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quarta-feira, 30 de março de 2011

A actual comunicação social é inimiga da democracia e da ética

Será que quem acredita nas virtualidades do mercado pode criticar a comunicação social? Afinal é o mercado (isto é, cada um de nós) que vai escolhendo o tipo de informação e recreação que quer? Porque é que alguém pensa que o livre mercado não é suficiente para escolher a comunicação social que efectivamente as pessoas querem? Afinal o mercado é ou não a soberania do consumidor?
Existe uma velha teoria (agenda-setting) que afirma que os mídia têm uma grande margem para escolher o que vão noticiar. Isto é, podem escolher entre produtos com igual mercado e escolhem os que lhes são ideologicamente mais favoráveis. A teoria do agendamento ou agenda-setting theory, é uma teoria de comunicação formulada por Bernard Cohen, e, posteriormente, por Maxwell McCombs e Donald Shaw, na década de 1970.
As ideias básicas da teoria do agendamento podem ser atribuídas ao trabalho de Walter Lippmann. Ainda em 1922, Lippmann propôs a tese de que as pessoas não respondiam directamente aos factos do mundo real, mas sim às imagens da realidade. Os mídia teriam papel importante na geração destas imagens.
Aceitando que esta teoria encerra alguma verdade, temos de concluir que a soberania do consumidor não é completamente determinante e que portanto os mídia não respeitam integralmente o princípio da liberdade.
Contudo, as críticas aos factores de ditadura manipulativa dos mídia não acabam por aqui.

George Akerlof
Existem, também, as teorias sobre o mercado da informação que levantam sérias dúvidas se o mercado (qualquer que seja) tende a oferecer a informação necessária para o consumidor escolher entre os produtos desse mercado. A convicção de que o mercado não tende a facultar informação para o consumidor escolher, racionalmente, entre os vários bens do mercado, tem crescido. Relembremos os trabalhos dos economistas, desde Stigler, em 1961 (“The Economics of Information,” Journal of Political Economy), Arrow (no artigo, de 1963, intitulado "Uncertainty and the Welfare Economics of Medical Care", na American Economic Review) e sobretudo Akerlof (com o arrasador artigo "The Market for Lemons: Quality Uncertainty and the Market Mechanism", publicado no Quarterly Journal of Economics em 1970), até ao inconformista Stiglitz. Todos estes autores foram laureados com o Nobel. É amplamente aceite que Stiglitz, com vários outros colegas, mostrou quais as falsidades sobre a perfeição do mercado. Penso, aliás, que estes são os mais importantes economistas socialistas da actualidade, juntamente com Paul Romer, John Roemer, Samuel Bowles e Herbert Gintis (embora duvide que alguns deles se auto-denominem socialistas). 
As imperfeições informativas são tanto maiores quanto mais complexos e mais difíceis de avaliar são os produtos em questão (serviços de saúde, educação, cultura, informação, seguros, serviços financeiros e, sobretudo, os serviços recreativos e informativos dos mídia).
De facto, para fazer chegar ao consumidor a informação que permitiria a este uma racional avaliação dos produtos, as empresas teriam de assumir uma enorme campanha e uma verdadeira batalha informativa, contra idênticos intentos da concorrência. Esta batalha seria excessivamente custosa e poderia esmagar as margens de lucro. Esta batalha seria muito cara inclusive porque se teria de conquistar a atenção do consumidor que estaria a ser solicitada para diversas outras batalhas informativas, sobre a avaliação de outros produtos complexos e difíceis de avaliar.
Acresce a dificuldade do consumidor saber até que ponto a informação é fidedigna ou se está manipulada (se não mesmo falseada) devido a interesses privados, contrários ao interesse do consumidor. Para ultrapassar esta dificuldade seria preciso dar mais informação ao consumidor que provasse a credibilidade das informações fornecidas por qualquer vendedor. Tal tornaria ainda mais dispendiosa, se não mesmo impossível, esta batalha informativa.
Este conceito de batalha informativa é uma maneira de explicar esta questão que não se encontra nos autores citados e que é usada para dar uma explicação resumida.
Por outro lado, a possibilidade de cada consumidor fazer um estudo para saber qual a melhor universidade, hospital e noticiário está obviamente fora de questão. Mesmo o movimento associativo dos consumidores tem todas as limitações que advêm do problema do free rider. Isto é, ninguém confia que todos os outros também se empenharão no movimento associativo e por isso ninguém ou muito poucos se empenham. Trata-se da velha questão equacionada desde Mancur Olson (The Logic of Collective Action: Public Goods and the Theory of Groups, 1965).
Não havendo possibilidade de aceder a verdadeira informação para que o consumidor possa escolher os melhores produtos vamos ter três consequências danosas. Primeiro, não existe uma real dinâmica dos consumidores para pressionarem um aumento de qualidade dos produtos, já que eles não conseguem selecionar os melhores, no meio da confusão. Segundo, a informação emocionalmente manipulativa (isto é, a publicidade e certo marketing) tem largo campo, apelando a processos primários de decisão, baseados em preconceitos, impulsos primevos e pulsões. Por último, existe um amplo campo para os agentes dos mídia introduzirem mensagens ideológicas e políticas nos produtos informativos, enquanto processo de aproximação afectiva aos consumidores e, também, às entidades patronais dos trabalhadores dos mídia.
Acabou-se de fazer uma descrição da teoria das falhas informativas do mercado (dos mídia e de todos os outros mercados) e vamos ver como nela se encaixa, tão bem como a agenda-setting, também uma outra teoria crítica dos mídia. Trata-se da teoria da sociedade do espectáculo, defendida por Debord e que veio a encontrar outras versões em Barthes (no livro “O Prazer do Texto”, onde explica porque vemos televisão mesmo sabendo que é de baixa qualidade) e Popper (com Condry, nomeadamente no famoso livrinho “Televisão: Um Perigo para a Democracia). Segundo este grupo de teorias, os mídia tenderiam a transformar tudo num espectáculo, prejudicando as suas funções informativas, edificantes da ética e promotoras da reflexão. Isto é, o apelo a processos primários e pulsionais, de escolha e de compra, acabariam por dominar, já que a qualidade do produto seria secundária.
Existe, ainda, uma outra teoria que é, talvez, a mais radical. Trata-se da teoria de Chomsky e Herman que, tal como a teoria do espectáculo, pode ser entendida como sendo um prolongamento de Gramsci e da chamada Teoria Crítica (Adorno, Horkeimer, Marcuse, Habermas), por sua vez prolongando o conceito marxista de alienação, com as suas crítica às funções alienantes e massificadoras dos mídia.
Segundo esta teoria, o poder económico usa os meios de comunicação social para passar mensagens ideológicas e alienantes. Esta teoria não é tão conspirativa como pode parecer à primeira vista, quando se considera que é possível conciliar este objectivo com o carácter lucrativo dos mídia.
Segundo Chomsky e Herman, não existe alguém a conspirar para fazer passar estas mensagens. O que acontece é que existem uma série de filtros na comunicação social que filtram as notícias conforme os interesses políticos e ideológicos. De facto, os mídia são propriedade de grandes empresas, vivem da publicidade paga por grandes empresas, as fontes de grande parte das suas notícias são os governos e os jornalistas têm, portanto, de estabelecer boas relações com o poder político ou, pelo menos, com algum partido de entre os dominantes. Chomsky e Herman não referem mas parece que se podem adicionar mais alguns filtros, como o facto das normas de excelência jornalística serem formadas em países dominantes do mundo, onde, aliás, as universidades e centros de investigação (que dão informação aos mídia e estudam o seu funcionamento) estão longe de serem entidades independentes do poder político e económico.
 O modelo descreve como os meios de comunicação formam um sistema de propaganda descentralizado e não conspiratório que, no entanto, é extremamente poderoso. Chomsky tem divulgado uma série de análises a situações concretas que são, no mínimo, preocupantes.
Mário Crespo
 Uma crítica a esta teoria surge logo, para quem gosta de pensar que o mercado tem algumas virtudes. Então porque não surgem meios de informação verdadeiramente independentes e que desmascarem esta situação, fornecendo notícias de qualidade e, assim, conquistando cada vez mais mercado? A resposta a esta objecção tem de se encontrar na teoria das falhas informativas do mercado, antes referida, bem como numa outra teoria económica sobre o mercado e que é a teoria das barreiras à entrada (num dado mercado). Esta última afirma, nomeadamente que o montante de investimento necessário para entrar num dado mercado pode ser tão grande que dificulta ou impossibilita que apareça uma efectiva concorrência.  
O estudo dos mídia não se resume a estas teorias críticas, sendo uma zona de activa investigação. Por exemplo, outras linhas teóricas tentam descobrir se os mídia têm efeitos nefastos nos comportamentos dos seus consumidores (George Comstock é um autor que tem apresentado súmulas destes estudos) ou quais os valores transmitidos nos seus conteúdos (como fizeram os Cultural Studies, de inspiração marxista mas interdisciplinares e abrangendo vários outros temas. Simon During tem publicado sínteses desta linha). Apesar de ser difícil extrair conclusões, pois as análises de conteúdos são muito subjectivas e, nos estudos empíricos, as variáveis que interagem são muitas e difíceis de confinar, parece que ainda nada contradiz as descritas quatro teorias críticas.
Cada uma dessas teorias tem pontos fracos, contudo, se forem tomadas em sinergia, acaba por emergir uma argumentação contra o estado actual dos mídia que nos parece correcta e ampla.
Em suma, parece correto pensar que o mercado dos mídia não dá garantias de pluralismo, colocando em risco a democracia. Não só não dá garantias de pluralismo como dá algumas garantias que aconteça o inverso. De facto, actuam nos mídia, claramente, factores de parcialidade, como a subordinação a interesses particulares de classe social. Poderá haver democracia sem democracia nos mídia? 

O mundo está cheio de ideias e programas concretos de profunda mudança de regime e que podem constituir resposta aos actuais problemas sociais. Pela minha experiência creio que estes programas são totalmente ignorados pela maior parte da população e o seu potencial real é desconhecido de grande parte das elites. Creio que é grande a responsabilidade da comunicação social no desconhecimento de programas e medidas concretas como o orçamento participativo, a agenda local 21, as sondagens deliberativas, a democracia nas escolas, a democracia associativa, a democracia cognitiva, a co-representatividade, o voto preferencial, os programas políticos mensuráveis, o benchmarking de governos, o sistema empresarial público autónomo, o socialismo de mercado, o socialismo das guildas, a taxa Tobin, o capitalismo popular, as economias de transparência, o benchmarking institucional, as empresas demonstrativas, os sistemas comparativos de avaliação na administração pública, a educação para a cidadania, a educação para os mídia, os provedores de ética, os livros e manuais de referência social, os rankings e os barómetros de ética, o marketing social e os programas de mudança de atitudes, a educação parental, bem como dezenas de outras intervenções concretas que, quando tidas no seu conjunto e, sobretudo, nas suas sinergias, constituem uma profunda mudança de regime político, económico, cultural e social.

Num artigo seguinte, será abordado o impacto negativo dos mídia na vida ética. Será, também, exposto um conjunto de mecanismos de regulação dos mídia, desde novos meios de educação do consumidor até regulação da propriedade dos mídia, passando pela noção de serviço público.

autor: José Nuno Lacerda Fonseca

terça-feira, 22 de março de 2011

Política com ética, antes da Política com ideologia

Quando o Micael da Silva e Sousa me convidou para fazer um post enquanto convidado especial, aceitei prontamente e pensei imediatamente em seguir a linha orientadora deste excelente espaço promotor de intelectualidade e, assim, desenvolver uma "dissertação" ideológica. A minha escassez de tempo levou a que adiasse a minha participação e repensasse a forma da minha intervenção, orientando-a para a ética dos jovens na política partidária.
Ora, não tenho uma visão enviesada ao ponto de, uma forma maniqueísta, considerar todos os que têm uma ideologia divergente como pessoas incapacitadas moral e eticamente. Conheço conservadores mais respeitadores que ditos progressistas, conheço liberais mais sensatos e astutos que muitos socialistas ou socialistas revisionistas. A política partidária portuguesa, que é aquela sobre a que me posso debruçar minorando eventuais erros de julgamento, está incapaz de atrair jovens com qualidade do ponto de vista intelectual, com capacidade de sacrifício e de trabalho em nome da res publica e, sobretudo, inimputáveis do ponto de vista ético. Posso dizer, sem grandes dúvidas, que conheci na política partidária pequenos corruptozinhos com as manhas dos grandes mas, também, conheci menos afortunados que acabaram por se desiludir e abandoná-la ou relegar a participação cívica, a este nível, para um plano bem inferior. Há sempre favores a prestar a fulano e sicrano, ditam as "regras" que geralmente há que tomar as opções mais seguras, não há interesse em estimular o pensamento e o debate crítico e "abanar uma bandeirinha" dá sempre mais resultados que abordar a política de uma perspectiva ideológica ou até meramente técnica. Ou seja, relegando o pensamento audaz mais desalinhado, mais possibilidades sobram para os mais adaptados ao "aparelho partidário".
Assim, enquanto a política partidária continuar a catabolizar-se a si própria, cabe aos poucos que percebem e querem mudar o rumo desta autofagia, tentar praticar entrismo partidário com o objectivo de transfigurar a participação do cidadão comum mas ideologicamente identificado. Na verdade, a política é uma inutilidade sem ética e sem ideologia. A sua desqualificação pode conduzir a sociedade a um rumo autoritário ou anárquico... seja qualquer um dos extremos ideológicos, o futuro não é auspicioso.

Um abraço aos que como os escritores aqui do blogue e demais, continuam a estimular o debate ideológico e a combater a corrupção das estruturas. Este post é tão só um assinalar destas diminutas mas esforçadas práticas... um bem haja!

autor: Cláudio Carvalho

quinta-feira, 17 de março de 2011

Anarquismo

Historicamente, o anarquismo aparece no âmbito dos nascentes movimentos socialistas, no século XIX, em articulação com os efeitos da primeira industrialização e modernização das sociedades europeias. Remetido para a categoria dos socialismos utópicos - por almejar uma sociedade sem Estado –, constituiu-se no entanto como uma tendência importante, se bem que geralmente minoritária, dos movimentos operários da segunda metade do século XIX e até à segunda guerra mundial.
Colónia Anarquista Belga "A Experiência" - 1905-1908
Ideologicamente, porém, o pensamento anarquista ou libertário é mais complexo e contraditório do que uma simples variedade de socialismo. Dando grande ênfase à autonomia individual e à espontaneidade da acção colectiva, tenta uma síntese teórica entre os valores igualitários dos socialismos e a liberdade da acção individual e do associativismo próximos do liberalismo filosófico. Daí a sua aposta nas teorias políticas do federalismo (Proudhon) coexistindo com a crítica do capitalismo, para o qual se propõem alternativas como a socialização (mas não a estatização) da grande propriedade e dos principais meios de produção, o cooperativismo e o mutualismo, ou alguma municipalização de solos urbanos e de serviços públicos. Por outro lado, estendendo a sua crítica à monopolização dos poderes político e económico (por parte de certas elites) à ideia de uma autoridade religiosa detentora exclusiva da verdade, o anarquismo desposou em grande medida a vaga anti-religiosa e anti-clerical que acompanhou a modernização social, sem no entanto deixar de encontrar fundamentos anti-autoritários em certos credos, que permitiram mesmo a formulação de um esboço de anarquismo cristão (em Tolstoi, por exemplo) ou, noutras tradições culturais, de um libertarismo iluminado (Krishnamurti, Gandhi, Vinoba ou mesmo Tagore).
Socialmente, o anarquismo encontrou no operariado, nos camponeses pobres e entre intelectuais e artistas os meios mais receptivos à sua mensagem e sensibilidade. O “anarco-sindicalismo”, especialmente forte nos países latinos no primeiro terço do século XX, foi o seu resultado mais significativo. O espontaneismo anti-autoritário e juvenil do “Maio de 68” francês, o seu mais conhecido gesto de revolta.
Politicamente, os anarquistas estiveram quase sempre bastante divididos e incapazes de se organizarem “em partido”. Mas apareceram sistematicamente contra a demagogia do eleitoralismo e do parlamentarismo partidário, desconfiando de todos os governos, da justiça, das polícias e dos exércitos, recusando-se a caucionar ou participar em tais estruturas. Pelo contrário, apostaram forte em processos revolucionários como o da Rússia de 1917 ou da Espanha de 1936, onde foram impiedosamente dizimados. 
Organizativamente e como formas de acção, experimentaram coisas tão diferentes como a violência e o insurrecionalismo (Bákunine), as escolas livres (Ferrer), o comunitarismo (Kropótkine), a propaganda “neo-malthusiana” (Humbert), o naturismo (Zisly), a associação federativa (Malatesta), a libertação sexual (Armand), o feminismo radical (Maria Lacerda de Moura), o individualismo filosófico e económico (Stirner e Tucker), a objecção de consciência à guerra e ao serviço militar (Lecoin), a acção directa não-violenta (Hem Day), etc.  
 
Contemporaneamente, o anarquismo deixou de ter expressão política depois da segunda guerra mundial e da bi-polarização Leste-Oeste. Mas, mais sob uma forma de libertarismo, deitou sementes que germinaram nas sensibilidades feministas e ecologistas dos nossos dias, e nas pulsões pela liberdade que, de longe em longe, percorrem constelações de países e sociedades, como aconteceu nos anos 70 com a queda das ditaduras do Sul da Europa, no final dos anos 80 com os países socialistas do Leste e talvez agora esteja a acontecer nos países islâmicos do Norte de África.

autor: João Freire

terça-feira, 8 de março de 2011

O (Neo) Socialismo Aristocrático-Democrático?

Platão - extracto de "Escola de Atenas"
Não consta que Platão, Sócrates ou qualquer outro filósofo do século V ou IV a.C. fosse socialista. Não consta também que tivessem existido governos, na época, com orientações daquilo que hoje se considera como socialismo (mesmo havendo quem queira traçar alguns paralelismos entre os estados totalitários de esquerda e a oligarquia de Esparta).
No entanto, à época de Platão discutia-se abertamente qual o melhor modo de governo. Na sua obra “República” ( ou “Politeia”) para além do aprofundar da discussão em torno do conceito de “Bem” e se realmente compensa fazer o dito “Bem”, Platão também tenta definir, através da dialéctica, qual o melhor Sistema Governativo – numa relação com o próprio tema do “Bem”. Para Platão o melhor Sistema de Governo seria a Aristocracia – o "governo dos melhores”, segundo a definição do próprio - em oposição a todos os demais, especialmente à democracia da época que o filosofo tão bem conhecia. Mas porquê esta opção? Platão justifica-se pelo melhor interesse que a forma de governo “aristocrática” teria para a Polis – a sociedade -, porque a democracia, embora melhor idealmente pela igualdade e liberdade que promovia, podia trazer malefícios sociais, não garantindo que os mais competentes efectivamente governassem. Platão defendia assim o “governo dos melhores” – a aristocracia –, mas não na forma hereditária que conhecemos associada às monarquias dos últimos séculos. Defendia uma revolução social em que se pudesse despoletar e desenvolver o melhor de cada cidadão, e pelas qualidades e méritos indivíduos nas suas várias vertentes, atribuir-lhes papeis e responsabilidades na sociedade, ficando efectivamente o governo, a mais alta posição social, destinada aos mais capazes. Plantão propunha uma sociedade que conseguisse designar os melhores para cada cargo. Esta concepção tem tanto de ideal como de utópica, Para além disso, mão há dúvida que o conceito de “Governo dos melhores” pode ser chauvinista, discriminatório negativamente, e atentar contra os ideais de liberdade e igualdade, mas, ao fim de contas, não será o processo democrático, nas suas várias formas, um modo de tentar encontrar os melhores governantes dentre todos os cidadãos? 


A sobrevivência dos mais aptos (1880) - Georges du Maurier
No fundo, analisando o intuito da própria democracia, é quase consensual que um dos principais objectivos de uma democracia será ter o melhor dos governos, composto pelos mais competentes e aptos, em prol do melhor benéfico comum, respeitando as liberdades individuais e colectivas.


Mas, com o advento da Internet, e recentemente das Redes Sociais - a Internet 2.0 -, o modo de concretizar a cidadania e até o da própria representação e governação política pode vir a ser profundamente alterado. Pode-se dizer que estamos a viver uma mudança de paradigma político.


Actualmente o nosso sistema de representação política depende da dificuldade de cada cidadão se representar a si próprio politicamente. Sendo a concretização do "governo do povo" – significado de Democracia – feito de forma parcial e indirecto. Caindo ou sendo diminuídas essas dificuldades mudará o paradigma político. Isso será difícil, se não impossível, de conseguir, mas se porventura algum dia os cidadãos se conseguirem representar a eles próprios, em todos os actos de governo, teremos então uma verdadeira e completa democracia, uma democracia mais directa.


A visão de Platão e do seu governo ideal, coadjuvada pela tecnologia, poderá ser reinventada e reinterpretada à luz do socialismo democrático: democrático pois os mais aptos – “os melhores” - poderiam ser escolhidos de entre uma série de cidadãos qualificados e com competências e características para determinadas funções; socialismo na medida em que tendo cada cidadão a função ou papel que melhor se lhe adequa, de acordo com as suas características naturais e as que vai ganhando ao longo da vida, haveria um benefício para toda a comunidade, especialmente através de grupos de cooperação capazes de ser renovados. Isto seria uma concretização em prol do Bem comum, optimizando-se a sociedade no sentido dos seus membros assumirem cargos e funções que mais beneficiassem todo o grupo. Já para não falar do potencial de realização pessoal dos indivíduos/cidadãos.
Conseguindo implementar verdadeiramente uma sociedade onde a igualdade de oportunidades universal fosse uma realidade, especialmente no desenvolvimento das qualidades e potencialidades dos cidadãos, poder-se-iam reduzir dúvidas e facilitar o revelar dos "melhores". Os governos poderiam existir em várias formas, por exemplo, poderiam organizar-se num modo evoluído de fóruns ou redes sociais do futuro, podendo assim todos os cidadãos, ou uma grande maioria deles, através de tecnologias de informação avançadas, participar e interagir, provar qualidades e demonstrar, apresentar e confrontar ideias relacionadas com os assuntos da governação. As barreiras e distâncias não seriam impedimentos e poderiam ser organizados governos temáticos. A governação poderia ser feita a todos os níveis - local, regional ou nacional - ou simplesmente por áreas específicas e de interesse.
Então podemos avançar, tendo em conta o significado de aristocracia platónica e a capacidade, através da tecnologia, de cada cidadão se representar a si próprio, um novo tipo de democracia: a “Aristocracia-Democrática”, ou acrescentado "neo" se necessário. Sistema que poderia ser um possível caminho para o Socialismo Democrático, mas somente se se conseguisse garantir que o reconhecimento dos mais aptos para cada papel não deixasse qualquer dúvida e fosse dada igualdade de oportunidades a todos os cidadãos, segundo o ideal de que o potencial de cada cidadão depende do próprio indivíduo e das oportunidades que lhe são dadas pela própria sociedade e meio social onde se desenvolve.


Conjecturas e utopias filosóficas à parte, a realidade actual exige, porventura, soluções mais plausíveis. De qualquer modo, até a ideia, aparentemente, mais improvável e criticável pode contribuir para relançar do debate sobre a necessidade de reinventar o socialismo democrático, e dele ser a via para responder às necessidades de hoje e do futuro.

autor: Micael da Silva e Sousa