sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Para além da esquerda e da direita – um Mundo globalizado e desequilibrado

As sociedades modernas actuais, enfrentam o desafio da globalização de uma crise social e ecológica, globalização que dificilmente se reproduz nos discursos dos partidos políticos preocupados com a sua representação nacional. Contudo, a inadequação nacional é crescente, como matriz espacial privilegiada das decisões políticas. Os sistemas políticos confrontam-se, assim, com uma insuficiência acrescida que assalta os seus centros de decisão estatais. Os Partidos, forçosamente vocacionados para a conquista de eleitorados nacionais, tornaram-se reféns da sua própria campanha eleitoral e da caça ao voto. Não é raro que os Partidos vencedores, assim que se encontram no poder, vandalizem as expectativas dos eleitorados que motivaram a sua vitória, porque as expectativas sociais foram excessivamente empolgadas durante a campanha eleitoral. A estratégia dos Partidos envolve também, e em função da competição eleitoral, o extremar das diferenças entre a direita e a esquerda. Por um lado, as diferenças entre a esquerda e a direita são ditadas, muitas vezes, apenas no campo da semântica, sem qualquer relação com a prática política ou com as opções tomadas no domínio da macroeconomia.


Por outro lado, temos que admitir que o quadro instrumental dos poderes nacionais encontra-se enfraquecido pelas exigências da globalização. A globalização estimula, com efeito, a criação de poderes supra-nacionais  subvertendo, assim, a 'relação de representação' política que associa, directamente e através da magia do voto, o eleitor ao eleito. Esta magia, também baseada numa proximidade social suposta através do uso da mesma língua, torna-se insustentável a uma escala continental ou internacional. Esta insustentabilidade impõe o problema da reestruturação dos sistemas políticos democráticos assentes na dimensão nacional. Contudo, no plano económico reforça-se, por antecipação, a emergência de concertações e de acordos regionais, geralmente entre países vizinhos (anteriormente países rivais, ou até inimigos, no âmbito da tradição histórica da afirmação das nacionalidades). Também na Europa se reforçou a união económica, através da interdependência dos mercados e da moeda única, muito mais que uma união política assente em direitos de cidadania europeia, direitos que parecem estar longe de qualquer expressão real e significativa. A lassidão de uma união europeia (que tarda em ser social) não encontra uma possível causa nos nacionalismos, mas na inércia de uma tradicional 'relação de representação' política que, preservando a ilusão da proximidade social, apenas se revê na transformação dos votos em mandatos nacionais - os níveis de abstenção em eleições europeias são, de facto, insuportáveis. Apesar da resistência a um federalismo tardio, na Europa nacionalismos estão moribundos. Os nacionalismos não passam de recriações autoritárias que unem, curiosamente, as esquerdas tradicionais (que abandonam o 'internacionalismo operário', à falta de uma Internacional que belisque o capitalismo triunfante) a direitas absurdas. Estas remetem-se para o ódio às minorias étnicas, por falta de um inimigo internacional e poderoso. A direita absurda redescobre, assim, nas minorias de imigrantes o 'inimigo interno' adequado à sua propaganda nacionalis. As democracias, por reacção aos extremismos, encontram-se então dependentes do pragmatismo dos grandes Partidos que conseguem apelar apesar de tudo, a maiorias confortáveis ou a coligações de circunstância,  na convicção de que o eleitorado pretende acima de tudo a estabilidade.  Mas qual o preço da estabilidade política? A ditadura dos directórios dos grandes Partidos e o definhar do direito à diferença... de uma diferença  que se situe 'para além da esquerda e da direita' e para além da caça ao  voto, jogo eleitoral apenas propício aos Partidos com vocação maioritária. 
Que soluções políticas e espectros eleitorais poderão, no entanto   recuperar o projecto emancipador da utopia? De uma utopia que anuncie, realisticamente, a destradicionalização das sociedades modernas e a desnaturação da natureza, para melhor sugerir a plasticidade da História e a incerteza dos amanhãs. Porque os sistemas democráticos actuais parecem incapazes de renovar o projecto utópico da construção dos 'amanhãs que cantam'. Apenas o aprofundamento do exercício dos direitos de cidadania pode contrariar a crescente vulnerabilidade dos sistemas democráticos que se converteram em regimes de regulação de um capitalismo feroz. Aprofundamento dos direitos de cidadania a espaços sociais que continuam imunes ao pluralismo democrático e à iniciativa dialógica: no interior das empresas (onde a cidadania se reduz, muitas vezes, ao cumprimento de horários e de tarefas impostas) e no interior das famílias (marcadas, ainda, por um modelo católico dominante e demograficamente irresponsável). Porque o futuro ou é democraticamente discutido ou expressará uma  arrepiante e orwelliana imagem de sociedades segmentadas, esquizofrenicamente, entre uma minoria privilegiada e uma maioria de homens e mulheres sem-abrigo e sem direitos.

autor: António José Menezes

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Cultura e Conhecimento - parte 1

"Se tiverem pão e se eu tiver um euro, e se eu vos comprar o pão, eu ficarei com o pão e vocês com o euro e vemos nesta troca um equilíbrio: A tem um euro, B um pão. Mas se vocês têm um soneto de Verlaine, ou o Teorema de Pitágoras e eu não tenho nada, se vocês me ensinam, no final desta troca eu terei o soneto e o teorema, mas vocês também. No primeiro caso há um equilíbrio, é a mercadoria, no segundo há um crescimento, é a cultura."
Michel Serres
 
Quando nos confrontamos com uma crise como a que vivemos e que põe em causa tanto o modelo de desenvolvimento dominante, como o modelo de sociedade, e quando nos apercebemos que os instrumentos de análise da crise só nos permitem ter uma visão sectorial ou disciplinar da realidade.
 
Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo - Salvador Dalí
 
Quando temos consciência de que o grande défice dos dias de hoje é o défice de inteligência das elites, a sua incapacidade para darem espaço aos projectos inovadores que por todo o lado vão emergindo, de compreender a riqueza das propostas e das experiências de inovação que quotidianamente se fazem em todas as dimensões da vida social.
Quando sabemos que o futuro só se constrói se solidamente suportado na memória e na história, e hoje é dominante a prática do esquecimento, a necessidade de cada um se afirmar na prática do esquecimento do que foi feito, da história.
Quando toda a gente, das empresas às universidades, das estruturas públicas às privadas, se fala da necessidade de se formarem cidadãos autónomos e livres, com opiniões próprias, com uma forte inteligência sensível, com uma grande flexibilidade e abertura de pensamento, única forma de respondermos, individual e criativamente, à imprevisibilidade do mundo e aos desafios dos futuros possíveis.
Quando sabemos que não haverá mudança se ela não passar pela transformação dos homens e que os homens só mudam pela demonstração da superioridade de um modelo intelectual, uma mudança cada vez mais urgente pois o "mundo do futuro será uma batalha cada vez mais exigente contra as limitações de nossa própria inteligência, e não uma confortável rede em que nos podemos deitar para esperar por robôs escravos.” como escreve Richard Barbrook no seu livro Futuros Imaginários - Das Máquinas Pensantes à Aldeia Global.
É altura de perguntar onde está a dimensão social capaz de criar condições para formar cidadãos e comunidades abertas à mudança, capazes de encontrar múltiplas respostas para a diversidade dos problemas com que, a cada momento, nos confrontamos e de inventar futuros possíveis? Uma dimensão social que incentive a construção de novos instrumentos de análise, de um novo quadro de referência, potenciando o reforço do papel da inteligência em todos os processos de intervenção humana, pela modificação radical do nosso quadro de pensamento e dos actuais modelos de desenvolvimento.
Esta dimensão só a encontramos na cultura que é, ao mesmo tempo, memória e tradição, o cimento que suporta toda a estrutura social e lhe dá identidade, e espaço de encontro connosco e de criação das condições para a descoberta e a invenção das múltiplas saídas para a crise, em suma, a bússola duma sociedade ou o seu GPS que deve estar presente em todas as áreas da governação e dar um sentido de unidade e coerência a um projecto de futuro.
A cultura é aqui assumida como conhecimento, onde se ligam as artes com as ciências e as tecnologias, o futuro com a memória, dando corpo a uma visão transdisciplinar capaz de construir os alicerces dum novo tempo. É efectivamente na dimensão cultural que vamos encontrar os instrumentos que nos permitem ter uma ideia da totalidade, uma visão holográfica de um mundo onde o homem deve voltar a ser o centro de todas as coisas, onde a sociedade seja vista na sua globalidade e não como somatório de áreas do conhecimento ou corporações.
A cultura é o espaço onde se defende e afirma a identidade, a memória e o património de um povo e de um país, onde, se aprofunda a inovação e se inventam/ficcionam os futuros possíveis, onde todos aqueles que experimentam e criam o novo têm um lugar privilegiado, sejam artistas, cientistas, filósofos, romancistas, onde as redes internacionais sejam redes do conhecimento e da criação do novo, do futuro. Rui Tavares concretiza duma forma exemplar a ideia da cultura enquanto conhecimento: “Hoje, diz-se, vivemos na sociedade do conhecimento; a questão central é ter uma ideia de Portugal na sociedade do conhecimento. Pois bem, diria Pombal: se essa é a questão central, temos de voltar a colocá-la no centro. No centro simbólico, político - e no centro propriamente dito da cidade”.
Daí que o combate por um projecto cultural deve passar por todos os poros e interstícios da vida quotidiana, para que a cultura seja um elemento capaz de mudar, ao mesmo tempo, a sociedade e a vida. Só com uma dimensão cultural enquanto realidade que atravessa todos os domínios do social e nos incentiva e obriga a ultrapassar as visões redutoras ainda dominantes na nossa sociedade, poderemos inventar outras realidades.

autor: Carlos Fragateiro

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Habitação a Custos Controlados – uma oportunidade por aproveitar

Mesmo nos dias que correm, o conceito de “Habitação a Custos Controlados” ainda causa estranheza por Portugal. Muitos confundem o termo com “Habitação Social”. Apesar disso, a legislação nacional que trata o assunto surgiu nos anos 80 e continuou a especificar-se ao longo dos anos 90 do século passado. Ou seja, o conceito não tem nada de novo. Mas não perdemos nada em apresenta-lo para que o possamos conhecer melhor e discutir. 

% de produto líquido produzido por sector de actividade em 2009 - fonte: Pordata
Primeiro, apesar do conceito não ser novo, não é fácil encontrar uma definição absoluta. No Portal do Cidadão existem uma definição que, apesar de correcta, não revela todas o potencial do conceito, algo que diz mais ou menos isto: Habitações de Custos Controlados (HCC) são habitações construídas com o apoio do Estado, que, para o efeito, concede benefícios fiscais e financeiros. Por o conceito significar muito mais e abrir muitas perspectivas para além das referidas - que até podem soar a "subsidio-dependência" -, testo e apresento aqui uma (re)definição, tendo em conta o modo como todo o sector imobiliário e das construção poderia ser reformulado para maior benefício dos cidadãos.  Faço então a minha proposta de definição, com evidentes fins ideológicos e políticos, para "habitação a custos Controlados": Construção de habitações em que os custos para o utilizador/residente sejam controlados de modo a evitar a especulação imobiliária, garantindo qualidade das soluções construtivas e materiais utilizados (por parte de entidade promotora pública ou cooperativa/mutualista).
Esta definição foca, muito particularmente, a possibilidade em se poder evitar a especulação imobiliária. Essa possibilidade seria de facto benéfica para o cidadão comum e liga-se evidentemente ao pendor, tradicional, de regulação dos mercados que o Socialismo Democrático assume enquanto ideologia, com o intuito de proteger o bem-estar e qualidade de vida dos cidadãos em detrimento dos especuladores. Mas será isso possível ou até pertinente?
Atendendo à realidade nacional, especialmente quando se perde capacidade de consumo e o acesso ao financiamento a crédito é cada vez mais restrito, é imperativo adoptar comportamentos sustentáveis em todas as áreas. Aliás, mesmo se uma "crise" não vigorasse, a boa gestão - sustentável - deveriam ser sempre o fio condutor de governação das coisas públicas e privadas.
Mas vamos a números. A actividade da construção representa 10,1% do total da actividade económica (1) e quando somamos os calores líquidos da actividade da construção e imobiliário o valor percentual quase chega aos 25% em alguns anos (1). Olhando agora para os custos para o consumidor, segundo publicação oficial do INE (2) os custos, proporcionais, em adquirir ou arrendar habitação, aumentaram consideravelmente a partir dos anos 80 até ao presente. Sendo isso acompanhado de um crescimento fulgurante do sector da construção e do imobiliário, tal como o crescimento da especulação imobiliária. Ou seja, muito dos aumentos destes custos transitaram directamente para as famílias. 

crescimento da população e número de fogos nos último 40 anos - fonte: Pordata
Por outro lado, a "explosão" da actividade de construção em Portugal teve, de um modo muito evidente, um imenso impacto no (des)ordenamento e (infra-)urbanização do território. São vários os autores e obras (3)(4) que referem a incapacidade, hoje e no passado, de planear e construir cidades de um modo sustentável e equilibrado. Os Planos Directores Municipais (PDM) surgiram tardiamente e, em muitos casos, serviram apenas para legalizar territórios “mal urbanizados”(3)(4). Em muitos casos os solos encontravam-se já excessivamente ocupados, sem equipamentos, com infra-estruturas e zonas verdes adequadas; ou então com uma ocupação urbana tão rarefeita e dispersa que que se torna insustentável(5). No fundo, o Estado central e o Poder Local perderam, por interesse (pois dependiam financeiramente da colecta das taxas processos de legalização dos novos empreendimentos)(3) e por incapacidade (falta de meios de fiscalização) (3), o controlo da situação e, regra geral, imperou a desregulamentação e a falta de planeamento que garantisse a sustentabilidade ambiental, económica e social. Reinou a especulação e a desregulamentação.
Vista do cento de Amesterdão
Voltando à Construção a Custos Controlados, quando o Estado, as Autarquias locais, as Cooperativas ou Mutualistas - todas elas entidades que não primam sobretudo pelo lucro financeiro (6) -, abrir-se-á uma nova oportunidade de ter melhor habitação e melhores cidades. Só haveriam novas construções se fossem os organismos públicos a decretar quais as necessidades de expansão (ver caso da história urbana de Amesterdão); seriam as mesmas entidades públicas, cooperativas e mutualistas a lançar os empreendimentos com base em projectos sustentáveis em que os preços reflectissem o valor real do novo património edificado; a fase de projecto e construção seria acompanhada por várias entidades onde o objectivo fosse a qualidade e controlo de custos para os utilizadores finais.  Claro que estas hipóteses e metodologias teriam de ser flexíveis e não fechar o funcionamento em paralelo de um mercado livre imobiliário; os dois modelos poderiam coexistir e os cidadãos optar por a habitação a custos controlados de modo a garantir o acesso a habitação de qualidade "standard pagável". De muitas outras possibilidades, essa pode ser um modo de evitar que o lucro especulativo condicione todos os preços e acabasse por permitir que uma franja da população possa efectivamente sustentar as suas necessidades de habitação. Os custos para os compradores podem ser reduzidos e a qualidade garantida. Mas para isso tem de haver capacidade de investimento das entidades públicas, cooperativas e mutualistas que assumam esse papel. Trata-se de  uma questão de investimento e prioridades, de ter meios para atingir determinados fins.
Para além da garantia dos preços, este modo de gerir a construção permitiria de facto planear e pensar as cidades, evitando a disfuncionalidade dos tecidos urbanos. Será inegável que a especulação, a desregulamentação e falta de controlo dos projectos (desde a facção até toda a urbanização), contribuem fortemente para o mau funcionamento e desempenho ambiental e social das cidades, já para não falar nos evitáveis custos de infra-estruturação (7)( ver texto: Transportes urbanos e habitação - uma relação indissociável de custos), manutenção e seu funcionamento - quer seja como edifício isolados ou como malhar urbanas de conjunto.

Referências bibliográficas:
(1) http://www.pordata.pt
(2) Alojamentos clássicos, ocupados pelo proprietário, por época de construção dos edifícios, por escalões de encargos (em %), Portugal, 2001.“A maior parte das famílias alojadas em edifícios construídos até 1945, tinha encargos mensais por compra mais baixos, com destaque para o segundo escalão mais baixo (59,86 a 199,51 euros). Nos edifícios construídos após 1945, os alojamentos foram adquiridos principalmente por famílias com encargos mais elevados, oscilando os valores mensais entre os 199,52 e os 399,03 euros". À medida que a época de construção dos edifícios se torna mais recente, diminui o número de famílias com o nível de encargos mais baixos, e simultaneamente, aumenta o número de famílias com encargos mais elevados, principalmente em alojamentos construídos nos anos noventa do século passado”. Fonte: censos 2001.
(3) Portas, N., Á. Cabral, et al. (2007). Políticas Urbanas - Tendências, estratégias e oportunidades. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
(4) Domingues, Álvaro, et al. (2006). 30 Anos Transformação Urbana em Portugal. Lisboa, Argumentum.
(5) Paiva, J. V., J. Aguiar, et al. (2006). Guia Técnico de Reabilitação Habitacional. Lisboa, LNEC.
(6) A economia social - uma alternativa ao capitalismo (mais informação em: http://pt.mondediplo.com/spip.php?article628)
(7) Murta, Daniel (2010). Quilómetros, Euros e Pouca Terra - Manual de Economia dos Transportes. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra.


autor: Micael Sousa
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