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sexta-feira, 13 de abril de 2018

Escatologia e Política dos Géneros


ATRATIVIDADE ATÁVICA E SELEÇÃO NATURAL

David Buss foi um dos pioneiros da psicologia evolucionista ao tentar mostrar que embora a aparência da mulher seja fundamental, na escolha da mulher pelo homem, já a mulher escolheria em função dos indícios de poder social do homem (ou seja a capacidade de providenciar recursos, segundo os termos deste autor).
Desde então, a psicologia evolucionista tem enriquecido o conhecimento sobre fatores de atratividade transversais para todos os indivíduos. Encontram-se súmulas, bastante vastas, em Philippe Gouillou, Porque é que as Mulheres dos Ricos São Belas e Nancy Etcoff, A Sobrevivência dos Mais Belos. Embora fatores comportamentais, como expetativas de fidelidade, tenham importância, acontece que para homens e para mulheres, são atraentes, transversalmente, os traços da juventude, da saúde e da força, como cabeleiras voluptuosas, rostos simétricos, pele firme e clara, cinturas estreitas na mulher e musculatura masculina, etc.
Segundo a psicologia evolucionista, os padrões de atratividade transversal são resultado da seleção natural sendo, portanto, os genes que hoje determinam a atratividade, em grande parte. Contudo estes padrões são, frequentemente, anacrónicos (evolutionary mismatch). Já em 1942, Ernst Mayr analisou estes processos anacrónicos, seguindo-se vários outros autores, como o criador da sociobiologia, Edward Wilson.
Por exemplo, a força física do homem deixou de ser real indício da capacidade de providenciar recursos e a juventude da mulher já diz muito menos sobre o seu sucesso reprodutivo do que indicaria no paleolítico, quando se vivia em pequenos grupos, sem grandes diferenças sociais de estilos de vida e sem obstetrícia. Um outro exemplo de evolutionary mismatch, embora num campo diferente, é o dos genes do apetite excessivo, muito úteis em situações de forme recorrente, por permitem a acumulação de reservas metabólicas, mas que, nas sociedades ricas da atualidade, apenas ocasionam prejudicial obesidade.


Ora o desenvolvimento da espécie humana pode ser, hoje em dia, realizado pelo conhecimento, medicina e estilos de vida, não se tornando indispensáveis padrões de atratividade que promovam a seleção genética. Todavia, para evitar a eugenia inversa ou disgenia (termo usado por Richard Lynn) poderá ter de ser concedida predominância reprodutiva a certos genes em detrimento de genes evidentemente prejudiciais, idealmente através de intervenções médicas e não de limitações à reprodução de portadores. Aliás, nesta apreciação sobre o valor dos genes ter-se-á de ter em consideração que a diversidade genética é um valor securitário, pois é muito difícil conhecer o efeito de todos os genes em todos os ambientes possíveis, atuais ou futuros. Por exemplo os genes que originam a doença talassemia também tornam o seu portador imune a certas doenças, como a malária. Embora hoje já não pareça ter interesse preservar este tipo de genes, trata-se de um exemplo sobre a multiplicidade de efeitos dos genes que tornam difícil fazer uma avaliação absoluta do valor de cada gene.
Abandonando aqui a questão da disgenia e voltando à questão das características dos padrões de atratividade transversal, interessa reparar que, embora possa existir rigidez genética, no que é considerado atraente por ambos os sexos, verifica-se uma variabilidade, ao longo da geografia e história humana, bem como de indivíduo para indivíduo. Também sabemos que a consciência da existência do atavismo e da anacronia pode ajudar a superar esses processos. Tudo isto leva a supor que este fator de escassez (padrões muito seletivos de atratividade transversal) no acesso a uma sexo-afetividade, entendida como satisfatória, possa vir a ser menorizado com um esforço mediático e cultural. Esforço este orientado no sentido da expansão e flexibilização dos padrões de atratividade, fazendo com que valorizem um maior número de traços e de indivíduos, ultrapassando assim, em grande parte, a escassez sexo-afetiva que é o tema central a analisar aqui.
Aliás, a excessiva prevalência dos padrões seletivos de atratividade transversal é um obstáculo à vivência plena da afetividade, já que centra excessivamente as relações no campo seletivo e sexual, minorando as várias formas de afetividade.


LITERACIA E GAMIAS

Os fatores tecnológicos (como as tecnologias de planeamento familiar e reprodutivo e as tecnologias virtuais) também facilitam o acesso sexual, enquanto, por outro lado, desenvolvimentos cognitivos, como a sexologia, medicina, arte e psicologia (constituindo uma literacia sexo-afetiva) podem aumentar a satisfação com a monogamia, enquanto forma com maior sucesso histórico na minimização das tensões oriundas da escassez sexo-afetiva.
O sucesso da monogamia não se justifica, unicamente, por reduzir a competição e a escassez (para os que com poder ou atratividade inferior deixassem de ter acessos), constituindo algo próximo a uma “democracia” sexo-afetiva e uma política de igualdade de oportunidades sexo-afetivas. O seu sucesso deriva, também, da sua eficiência enquanto meio propício à criação e desenvolvimento das proles, concitando os recursos e atenção exclusiva de ambos os pais, bem como deriva de propiciar o investimento afetivo e conhecimento mútuo dos parceiros.


Vários fatores influenciarão a possibilidade e utilidade social de configurações não estritamente monogâmicas perenes, como a duração do período necessário à criação e desenvolvimento das proles (que diminui com a diminuição do número de filhos mas aumenta com a prorrogação da sua entrada na vida profissional), proteção jurídica e financeiras das proles perante o divórcio, grau de responsabilidade parental, tecnologias de planeamento familiar e sanitárias, grau de ampliação dos padrões de atratividade, tecnologias que facilitem a transparência sobre o comportamento sexo-afetivo de ambos os pais fora do casal, tensões que os problemas da vida acumularam sobre o casal, grau de desinvestimento no conhecimento e adequação ao parceiro, equilíbrio entre poliginia e poliandria, eventual genética polígama, sistemas sociais de procura de parceiros realmente adequados, etc. Todavia, não se vislumbra a legitimação ampla de novas monogamias diversas e poligamias em nenhuma das suas muitas formas, pese a experimentação social que decorre em torno desta questão. Aliás esta experimentação é, talvez, mais devida à degradação da moral do que ao desenvolvimento de filosofias da sexo-afetividade que já hoje deveriam ser cruciais.
Enquanto que a possibilidade destes tipos de novas gamias racionalizadas, legitimadas e transparentes, aparece ainda envolta em muitas interrogações, propiciando investigação diversa e exigindo debate social, já as linhas de otimização da monogamia parecem claras, em torno do crescimento da referida literacia sexo-afetiva e mediante o desenvolvimento de sistemas, científicos e sociais, de procura de parceiros, realmente adequados às exigências da relação monogâmica perene.


ENCONTRO CIENTÍFICO E SUBLIMAÇÃO MODERNA

De facto, o desenvolvimento de sistemas técnico-científicos de procura de parceiros sexo-afetivos adequados, bem como de construção de contratos de coexistência, preparação para a vida em comum e acompanhamento desta, pode constituir um fator crucial para o amor e paixão.
Estes sistemas, embora meramente orientadores das livres opções dos indivíduos, potencialmente muito podem contribuir para a mudança do paradigma da sexo-afetividade. De facto, podem ajudar a superar o paradigma da atratividade atávica transversal, confluindo no novo paradigma da adequação mútua dos parceiros, específica de cada par. Assim, a aproximação dos parceiros passaria a ser determinada, fundamentalmente, por fatores de proximidade mútua, incluindo atratividade física devida a especificidades dos parceiros e não a fatores de atratividade transversal, fatores psicológicos, éticos, centros de interesse, comuns ou complementares, bem como compatibilidade em certos genes e noutros fatores, maioritariamente alheios à aparência atrativa transversal e ao status, etc.. Parece razoável a expetativa que esta profunda alteração de paradigmas possa vir a diminuir, significativamente, a escassez sexo-afetiva. Todavia, Eli J. Finkel e outros (2012) concluíram que os sistemas comerciais de encontros não fornecem provas científicas sobre a sua auto apregoada eficácia.
Só a compreensão da importância social destes sistemas poderá vir a originar entidades de regulação, investimento e acompanhamento científico que desenvolvam efetivamente e credibilizem estes sistemas que, por agora, a julgar pela pesquisa aqui acabada de referir, de 2012, são apenas operações obscuras, apesar da complexidade dos seus algoritmos e vastidão dos seus dados. Na sua conferência TED, de 2014, Finkel já foi muito otimista sobre a evolução científica destes sistemas.
Finalmente, completando o conjunto de processos de superação da escassez sexo-afetiva, deve-se considerar a recuperação da dignidade e do direito à sublimação, relativa ou absoluta, contínua ou periódica, bem como a emergente autonomia tecnológica. A dignificação destas estratégias tenderá a levar para uma sociedade com uma estimulação sexual menos intrusiva no espaço público, bem como a constituir uma literacia da sublimação e da tecnologia sexo-afetiva. O anátema sobre a sublimação e o preconceito sobre a autonomia tecnológica não têm base racional, sendo possível encontrar as razões da rejeição num subconsciente cultural de grupos sociais, cujas estratégias de sobrevivência e poder passavam pelo aumento do seu número de membros, mediante a multiplicação das proles. Outras razões poderão ser a rejeição impulsiva de tradições religiosas e do puritanismo em geral, no caso da rejeição da sublimação. No caso das autonomias tecnológicas, o anátema pode ser originado por um conceito, vago e infundamentado, sobre o naturalismo da sexualidade e do romantismo, como se o naturalismo fosse um valor absoluto e auto evidente e o romantismo exigisse sempre sexualidade omnipresente.


A POLÍTICA DOS GÉNEROS E A ESCATOLOGIA EXISTENCIAL

Todavia, tal como em relação à escassez de bens de sobrevivência, uma sociedade de pós escassez sexo-afetiva pode não passar de uma ilusão utópica. Tal pode vir a dever-se a uma possível rigidez nos padrões seletivos de atratividade transversal, a limitações das literacias sexo-afetivas e respetivas tecnologias, insucesso da investigação de novas gamias e dos sistemas de encontro e acompanhamento dos casais, incapacidade para propiciar um espaço público menos intrusivo de estímulos. Também pode contribuir para a manutenção da situação de escassez sexo-afetiva o rumo das tecnologias para criarem novos processos e desejos nesta área, eventualmente de difícil acesso monetário, exemplificados por certas expetativas sobre a sexualidade virtual e neural.
Isto é, também neste segundo vetor primal, as estratégias escatológicas, de redução da escassez, podem ser insuficientes devido à acentuação de estratégias contrárias. A decisão sobre que estratégias acentuar é uma das questões cruciais da atualidade, de estabilização das sociedades e de superação de obsessões destrutivas pelo poder e pela alienação, como resposta a frustrações competitivas e sexo-afetivas. Desde Freud que perdura a hipótese do grande impacto, no psiquismo, das frustrações e tensões ligadas à sexo-afetividade, acabando por influenciar, decisivamente, o comportamento humano e a organização social e respetivas tensões. Aliás, esta hipótese pode-se prolongar numa espiral de frustração, na qual a frustração sexo-afetiva origina maiores expetativas na procura de poder social, à laia de compensação, podendo ocasionar obsessão atávica pelo poder, erosão da ética e patologias. Por sua vez, este excesso de expetativas origina frustração social e leva a maiores expetativas sobre a realização sexo-afetiva, numa espiral de desequilíbrio.
Face ao antes referido para os dois vetores primais (bens de sobrevivência e sexo-afetividade), conclui-se que as políticas escatológicas apresentam objetivos muito diferentes das políticas tradicionais. De facto, as tradicionais políticas de incremento da produção de bens materiais já pouco ou nada determinam o bem estar e sustentabilidade das sociedades desenvolvidas da atualidade, descontando a forte pressão publicitária e respetivos consumos exibicionistas, exceto para os estratos sociais mais desfavorecidos.
As políticas escatológicas, de redução da escassez existencial e dos seus paradoxos, constituem um novo quarto nível da política. Este adiciona-se ao primeiro nível, de políticas de liberdade (Estado de Direito, igualdade perante a lei, liberdade de expressão e associação, etc.), ao segundo nível, de políticas de coesão social e ao terceiro nível, de políticas de promoção do crescimento económico. Obviamente que os valores da liberdade e igualdade já implicaram alterações profundas no campo sexo-afetivo, nomeadamente na igualdade de género e liberdade da orientação sexual. Todavia, uma visão escatológica, de vetores primais e multiplicidade de respetivas estratégias, permite uma visão muito mais abrangente sobre todas as temáticas sociais.
Esta visão pode, nomeadamente, orientar um novo campo político que é a política dos géneros, baseada numa filosofia dos géneros, concernente à superação da escassez sexo-afetiva, com profundas implicações no bem-estar, racionalidade e estabilidade social, como aqui se esquematizou, embora de forma muito resumida e parcial.

autor: José Nuno Lacerda Fonseca

quarta-feira, 7 de março de 2018

O sentido da Vida e o Obsoleto da Ideologia

A reflexão sobre o sentido ou objetivo da vida continua estranha às principais ideologias políticas e filosofias sociais, já que estas são baseadas no liberalismo e no socialismo que não se fundamentam neste tipo de reflexão.

Fonte da imagem: https://www.toonpool.com/cartoons/Speculations_175312

O liberalismo é uma reflexão sobre os direitos naturais e a liberdade, no campo da implantação da democracia republicana e da propriedade no mercado económico. O socialismo é baseado numa teoria sobre o devir da história e no conceito de exploração económica, do que resultaria um futuro sem exploração e sem classes, logo uma sociedade igualitária. Centradas em lutas específicas de liberdade e da igualdade, a ambas escapam as grandes questões da atualidade. Sem princípios básicos amplos e sem uma visão atualizada do futuro, as ideologias têm dificuldade em decidir sobre questões estruturais que adiam ou desconhecem, optando pelo imediatismo, mediatizado e superficial, com consequências profundamente nefastas para o sistema económico, cultural e social. Esta caráter obsoleto das ideologias poderá ser ultrapassado pela sua reconstrução em novas bases mais amplas, como a reflexão sobre sentidos e objetivos primeiros da vida humana.

Já na filosofia grega estava bastante presente esta questão, do objetivo da vida, por exemplo, seria a procura do saber superior, em Platão, a procura do saber vasto, em Aristóteles, a auto suficiência e controlo das suas atitudes, com rejeição da riqueza, poder e fama, em Antistenes (Cinismo), a paz e ausência de medo, numa vida tranquila, em Epicuro, o controlo de si para evitar emoções negativas, em Zeno (Estoicismo).

A filosofia medieval e pré-liberal ficou bastante subordinada à reflexão sobre a vontade de Deus e à epistemologia, sendo que a procura de fundamentações sociais no conceito do sentido da vida ou do objetivo da vida só volta a ganhar centralidade com o utilitarismo (seria a maximização social do prazer). Depois, de forma mais específica, em Nietzsche (nega o conceito de sentido da vida e coloca a vontade de poder como valor essencial do homem), em Freud (satisfação plena da líbido, bem como recuperação dos traumas) e Heidegger (consciência da fragilidade da vida e da eminência do nada ou morte, negando-se o palrar constante sobre assuntos secundários com que a humanidade se tem contentado).

Adler, discípulo crítico, de Freud, acrescenta a procura do poder. Jung, outro discípulo, fala em arquétipos comportamentais (como o sábio) e da parte feminina do homem que devem ser vividos. A tradutora de Freud para inglês, Joan Riviere, refere a centralidade do receio da fome e da procura do afeto.

O existencialismo, inspirado por Kierkegaard e Heidegger e a psicanálise, continuam este tipo de reflexões. O existencialista Sartre refere que não existe uma essência da vida e é a liberdade que permite decidir a existência. Os existencialistas cristãos, Kierkegaard, Jaspers e Gabriel Marcel apelam ao sentido da transcendência.

Na conjugação entre psicanálise e existencialismo surge a terceira vaga psicanalítica, com Viktor Frankl (a procura de sentido seria o fundamental da vida e pode ser encontrada numa realização material, nos afetos e liberdade para escolher cada um escolher a sua atitude interior) e Rollo May (a auto realização das potencialidades de cada um).

Infelizmente, os movimentos políticos e culturais do situacionismo (Vaneigem, Debord) criticando a mediatização da sociedade e apelando ao papel da arte em todos os aspetos da vida) e do freudo-marxismo (Reich, Marcuse, Fromm, Althuser, Lacan, Zizek, com tónicas na crítica à repressão cultural, cultura alienante, moral da sexualidade e consumismo) falharam em trazer, para a filosofia social, as questões do objetivo da vida, não obstante se terem popularizado conceitos com o de qualidade de vida e consumismo, aliás reeditando Thornstein Veblen.

Depois de tudo isto, as versões mais recentes do socialismo, com a terceira vida de Giddens e o neo-liberalismo, apenas se concentram nas virtudes do mercado económico. A terceira via adiciona a democracia participativa, a aceitação de novas estruturas familiares já existentes, o ambiente e as sondagens, permanecendo estrangeira a reflexões, fundamentadoras, sobre o sentido e objetivo da vida.

Todavia, o moderno pensamento sobre organização, chamado “teoria da gestão”, iniciado por Peter Drucker, coloca a gestão por objetivos como uma das suas bases, tornando este pensamento transversal a toda as atividades sociais. No mesmo sentido jogam as teorias da felicidade, tornadas muito populares com os livros de autoajuda e mais recentemente com a psicologia positiva. Por último, são a etologia humana (Eibl-Eibesfeldt), psicologia social (William McDougall), sociobiologia (Desmond Morris, Edward Wilson) e a psicologia, sobremaneira a psicologia evolucionista (David Buss, Richard Dawkins, Barkow, Cosmides e Toby), que trazem, de forma clara, o conhecimento dos fins últimos (telos), a teleologia, para o centro do pensamento social.

No artigo seguinte pretende-se mostrar como se podem sintetizar as diversas perspetivas teleológicas, numa estrutura que sirva de fundamentação a uma filosofia social, amplamente abrangente dos aspetos políticos, económicos, sociais e culturais, capaz de sustentar um amplo programa de profundas reformas concretas e alterações paradigmáticas.

autor: José Nuno Lacerda Fonseca

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Paradoxos da Abundância

OBJETIVOS E ESTRATÉGIAS PRIMAIS

Numa tentativa de iniciar uma síntese sobre as diversas perspetivas teleológicas, antes referidas, pode-se adotar uma perspetiva, escatológica. Esta consiste em considerar três objetivos primais que são as necessidades humanas onde se irão articular e de onde irão derivar todos os outros objetivos existenciais.

Consideram-se os seguintes objetivos primais:
- O desejo de assegurar a sobrevivência, envolvendo alimentação, abrigo, saúde e descanso;
- O desejo relativo a afetividade e sexualidade;
- A estruturação face ao sentimento de receio da morte, apelidável de vetor ôntico.

Outros desejos podem ser entendidos como estratégias que a história dos seres foi criando, para dar resposta a estes objetivos primais. Trata-se dos desejos estratégicos, por exemplo, o desejo de liberdade, o desejo de relacionamento pessoal, o desejo de transcendência, o desejo de aprender, através do conhecer e do sentir, bem patente no desejo de brincar existente nas crianças (desejo de conhecer-sentir). Outros exemplos, de desejos estratégicos, são o desejo de plena forma física, mental e psicológica (plenitude interna), a satisfação do contribuir para o progresso geral, a satisfação do altruísmo ou, como último exemplo, o desejo de pertencer a um grupo identitário de proteção e ajuda mútua (como as famílias e os clãs culturais). Todavia, estes desejos estratégicos, potencialmente capazes de transmitirem ampla satisfação com a sua realização, têm estado em relativa oclusão, devido à dominância exagerada de outros desejos estratégicos, como o desejo de poder social e de alienação que os colonizam e ostracizam.

De facto, ao longo da história, os três objetivos primais, ocasionaram estratégias primais, como o desejo de poder, com realce para o desejo de poder social e poder acumulativo, bem como desejos de alienação, face a frustrações e ansiedades oriundas da luta em torno dos desejos primais.

Estas estratégias primais têm sido, historicamente, a resposta, absolutamente racional e necessária, para proteger o indivíduo contra o fenómeno da escassez, como o espectro da cíclica escassez de bens de sobrevivência, a dificuldade de acesso sexo-afetivo e o choque da consciência da escassez da vida, que é, inevitavelmente, interrompida pela morte e pelo desconhecido que comporta.

Esta visão escatológica pode, aliás, ajudar a explicar o paradoxo da abundância (formulado por Easterlin) que consiste em não se ter encontrado uma relação clara entre riqueza e aumento da felicidade, apesar da investigação sobre este tema, desde 1974. Talvez o essencial seja a abundância existencial, avaliada nos três objetivos primais, segurança básica de sobrevivência, sexo afetividade e estruturação ôntica e não a abundância de mercadorias.

De notar que a acumulação de bens é, quase sempre, um tipo de estratégia de poder social, por exemplo, quando toma a forma de acumulação de dinheiro. De facto, esta permite ter prioridade a bens escassos, em detrimento do acesso dos outros, devido à intercessão, social, de terceiros. Já há muito que estratégias de poder direto, como a imposição pela força física ou acumulação de bens para consumo pessoal, em caso de escassez, são pouco eficientes e significativas.
Fonte da imagem: https://goo.gl/images/KnJNar

PARADOXOS, EXISTENCIAIS, DA ESCASSEZ DE SEGURANÇA SOBREVIVENCIAL

Embora a tecnologia e o conhecimento moderno tenham quase resolvido a escassez sistémica de bens de sobrevivência, nas sociedades mais desenvolvidas, o facto é que uma cultura humana obcecada pelo poder, acumulação, alienação e pela impulsividade (que subsiste na ausência do sucesso das estratégias racionais) continua a criar desorganizações, guerras e conflitos que restabelecem esta escassez. Por esta via, constitui-se um paradoxo, ou contradição, da escassez, constituindo-se como um anacronismo cultural. O significado deste paradoxo existencial de escassez não se resume à falta de bens materiais mas, sobretudo, à insegurança sobre o acesso a esses bens.

Portanto, não deve suscitar um entusiasmo excessivo a tão anunciada superação da escassez, objeto da denominada literatura sobre sociedade pós escassez, já de alguma forma referida por Marx e notória desde Murray Bookchin (1971), até à economia da pós escassez (Robert Chermonas, 1984, Keynes on Post-Scarcity Society) e outros otimismos tecnológicos, mesmo quando referem algumas possíveis adulterações remanescentes (Philip Sadler, 2010, Sustainable Growth in a Post Scarcity Society, Yuval Noah Harari, 2017, Homo Deus, entre outros).

Por outro lado, numa sociedade cada vez mais complexa, como as atuais, poderá ocorrer um receio de instabilidade. Este renova a obsessão das estratégias primevas e um receio do futuro que acabam por reestabelecer a desorganização, o conflito destrutivo e com ele a escassez. De facto, esta complexidade contém uma ameaça latente que abre para o poder destrutivo das tecnologias e dos seus efeitos colaterais, como os ambientais, assim como novas formas de dominação que possam submeter os grupos mais frágeis. Trata-se do paradoxo secundário da escassez existencial, no qual a complexidade que permitiu uma tecnologia de abundância pode acabar por ocasionar escassez, relançando o peso do seu espectro.

Por último, a tecnologia poderá vir a criar novas fontes de desejo, cuja realização será só acessível a elites, recrudescendo, também por esta via do neodesejo, a obsessão pelas estratégias primevas do poder. Trata-se do paradoxo existencial, terciário, da escassez.

Note-se que muitos dos novos desejos modernos de consumo são, apenas, desejo de consumo sumptuário e consumista. Isto é, são uma exibição, perante os outros e perante o próprio, do seu status de poder (T. Veblen - consumo sumptuário, H. Marcuse-sociedade unidimensional, Braudrillard - o sistema dos objetos, Bourdieu – distinção social, bem como, no marxismo, o fetichismo da mercadoria) não constituindo reais neodesejos mas sim desejos exorbitados pela necessidade de exibição.

Quando falham as estratégias racionais passa a imperar este tipo de teatralidade de ilusões, bem como a impulsividade que consiste em programas neurais que reagem a um pequeno conjunto de variáveis-estímulos e se traduzem em respostas primitivas e, frequentemente, agressivas ou auto- destrutivas. Esta impulsividade pode ascender à forma de estilos de gestão e de ideologias políticas, nos seus vetores de procura de bodes expiatórios, imposições e destruições purificadoras.

Mesmo na execução de respostas racionais existe impulsividade remanescente, traduzida no fenómeno fisiológico do stress. Este prepara o indivíduo para respostas de intensidade física apesar de, hoje em dia, a necessidade dessas respostas físicas ser quase nula. Trata-se dum anacronismo (realmente é um paleostress) e de resposta inadequada à especificidade do estímulo que, aliás, ilustra bem o regime anacrónico e atávico de grande parte do que se passa com o desejo de poder e de alienação.

Perante os vários níveis de paradoxos envolvidos, fazendo oscilar entre a superação da escassez e a acentuação dos seus dramas, caberá à sociedade decidir os caminhos que vai realmente trilhar, em atitude diametralmente oposta à atual sagração, cega, do aumento de produção de mercadorias e da sede de poder que lhe está associada.

Em próximos artigos, serão abordadas a escassez sexo-afetiva e ôntica, as vantagens e desvantagens do poder e assimetria social, bem como da distopia ou alienação.
Posteriormente, será exposta reflexão sobre novos sistemas e prioridades, políticas, económicas, culturais e sociais, traduzidas em programas concretos de reforma, alicerçados numa nova teoria da história e em conceitos como liberdade informativa, obscurantismo pletórico, liberdade negocial, eminência do pico escatológico e ética civilista.

autor: José Nuno Lacerda Fonseca