A reacção à evolução social é executada, ciclicamente na história, por centros de poder que perderam a justificação do seu poder e degeneraram internamente, perdendo capacidade adaptativa mas persistindo em manter a sua hegemonia, chegando a desorganizar, profundamente, a sociedade.
O civismo é um valor ético que consiste em cada um assumir a responsabilidade pela criação e implementação das regras sociais, implicando participação na construção e vigilância das regras e centros de poder social, dada a indispensabilidade destes numa sociedade funcional e complexa.
O civismo implica o estudo cívico, o exemplo e a pedagogia social, a humildade que desapega ao poder, assim como exige transparência sobre tudo que pode influenciar as regras sociais. Constitui-se como actualização da convicção do igual valor de cada e todo o ser humano, afirmado nas éticas subjacentes ao aparecimento das grandes religiões, actualizada no liberalismo, ao acentuar os valores da liberdade e democracia, recusando imposições, como a escravatura e o governo monárquico autocrático e hereditário. Por sua vez, o social estatismo surgiu como forma de complementar a actualização liberal das grandes religiões, compreendendo que liberdade sem igualdade de oportunidades fica vazia de efeito. Por último, a actualização civilista, previne contra as formas e tendências de degradação de qualquer centro de poder, por melhor intencionado e útil que seja o seu impulso inicial, reafirmando o valor da liberdade sobre a imposição, bem como clamando que a liberdade de expressão fica vazia de efeitos sem uma verdadeira capacidade de informação e da sua compreensão, constituindo uma verdadeira liberdade informativa.
A sede de poder, via consumismo, fama ou outras hegemonias, enquanto meio de aceso prioritário a bens eventualmente escassos é, cada vez, menos racional, devido a uma sociedade com grande potencial de capacidade produtiva e capacidade cognitiva para antever possíveis disrupções. Esta consciência abre caminho a estilos de vida mais abertos aos prazeres genuínos e processos de desenvolvimento pessoal que têm sido colonizados e destruídos pela sede competitiva de poder. São exemplos, da vida genuína, o prazer de descobrir e de sentir, o sentimento de liberdade, autonomia e a vivência mística, bem como o desenvolvimento de filosofias sexo-afetivas, mapeando todas as possibilidades, pela compreensão serena dos instintos, tecnologias, necessidades sociais e tabus, eventualmente pulverizando padrões de atractividade física, redefinindo contratos sociais, culturas eróticas, românticas e de sublimação. A descolonização da felicidade pode abrir para modelos sociais de estagnação aberta, nos quais o progresso consumista é relativizado e são amplificadas as dinâmicas de paz, sustentabilidade e estabilidade social, bem como de progresso científico.
Esta visão idealista da evolução social não oblitera a compreensão de que só os grandes movimentos de substituição de classes sociais são os momentos da mudança de regimes.
As funções tradicionais da aristocracia monárquica foram substituídas pelo sistema jurídico independente e pelo exército profissional. A atual plutocracia financeira internacional assiste às suas funções tradicionais serem substituídas pelos gestores, incluindo gestores de capital de risco, empreendedores produtivos e sistemas bancários baseados em aforradores da classe média, transformando-se a plutocracia numa classe de meros alugadores de capital, sem efectiva legitimação do seu enorme poder nem capacidade adaptativa. Todavia, essa crise de legitimidade a adaptação contínua ocultada pela excessiva influência do marxismo no social estatismo e respectiva análise crítica defeituosa. Excessiva influência que, aliás, ao negar a visão da história enquanto evolução adaptativa de princípios éticos, acabou por subvalorizar a ética, vindo a colaborar, objectivamente, na degradação, ética e funcional, provocada pela senescência da plutocracia rentista. Tal como o protestantismo funcionou como um preâmbulo para a reforma liberal, também as diversas formas de socialismo aparentam ter sido ser uma forma inicial para as mudanças em curso.
Por outro lado, sociedades cada vez mais complexas, na sua estrutura e elevado ritmo de mudança, são mais atreitas aos atavismos do poder, exigindo mais civismo mas, também, o reconhecimento das limitações adaptativas, dos seres humanos, a elevados ritmos de mudança e complexidade, instituindo a progressividade como valor ético e clamando pelo direito à lúcida navegação no saber, enquanto processo de transparência e de liberdade informativa.
Em suma, os diversos níveis de atavismo do poder, devem ser equacionados face à complexidade social, multiplicando centros de poder, exigindo a vigilância sobre o seu equilíbrio e evolução constante, num quadro ético de modernos valores, como o civismo, a participação construtiva das regras, o controlo do poder, respectivo estudo cívico, com vista a liberdade informativa, transparência, humildade cívica e progressividade. Realça-se, ainda, o direito a saber navegar e optar, na enorme informação e diversidade da sociedade complexa, de forma a potenciar o seu uso, individual e social, numa perspectiva de longo prazo e sustentabilidade que é, afinal, a perspectiva da ética. Numa sociedade complexa e de rápida mutação as crises sistémicas podem ser resolvidas rapidamente mas também podem, em sentido contrário, redundar em destruições e recessões inauditas.
Num sistema político e económico ferido pelas assimetrias de informação, entre representado e representante e entre consumidor e fornecedor, tornam-se necessárias novas instituições, como:
- Fóruns deliberativos, sectoriais e temáticos, abertos a todos os cidadãos, privilegiando a continuidade dos seus membros e respetiva acumulação de conhecimentos específicos, diferenciando entre a componente de representação corporativa e a do público utente e consumidor, corporizando a ideia de uma divisão técnica do trabalho político, entre todos os cidadãos;
- Constituição e cartas informacionais, onde ficam definidos os indicadores objectivos por onde se pode aferir o sucesso das governações, nos seus diversos níveis, incluindo os administrativos;
- Dependência entre os valores obtidos nesses indicadores e a recompensa financeira e social a auferir pelos agentes eleitos e pelos funcionários públicos escolhidos por estes;
- Conselho distal, constituindo parceiro legislativo, em que os seus membros são escolhidos vitaliciamente e remunerados em função da evolução a muito longo prazo dos indicadores de progresso social;
- Governações simultâneas em que a oposição vencida gere um orçamento importante, facilitando a comparação de performances com os vencedores das eleições;
- Várias outras novas instituições e métodos, no sentido das preocupações da democracia deliberativa e expandido os conceitos de poliarquia e separação de poderes, para o conceito de pluricracia, como o voto ponderado pelo conhecimento, em certas situações, escola e exames para políticos e cidadãos, media partidarizada anulando a ficção da objectividade noticiosa, instituições de avaliação da performance dos eleitos e servidores públicos, escolha nominal de representantes que conhecem nominalmente quem os escolheu, processos eletrónicos de construção e divulgação de petições e referendos, etc.
No que concerne a estrutura produtiva e no sentido de economias de transparência, surge o conceito de economia de mercado planeado.
Primeiro que tudo, será de acentuar o paradigma do livre mercado, contribuindo para a sua efetiva libertação de poderes hegemónicos e para uma real circulação da informação, tentando ultrapassar as barreiras à entrada na concorrência e as assimetrias negociais e de informação que enviesam o livre mercado. Neste desiderato, torna-se crucial a participação dos poderes públicos na sistematização do benchmarking e na apropriação social das patentes que evitem monopólios informativos, não deixando de compensar devidamente os criadores, em função dos resultados económicos das suas criações.
Esta libertação do mercado afigura-se sinérgica com o planeamento, democrático, participado por todos os interessados, realçando-se os consumidores finais devidamente informados. De facto, os sectores económicos podem beneficiar de um planeamento interempresarial que defina os investimentos comuns e os campos de cooperação, transpostos para acordos jurídicos e legislativos, bem como certas características dos produtos, referências de quantidades e preços, bem como, com especial significado, definir o tipo de informação a fornecer a todos os consumidores, negando a publicidade, melhorando as suas decisões de compra com informação ambiental, energética, de segurança, etc.
No contexto de critérios de eficiência e eficácia, para além do lucro imediatista, emergem tipos de empresas centradas no desenvolvimento dos seus participantes. Trata-se de verdadeiras empresas cognitivas, humanizadas, estimulando, nomeadamente, a proximidade socialmente responsável com os clientes, a indexação dos rendimentos dos colaboradores aos resultados, globais e departamentais (incluindo nas empresas públicas, atuando em livre mercado e com recrutamento racional de gestores e colaboradores em geral), a perenidade dos laços profissionais e humanos, a flexibilização do trabalho a tempo parcial e a transparência interna e externa.
A transição para este modelo de empresa, para um mercado liberto e planificado exigirá empresas públicas eficientes que evitem a fragilização excessiva do poder político face às plutocracias rentistas senescentes.
Na inexistência de liberdade negocial, isto é, na inexistência de condições para que todos os grupos profissionais negoceiem, a nível mundial, sem pressões assimétricas, a parte que a cada deve caber na distribuição do valor financeiro, gerado pelas empresas, não pode ser definido o valor de cada trabalho.
Em alternativa, a esta teoria prática do valor do trabalho, poder-se-ão definir valores de referência para os diversos tipos de atividade profissional, pela observação das desutilidades relativas das diversas profissões e atividades, efetuada através de fóruns com profissionais de várias atividades, recorrendo a dados científicos, estatísticos e estruturando argumentos a ser decididos pelas instâncias governativas, de forma assegurar, para todos, um incentivo para a excelência profissional num cenário de minimização das assimetria de rendimento,
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Por último, será de frisar a importância do subconsciente na eficiência económica, exigindo o desenvolvimento da psicologia nas organizações, a apropriação precoce de métodos de estudo, trabalho e pensamento, a promoção do auto conhecimento psicológico e o desenvolvimento dos estudos de cultura organizacional e dos estudos interculturais que, já hoje, explicam as diferentes performances económicas entre nações, regiões e culturas, trazendo o subconsciente económico para a luz do dia.
No que concerne à organização da cultura, o civilismo impele para uma cultura consciente.
A cultura mediatizada veicula conceções e competências relativas a modelos de felicidade que podem ser de vários tipos e com relações diversas com a sede de poder, nomeadamente traduzíveis em modelos hegemonistas, consumistas, libertinos e exo-expiatórios. Todavia, sobretudo devido à influência de religiões e filosofias sociais, pode transmitir modelos contrários a estes. Uma real liberdade informativa é desiderato para que os cidadãos possam fazer uma análise crítica a todas as mensagens veiculadas pelos media e pela cultura, podendo assim optar em consciência. Esta liberdade informativa só é possível com educação para os media e para a análise das opções e dos efeitos de cada tipo de conceção do mundo, bem como com informação analítica sobre cada peça cultural, expressando a real diversidade de análises possíveis. Esta análise apensa a cada peça mediática deve ser produzida por organizações culturais que controlem os media e que interfiram no sistema educativo e que expressem a real diversidade de visões, sendo eleitas pelos cidadãos, garantindo-se que as organizações culturais com menos votos tenham um tempo de antena não muito distante das mais votadas.
A consciência sobre as peças mediáticas e formas culturais é, todavia, insuficiente para que o indivíduo tenha a possibilidade de usar todos os recursos da cultura, desde a religião à arte, passando pelas filosofias e ciências sociais e humanas, tecnologias e conhecimentos científicos que optimizem as competências necessárias à vivência de modelos de felicidade sofisticados e não meramente centrados na procura de superioridades competitivas. Cabe ao Estado e às organizações tradutora da sociedade civil a organização de portais que possam ajudar o indivíduo a navegar em toda a cultura humana, fornecendo mapas do conhecimento.
De realçar que o uso da cultura pode assumir formas menos racionalizadas como religiões e tradições místicas e artísticas e, até, a militância em filosofias fechadas. O perigo de indução de irracionalidade, seguidismo e radicalismo exige que essas formas encontrem mediações com a racionalidade, por exemplo através de conceitos panteístas e evolucionistas da divindade e através de interpretações mais próximas da ciência de conceitos como a alma, interpretando-a, por exemplo, como sendo a componente comum a todos os egos, atuais e futuros, que lutam por uma sociedade de paz, igual respeito e felicidade sustentada para todos. Não obstante, este tipo de meso-interpretações consideram-se interpretações parciais, provisórias e convivendo com outras possíveis, sendo apenas uma peça de uma real capacidade de filosofância, enquanto virtude das virtudes, capaz de compreender os pressupostos e efeitos das diversas opções que a mente humana tem de tomar sem que posa ser assistida por métodos científicos.
autor: José Nuno Lacerda Fonseca
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