Ao reflectir sobre um assunto, não devemos desprezar o trabalho de todos que já reflectirem sobre ele. Isto parece tão óbvio que deveria ser supérfluo dizê-lo. Infelizmente, neste estranho momento histórico, parece necessário reafirmá-lo. Não parece razoável que as decisões tomadas no âmbito do socialismo moderno ignorem a tradição socialista, de Bernstein a John Roemer, nem ignorem qualquer outra grande tradição de pensamento, como o liberalismo de Locke, Voltaire e tantos outros incontornáveis contributos. Infelizmente a auto-denominada “terceira via” comportou-se de forma diametralmente oposta.
Seria de esperar que a tradição fosse criticada, demonstrando a sua insuficiência, antes de se perfilharem os pontos de vista daqueles que sempre se colocaram contra essa tradição. Pelo contrário, a “terceira via”, do Lorde Anthony Giddens, abraça, com entusiasmo, posições neo-liberais, excluindo, por exemplo, qualquer hipótese de economia pública de mercado, sem análise aos argumentos dos defensores desta (isto é, dos defensores do “socialismo de mercado”). Os exemplos deste desprezo pela cultura são muitos e em muitos temas, na “terceira via” e, infelizmente, nalgumas práticas dos partidos socialistas actuais. A cultura exige que as novas propostas, da actualidade, sejam fundamentadas e melhoradas com base no conhecimento já acumulado ou, pelo menos, exigem que o abandono dos caminhos traçados pela tradição se faça após crítica desta. Não basta cavalgar a onda da opinião mais corrente, mesmo quando complementada por livros pretensamente abrangentes ou por tecnocracias economicistas que escondem os seus pressupostos ideológicos.
Como é possível que as teorias do socialismo de mercado sejam, hoje, quase completamente ignoradas na Europa, apesar de serem dos principais temas de debate dos académicos, norte americanos, do grupo Real Utopia?
Como é possível que as ideias de democracia participativa e cognitiva, bem como o debate sobre os contornos que estas devem assumir numa democracia socialista, não passem de notas de rodapé nos programas e debates socialistas, apesar deste ser um dos campos nos quais mais se escreve e investiga, desde Held a Fishkin? Será possível um sistema político com cidadãos realmente informados que não passe por múltiplos fóruns temáticos especializados, constituídos por cidadãos, com efectivo poder descentralizado?
Como é possível que os media continuem a passar encapotadas mensagens ideológicas, a título de uma pretensa neutralidade objectiva que realmente nunca existiu, até porque os interesses políticos dos seus proprietários estão ligados aos interesses das grandes concentrações de capitais? Para quando um verdadeiro pluralismo, com possibilidade de todas as forças políticas serem ouvidas, efectivamente, sobre os conteúdos dos media que veiculem mais importantes mensagens ideológicas? Será possível a democracia sem democracia nos media? Haverá dúvida que a política está à mercê do espectáculo dos media, nos quais o sensacionalismo, a exploração do sadismo, a superficialidade e a repetição substituem o estudo e a solidez dos argumentos? Alguém pensa ser possível que se informem os cidadãos passando, de três em três minutos, para outro assunto sem se aprofundar nada? Porque são esquecidas as várias teorias críticas sobre os media, desde Adorno até ao liberal Karl Popper?
Será que, também, estamos satisfeitos com o indecoroso espectáculo dos media que ignoram os efeitos das suas peças recreativas na sustentabilidade dos valores e da ética?
Como é possível que os media centrem a cultura actual na procura de poder e de consumo, sem uma oposição sistemática do campo socialista que quase parece ignorar todo o contributo da teoria crítica e dos valores éticos que veicula, desde Marcuse a Anselm Jappe?
Como é possível que, apesar de Bernstein e Rawls, não se continue a procura da síntese entre liberalismo e socialismo?
Como é possível que, depois de Kierkegaard, Freud, Gordon Allport e Edward Wilson, entre tantos, não se procurem as pontes entre o idealismo ideológico e o idealismo religioso, entre oriente e ocidente, entre o Concílio do Vaticano II, teologia da libertação e socialismo europeu?
Como é possível que as teorizações sobre a economia do conhecimento, de Arrow a Paul Romer, mostrando as novas insuficiências do sistema de mercado puro, não mobilizem os socialistas em torno de uma economia de transparência, com instituições e regras que facilitam a efectiva apropriação da inovação pela multiplicidade das empresas, bem como um benchmarking amplo e sistemático.
Em suma, como foi possível tanta reinvenção da roda, pela “terceira via”, desaguando na quadrada roda neo-liberal que pouco mais é que o simplismo primitivista da lei do mais forte? Talvez a “terceira via” devesse ser chamada “terceira roda”, do triciclo no qual se quis montar o socialismo a percorrer o íngreme caminho da história.
Efectivamente não sei como explicar tanta obliteração da cultura. Suponho que a enorme campanha mediática, contra o socialismo, orquestrada a partir da oportunidade psicológica da queda do muro de Berlim, tenha desempenhado papel importante, apesar da evidência de que o socialismo democrático, gradual e humanista, de Bernstein, sempre se opôs ao belicismo de Marx expresso, por Lenin e Stalin, no comunismo soviético. Essa evidência foi irrelevante para uma enorme campanha mundial da pior propaganda, contra todo o socialismo, que hoje dá os seus frutos, plenos de veneno e destruição. De facto, os Estados estão à mercê da sofreguidão e cobiça dos mercados financeiros, apesar dos Estados terem, muito recentemente, salvo estes mercados da implosão. A classe política, na qual o povo se devia rever, é detestada pelo próprio povo, o Estado Social aproxima-se da insolvência, o crescimento económico entrou numa dança recessiva na qual só alguns poderosos ganham, as pequenas e médias empresas lutam contra a sufocação por elevados impostos e por condições leoninas impostas pelas grandes concentrações empresariais, a protecção do ambiente é adiada sine die, não se vê como resolver a insegurança, o fanatismo crescente e a degradação da ética. Os partidos socialistas continuam, corajosamente, a defender o Estado Social mas são obrigados a fazê-lo recuando de trincheira em trincheira. Contudo, a conjunção de tradição, ciência, cultura e criatividade encontrou já imensas ideias novas que, todavia, continuam a ser ignoradas pelos media e, até, por largos segmentos da classe política.
Exige-se mais cultura, mais sério, sistemático e profundo debate e menos mediatismo e propaganda. Em boa hora foi criada a Fundação Res Publica, devendo ser apetrechada dos necessários meios e complementada com estratégias de maior risco criativo e desafio paradigmático. Exige-se um socialismo cultural para dar ao mundo uma esperança reformista, gradual mas profunda e inovadora, em respeito por todas as classes sociais, crenças e ideologias. Um socialismo reconstruído com ideias inovadoras e criatividade, amigo do brainstorming, sem ninguém ter receio de errar ou chocar mas em diálogo com a tolerância, com as múltiplas tradições e com a diversidade dos campos do conhecimento moderno.
Multidão junto à "Mona Lisa" no museu do Louvre em Paris |
Como é possível que as teorias do socialismo de mercado sejam, hoje, quase completamente ignoradas na Europa, apesar de serem dos principais temas de debate dos académicos, norte americanos, do grupo Real Utopia?
Como é possível que as ideias de democracia participativa e cognitiva, bem como o debate sobre os contornos que estas devem assumir numa democracia socialista, não passem de notas de rodapé nos programas e debates socialistas, apesar deste ser um dos campos nos quais mais se escreve e investiga, desde Held a Fishkin? Será possível um sistema político com cidadãos realmente informados que não passe por múltiplos fóruns temáticos especializados, constituídos por cidadãos, com efectivo poder descentralizado?
Como é possível que os media continuem a passar encapotadas mensagens ideológicas, a título de uma pretensa neutralidade objectiva que realmente nunca existiu, até porque os interesses políticos dos seus proprietários estão ligados aos interesses das grandes concentrações de capitais? Para quando um verdadeiro pluralismo, com possibilidade de todas as forças políticas serem ouvidas, efectivamente, sobre os conteúdos dos media que veiculem mais importantes mensagens ideológicas? Será possível a democracia sem democracia nos media? Haverá dúvida que a política está à mercê do espectáculo dos media, nos quais o sensacionalismo, a exploração do sadismo, a superficialidade e a repetição substituem o estudo e a solidez dos argumentos? Alguém pensa ser possível que se informem os cidadãos passando, de três em três minutos, para outro assunto sem se aprofundar nada? Porque são esquecidas as várias teorias críticas sobre os media, desde Adorno até ao liberal Karl Popper?
Será que, também, estamos satisfeitos com o indecoroso espectáculo dos media que ignoram os efeitos das suas peças recreativas na sustentabilidade dos valores e da ética?
Como é possível que os media centrem a cultura actual na procura de poder e de consumo, sem uma oposição sistemática do campo socialista que quase parece ignorar todo o contributo da teoria crítica e dos valores éticos que veicula, desde Marcuse a Anselm Jappe?
Como é possível que, apesar de Bernstein e Rawls, não se continue a procura da síntese entre liberalismo e socialismo?
Como é possível que, depois de Kierkegaard, Freud, Gordon Allport e Edward Wilson, entre tantos, não se procurem as pontes entre o idealismo ideológico e o idealismo religioso, entre oriente e ocidente, entre o Concílio do Vaticano II, teologia da libertação e socialismo europeu?
Como é possível que as teorizações sobre a economia do conhecimento, de Arrow a Paul Romer, mostrando as novas insuficiências do sistema de mercado puro, não mobilizem os socialistas em torno de uma economia de transparência, com instituições e regras que facilitam a efectiva apropriação da inovação pela multiplicidade das empresas, bem como um benchmarking amplo e sistemático.
Em suma, como foi possível tanta reinvenção da roda, pela “terceira via”, desaguando na quadrada roda neo-liberal que pouco mais é que o simplismo primitivista da lei do mais forte? Talvez a “terceira via” devesse ser chamada “terceira roda”, do triciclo no qual se quis montar o socialismo a percorrer o íngreme caminho da história.
Efectivamente não sei como explicar tanta obliteração da cultura. Suponho que a enorme campanha mediática, contra o socialismo, orquestrada a partir da oportunidade psicológica da queda do muro de Berlim, tenha desempenhado papel importante, apesar da evidência de que o socialismo democrático, gradual e humanista, de Bernstein, sempre se opôs ao belicismo de Marx expresso, por Lenin e Stalin, no comunismo soviético. Essa evidência foi irrelevante para uma enorme campanha mundial da pior propaganda, contra todo o socialismo, que hoje dá os seus frutos, plenos de veneno e destruição. De facto, os Estados estão à mercê da sofreguidão e cobiça dos mercados financeiros, apesar dos Estados terem, muito recentemente, salvo estes mercados da implosão. A classe política, na qual o povo se devia rever, é detestada pelo próprio povo, o Estado Social aproxima-se da insolvência, o crescimento económico entrou numa dança recessiva na qual só alguns poderosos ganham, as pequenas e médias empresas lutam contra a sufocação por elevados impostos e por condições leoninas impostas pelas grandes concentrações empresariais, a protecção do ambiente é adiada sine die, não se vê como resolver a insegurança, o fanatismo crescente e a degradação da ética. Os partidos socialistas continuam, corajosamente, a defender o Estado Social mas são obrigados a fazê-lo recuando de trincheira em trincheira. Contudo, a conjunção de tradição, ciência, cultura e criatividade encontrou já imensas ideias novas que, todavia, continuam a ser ignoradas pelos media e, até, por largos segmentos da classe política.
Escola de Atenas - Rafael |
autor: José Nuno Lacerda Fonseca