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quarta-feira, 1 de junho de 2011

Mídia de espectáculo ou mídia para cidadania

Em anteriores artigos, neste blogue, apresentaram-se argumentos a favor de uma profunda reforma dos mídia e desenharam-se alguns sistemas de regulação destes. Contudo, as possibilidades de regulação são muito mais vastas e podemos ir um pouco mais longe.

Creio, por exemplo, que muitos já terão sentido a frustração dos debates televisivos raramente chegarem a uma conclusão, nem a um verdadeiro esclarecimento. Assuntos complexos parecem adequar-se mal às dinâmicas e espectáculo dos mídia. Não se deveriam evitar temas muito vastos, circunscrevendo a temáticas mais específicas, de forma a ser mais fácil um esclarecimento mais conclusivo? Porque não serem organizados debates, ao longo do ano, tendo cada um como tema o campo de actuação de uma Direcção Geral da administração pública ou Secretaria de Estado? Seriam mesmo assim as temáticas excessivamente vastas? Teríamos de definir os temas em função dos temas de cada departamento de cada Direcção Geral ou, indo ainda mais longe, procurar consensos multipartidários sobre qual o tema a debater de entre os temas de cada departamento? Seria que em cada semana todos os mídia deveriam dedicar especial atenção ao tema da semana? Sobre cada tema, deveria cada partido político apresentar uma proposta concreta a debate? Estas propostas e respectivas argumentações deveriam ser disponibilizadas com bastante antecedência para que o público que o desejar as possa estudar? Sendo possível votação telemática, seria esta uma forma legítima de democracia directa? Os votos deveriam ser ponderados em função do conhecimento que cada votante demonstrou, em testes para o efeito, sobre o tema em questão? Para evitar corporativismo, deveriam os profissionais de cada sector em debate votar à parte do público em geral? Porque é que os mídia nunca lançaram este tipo de dinâmicas de debates organizados ou algo semelhante, em alternativa aos constantes debates de espectáculo que vêm promovendo há dezenas de anos? Que pensar sobre a eficiência deste mercado da comunicação social?

Portal "Eu Participo"
Por outro lado, a Internet tem sido vista como uma alternativa mais democrática de comunicação do que os mídia do espectáculo, dominados pelos grandes poderes económicos. Será ela mais propícia aos debates organizados? Talvez a Internet nos possibilite chegar ainda mais longe do que os debates organizados, na procura de uma maior democracia nos mídia. Seria viável que cada um de nós pudesse dispor de dois ou três votos mensais para selecionar os conteúdos da net que considerássemos mais importantes? Se os resultados desta votação fossem incorporados nos “motores de busca” tal constituiria um meio democrático de seleção e agendamento da informação? Será que assim se tornariam mais conhecidas ideias novas, importantes e desafiadoras que, de outro modo, só muito mas tarde se tornariam conhecidas da maioria do público? Será esta que esta Internet democrática é forma de ultrapassar o excesso de informação e a poluição informativa que muito interessa a quem quer que nada mude?

Voltemos agora aos mídia clássicos para abordar mais mecanismos de regulação, no sentido da educação cívica e política dos cidadãos. Quais os conhecimentos indispensáveis a um cidadão para compreender as alternativas políticas? Certamente que cada força política poderá ter opinião diferente sobre quais são. Não deveria cada partido definir quais estes conhecimentos, passando a ser obrigação dos mídia passá-los à população? Sondagens poderiam relacionar e evolução do conhecimento público destas questões com os diversos mídia, de forma a responsabilizá-los. Claro que, para evitar a propaganda conjuntural, os partidos definiriam conjuntos de conhecimentos básicos, inseridos em programas de publicitação cívica, com muito longa duração, os quais poderiam ter secções dedicadas a propostas e argumentos políticos e outras a regras e argumentações éticas.

Se nos parece importante que este tipo de conhecimentos básicos sejam garantidos aos cidadãos, certamente que gostaríamos que existisse um mecanismo que assegurasse que os mídia não passem uma visão distorcida da sociedade. Com esta preocupação, os partidos poderiam definir um conjunto de conhecimentos factuais que devem chegar à população. Complementando esta vertente, poderiam ser efectuados estudos sobre a distorção da realidade que é apresentada nos mídia. Por exemplo, seria importante saber quantos crimes, em média, são cometidos sobre cada cidadão e quantos relatos de crimes os mídia lhe fazem chegar? Quantas mentiras ditas por figuras socialmente importantes um cidadão se apercebe ao longo da vida e quantas mentiras ditas por heróis dos mídia lhe chegam? Não deveriam ser os cidadãos a decidir, de forma reflectida, quanta distorção da realidade acham conveniente?


 

O assunto da regulação da distorção leva-nos a outra importante questão. Não deveria cada partido gerir uma quota do espaço mediático, selecionando, de entre a oferta de peças recreativas, aquelas que transmitem valores e noções que considerem mais correctas, política e eticamente. Claro que uma exigência de audiência mínima teria de ser cumprida, evitando que este espaço se torne um espaço de propaganda sem valor recreativo.

A todas estas questões está subjacente a existência de um leque pluripartidário vasto, realmente expressando o pluralismo das perspectivas e as novas ideias. Contudo, sabemos, pelo menos desde 1957, com o estudo de Anthony Downs, sobre o sistema político, existirem tendências para o desaparecimento dos partidos pequenos e uma concentração em dois grandes partidos. Será que os partidos mais pequenos deveriam ter um peso desproporcionalmente maior na questão da regulação dos mídia? Novos partidos, com novas ideias, deveriam, também, beneficiar dessa discriminação positiva face ao pensamento dominante?

Claro que se conseguíssemos melhorias na propriedade mais plural dos mídia, estas questões seriam colocadas com menor preocupação. Contudo, talvez a posse dos mídia pelos seus trabalhadores, desejável mesmo que parcialmente, não modificasse totalmente as preocupações com as falhas no pluralismo, político, cultural e ético. O mesmo se poderia dizer para mídia de posse pública que, por razões óbvias, poucas garantias adicionais de pluralismo poderiam oferecer, além de que arriscavam a debilitar a racionalidade económica da gestão privada, conhecidas que são as dificuldades gestionárias do actual sistema político.

Os artigos publicados aqui sobre a questão de regulação dos mídia apontam para uns mídia tão diferentes dos actuais que chega a ser preocupante o que os mídia terão podido distorcer, manipular, política e culturalmente, bem como passar anti-valores éticos. Contudo, creio que ninguém pode ter a certeza se o fizeram com uma dimensão realmente significativa ou se a sociedade e os indivíduos têm tido recursos para contrabalançar alguns aspectos mais perigosos dos mídia, não esquecendo as enormes vantagens e potencialidades dos mídia modernos. Teremos de ter certezas neste aspecto ou o que está em causa é suficientemente perigoso para começarmos já a exigir um nível muito maior de segurança, com uma regulação dos mídia a um nível muito diferente? Não esqueçamos que a responsabilidade do actual estreitamento e perda de diversidade ideológica do sistema político, pode, em grande parte, ser atribuído aos mídia. Talvez só com mais pluralismo nos mídia se possa ir recuperando, lentamente, a verdadeira acepção do pluralismo. Acabo relembrando, de forma muito sumária, o que foi escrito no primeiro artigo sobre este tema. Como é possível que seja tão baixo o conhecimento público de ideias politicamente estruturantes, amplamente debatidas em meios académicos, como o socialismo de mercado, a economia planificada democrática, a democracia deliberativa, a assimetria informativa dos mercados, as teorias críticas dos mídia, as bases da ética e tanta outra informação indispensável a uma cidadania consciente?

autor: José Nuno Lacerda Fonseca

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