sexta-feira, 7 de agosto de 2020

As Ilusões que nos sustentam e nos limitam: um ensaio de mitanálise

No contexto da análise da ilusão social, considera-se aqui que existem tipos de programas neurais que levam o indivíduo a associações mentais e comportamentos que criam a perceção duma realidade fictícia, de forma a ultrapassar a imanente ansiedade existencial. Esta realidade fictícia é aquela em que vive a sociedade, hipotecando a razão, a criatividade e a responsabilidade. Trata-se do que se passará a apelidar de místicas sociais, constituintes do subconsciente cultural. Estas místicas sociais serão, nomeadamente, dos seguintes tipos. 
1. Niilismo, desvalorizando a importância e significado de objetivos humanos e sociais que não conseguimos obter ou realizar, chegando ao ponto de negar o valor de qualquer objetivo para além da sobrevivência e até mesmo desta. 
2. Rotinização, revivalismo e acomodação em tudo o que ficou distante dos episódios amargos da vida de cada um. 
3. Exo-expiação, procurar culpar os outros das limitações e incapacidades do próprio. 
4. Maledicência e denegrir outros para uma auto valorização relativa. 
5. Catarse, teatralizando o reviver de momentos amargos e simulando soluções positivas, muito frequente no usufruto de obras de arte de caráter dramático e identificação com seres sofredores que ultrapassaram esses momentos, como certas perceções do “self made man”. 
6. Identificação com o poder, sendo o mais frequente a identificação com entidades totalmente poderosas e até divinizadas, assumindo autoritarismo, arrogância, social e intelectual desprezando conhecimentos e experiências dos outros, agressão e imposição. Igualmente frequente é a identificação com níveis elevados do poder e status social, através do consumismo sumptuário. 

Outras formas recorrentes são a identificação com grupos considerados de beleza física e atratividade, identificação com figuras parentais ingenuamente concebidas como totalmente poderosas, sonhos familiares dinásticos, identificação com tribos culturais e clubistas, etc. A identificação com o cientista, o tecnólogo, o sábio, o explorador e outros arquétipos comportamentais, pode, também, ser entendida como uma ilusão. Também neste caso, uma ilusão de identificação com a conotação de poder que a sociedade lhes outorga. Identificações conjugadas, como a identificação com guerreiros que almejam o paraíso metafísico concedido por divindades poderosas, são místicas intensificadas. Por exemplo, a do kamikaze ou do viking. 

Também os jogos são, frequentemente, processos místicos, sobretudo de identificação com o poder e de catarse. Aqui é entendido que os programas neurais de simulação das místicas sociais são indispensáveis ao equilíbrio emocional face a um mundo imprevisível, agressivo e assombrado pelo espectro da morte. Este equilíbrio é considerado essencial para se poder fazer face à realidade e exercer a racionalidade quotidiana. Entende-se que os programas de simulação mística são como o sonho acordado que retempera o psiquismo, para assim se poder voltar a olhar para a realidade na sua plenitude. 

Todavia, os programas de simulação mística podem ocupar um espaço excessivo e ter o efeito oposto, levando a alienação vasta, acarretando desresponsabilização cívica, social e política, agressividade irrefletida, ausência de racionalidade filosófica e, até, limitações da racionalidade prática em diversas situações.  As simulações místicas podem, também, reforçar um quadro de identificação e obsessão com o poder em geral, hipotecando a ética e destruindo a responsabilidade cívica, bem como podem afastar o indivíduo da vida autêntica do ser em si (usufruto do bem estar puramente resultante de saúde plena e boa forma), do ser para os outros (empatia), do ser conhecer (prazer em conhecer e experienciar, patente, por exemplo, na criança que brinca) e do ser estético (usufruto do belo), bem como do ser para si que resulta da síntese destas formas da vida autêntica. As místicas podem, ainda, ter o efeito de afastar o indivíduo da análise dos seus traumas reais, tornando-o para sempre prisioneiro dos seus efeitos.

Estabelece-se, assim, no contexto a análise das místicas, a relação entre a ansiedade existencial e o conceito freudiano de trauma. Para evitar todos estes inconvenientes da traumatologia mística é necessário equilibrar momentos de mística e momentos de racionalidade sem véus, constituindo um equilíbrio antrópico. Um nível elevado deste equilíbrio permite uma vida autêntica, uma visão ampla da realidade, possibilitando a filosofia criativa e viva (tomar consciência dos pressupostos das nossas emoções e pensamentos, abrindo assim a encontrar novos caminhos), tão importante nas decisões pessoais, sociais e políticas. Promove, portanto, a criatividade em geral e devida responsabilidade, cívica e interventiva, pelo que acontece no mundo, na comunidade, na organização em que o indivíduo trabalha, na família e no futuro individual. 

Deste modo, o locus da responsabilidade individual alarga-se, em vários graus, ao longo prazo e a círculos muito mais vastos do que o imediatismo da sobrevivência individual. Esta responsabilidade, quando sinérgica com a desinflação da obsessão pelo poder e da vida competitiva, torna-se responsabilidade cívica e não uma responsabilidade aparente que, de facto, é egoísta, competitiva e manipulativa. Os programas superiores de simulação mística estão contidos nas religiões, permitindo a sensação de acesso a um poder divino (se as religiões coincidirem com a realidade metafísica as simulações terão, obviamente, de ser considerados processos reais de acesso, no todo ou em parte). Fazem, também, parte deste tipo de simulações superiores as ideologias, bem como as artes. Além do seu potencial apaziguador as simulações superiores possuem, também, o potencial para induzirem, diretamente, ética e criatividade, ao contrário das místicas primitivas ou mitomanias sociais dos tipos antes referidos, muito mais limitadas neste aspeto. Geridas da forma mais conveniente as místicas superiores tornam-se sublimações místicas superlativas ao permitirem evitar todos os possíveis inconvenientes antes referidos das místicas sociais. 

Todavia, em geral, qualquer mística pode ser gerida de forma a conter suficientemente a alienação e desenvolver a ética e a responsabilidade. Por exemplo, a identificação com países ou corporações poderosas ou ilusoriamente poderosas pode ser uma forma de promover atitudes de cooperação e espírito de equipa, primeiramente entre membros desses países e corporações, mais tarde podendo alargar-se. Visto de forma ainda mais geral, as limitações do indivíduo mistificado surgem porque este se agarra a místicas em vez de olhar a realidade na totalidade da amplidão das suas variáveis. Uma das expressões deste fechamento é o deslizamento teleológico que acontece quando as místicas induzem a entender os meios como fins e assim reduzir o leque das possibilidades de solução de problemas e escolha de caminhos existenciais. Por exemplo, a identificação com os ricos toma a riqueza (ou certo tipo de posses materiais) como fim fundamental da existência (apelidável de consumismo), a identificação com seres socialmente considerados fisicamente atraentes diviniza certos padrões de beleza física como absolutos. 

Constitui-os, assim, como um fim existencial que garante a felicidade (numa subjugação extrema a este tipo de vaidade). A identificação com figuras de referência da infância cria a necessidade subconsciente de imitação rígida, a identificação com divindades agressivas ou com figuras históricas ou parentais, com poder social entendido como quase absoluto, induz a autoritarismo, arrogância, agressão e imposição, constituindo-se como objetivo existencial este estereótipo de poder total. 

A identificação com clãs culturais fecha os fins existenciais na imitação dos comportamentos diferenciadores destes grupos. Numa perspetiva inspirada em Adler, as místicas podem surgir como compensação da autolimitação do indivíduo em tarefas nas quais falhou, mas que hoje talvez já não falhasse, por a situação externa e as suas próprias competências já terem evoluído, sem que disso se tivesse realmente apercebido. A mística compensatória afasta da possibilidade de introspeção que poderia consciencializar este atavismo. A reflexão sobre os fechamentos das místicas constitui a filosofia viva que realiza a recuperação e abertura teleológica e racional. 

O equilíbrio entre mística e realidade é muito complexo, mas, em primeira instância, passa pela consciência dos processos psicológicos e culturais de construção das místicas, bem como a consciência das suas vantagens e perigos. Até certo ponto, pode considerar-se que grande parte das místicas se constituem através de processos semelhantes aos da aprendizagem por modelagem e imitação de personagens e comportamentos de referência, na linha de pensamento de Albert Bandura, embora os processos das místicas não se restrinjam aos processos de desenvolvimento social de crianças e jovens. De facto, trata-se de processo gerais de aprendizagem social, no sentido de Julian Rotler, nos quais os indivíduos imitam os comportamentos observados que relacionam com o sucesso social ou dos grupos de proteção mútua, como a família, nação, clube, classe social, corporação, etc. 

 O conceito de “locus de controlo interno”, de Julian Rotler, poder ser também chamado à colação. De facto, o locus de responsabilidade global é o cúmulo da ética e da capacidade de olhar o real sem véus protetores e ilusórios. Embora exista algum paralelismo com o conceito de “locus de controlo interno”, de Julian Rotler, este último contém uma componente de ilusão de poder (do indivíduo que acha que controla tudo na sua vida), enquanto o “locus de responsabilidade” é uma responsabilidade que implica a compreensão que só será modeladora do mundo se for exercida coletivamente ou se contribuir para uma ação cívica mais coletiva. 

 Por outro lado, os conhecidos processos de conformismo aos grupos dominantes, na perspetiva de Muzafer Sherifn e Salomon Asch e, sobretudo as tendências de renúncia a valores para obedecer à autoridade (Stanley Miligram), bem como a tendência para o abuso do poder (evidenciada na experiência de Philip Zimbrano), identificam um quadro propício a processos místico de identificação com o poder social instituído. Assim a tendência para certas místicas pode ser entendida na categoria dos impulsos básicos, conformados, todavia, pela história concreta do poder nas sociedades e constituindo a referida aprendizagem por modelação, mimetizando traços dos indivíduos poderosos ou de grupos de proteção mútua. Os resultados desta aprendizagem resultam em conjuntos de crenças e códigos comportamentais partilhados por grupos sociais, nomeadamente definidores do que é o comportamento normal (incluindo a imitação dos traços comportamentais dos poderosos) e o bom senso. 

Estamos assim no campo das representações sociais, para usar o termo vulgarizado na psicologia social, desde Serge Moscovici. A teoria do mundo justo, de Melvin Lerner, na qual constata que existe a tendência para culpabilizar os outros pelas desgraças que lhes acontecem e pelas suas fragilidades é mais uma faceta da irresponsabilidade social, sustentada na vivência das místicas primevas. Já no campo da economia comportamental, as místicas podem explicar grande parte das teses respetivas. Por exemplo, no seu artigo de 1992, Kahneman e Tversky mostraram que o coeficiente médio de aversão à perda era cerca de duas vezes maior do que a dos ganhos equivalentes. Tal poderá ser explicado pelas místicas de rotinização, revivalismo e acomodação. 

Autor: José Nuno Lacerda Fonseca.

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