento de grupos rentistas e de corruptos, não voltariam a acontecer. Isto é o que a Nortelândia precisa de ouvir, para abrir as torneiras do quantitative easing (para promover crescimento e se fosse em grande dimensão talvez nem fosse preciso o “pagamento compósito”, o que seria bem melhor) e para apoio às outras novas ideias de combate à crise. A Nortelândia quer ouvir como na Sulândia se vão tornar mais precavidos, ter menos corruptos, ser mais seletivos na despesa pública e ficarem mais produtivos no geral (a produtividade da Sulândia é quase metade da dos países mais produtivos). Como é óbvio, estas serão reformas no sistema que governa a Sulândia. Sistema político e sistema cultural de atitudes, no trabalho e na vida pública. Aqui não há, aliás, grande segredo. As democracias do norte têm qualidade porque os cidadãos nelas participam ativamente, em associações, movimentos, decisões locais e várias outras instâncias às quais oferecem várias horas de trabalho por semana, para que a sociedade funcione devidamente e se desenvolva um espírito de equipa e responsabilidade que é muito útil, também, no mundo económico.
“Onde estava você no 25 de Abril da Sulândia” pode dizer-se agora de outra maneira – “Quantas horas você dedicou a atividades cívicas, de gestão dos bens públicos”? A “culpa” não é, afinal, unicamente, das elites sulândesas, dos políticos, dos mercados, dos exploradores, dos corruptos, dos funcionários públicos, dos constitucionalistas, dos banqueiros e de outros dessa laia expiatória – a culpa é tua, a culpa é minha, a culpa é nossa (diria um blogger sulândes). Certo que houve quem se aproveitasse regiamente e uns são bem mais responsáveis que outros. Não perguntes o que o país pode fazer por ti, sulândes – pergunta, também, o que podes fazer pelo país, como disse JFK, no século passado, na nortelândia das américas. Bem sei que há muito a mudar, muita exploração e corrupções diversas, está muita coisa errada mas não é a Nossa Senhora nem o Karl Marx que vão meter a mão na massa (supondo que a Sulândia e Nortelândia terão seres destes). Valha-nos a Nossa Senhora de Fátima que os ponha todos em peregrinação para a responsabilidade cívica. Só mesmo Ela, pois esta Sulândia detesta ideias novas (como provam os inquéritos do Hofstede, um Nortelândes homónimo do conhecido antropólogo da Holanda) porque, no fundo, ainda só gosta de césares e se acomoda nos seus quintais onde simula domésticos e radicais césares. Cultura cesarista, paroquial e individualista, oriunda de 20 séculos de impérios a partir de Roma da Sulândia. Para quando uma crítica das culturas nacionais e respetivo marketing social? Os sulândeses também têm muitos traços excelentes a acentuar, como a criatividade e o humanismo.

Se aborreci com estas filosofias, pretensamente satíricas, peço desculpa mas relembro que a filosofia é uma consequência de estar mal disposto e estar mal disposto é uma consequência de um império sem filosofias.
