Em 139 a.C., num texto de cultura chinesa que procura estabelecer as condições da política eficaz, Liu An, promotor, organizador e principal autor da colectânea "Huainam Zi" - "O Mestre de Huainam"; escreveu que, "num país organizado com sabedoria, os conselheiros que analisam os assuntos obedecem à lei, e as pessoas que são favorecidas com as suas decisões ficam sob vigilância da administração. Os superiores julgam os resultados em função do que foi anunciado, de modo a que os subordinados cumpram as suas obrigações em condições de serem avaliados pela sua capacidade para atingir os objectivos. Não se pode prometer mais do que o que se pode realizar, nem violar as leis com as decisões que são tomadas. É assim que o conjunto dos ministros converge para o Mestre - Soberano; sem nunca usurpar as suas prerrogativas". É uma indicação útil, vinda de tempos antigos, sobre o papel de regulação que está associado à articulação entre o que é anunciado e o que é realizado em política. É no grau de adequação entre o anunciado e o realizado, que está o factor de avaliação e de disciplina funcional que faz a boa administração e que permite a boa política. É aí que está o critério da estabilidade do poder e onde houver esta adequação do anunciado ao realizado também haverá a convergência, por exercício da responsabilidade própria e por respeito mútuo entre si, das instituições do poder, pois todas ficam obrigadas a realizar o que anunciam. A decisão política pode favorecer alguns grupos e pessoas, mas estes devem ficar sob vigilância de quem os beneficiou para que se confirme que esse privilégio tem a contrapartida que o justifique – pois só assim a comunidade receberá mais do que entregou com esse privilégio. A avaliação de funcionários e departamentos não depende das fidelidades e das cumplicidades, deverá estar baseada na confirmação do anunciado no realizado (o que hoje tem a designação de “gestão por objectivos”). As leis não podem ser violadas, mas elas não devem prometer mais do que o que se pode realizar, sob pena de entrar no paradoxo em que é a própria lei que estimula, ou torna inevitável, a sua violação. O desvio a estas normas tem como consequência que as instituições do poder se desagregam, cada uma procurando a sua autonomia e impedindo que a função do Mestre – Soberano, seja realizada.
Na Política Portuguesa, onde se encontra um desvio sistemático entre o anunciado e o realizado, nenhum decisor político deveria equacionar uma nova decisão sem reflectir sobre o que provocou esse desvio nas suas decisões anteriores. Se decide sem ter essa precaução, não será verdadeiramente um decisor político , é um usurpador de um lugar de decisão política, no sentido em que ocupa esse lugar do poder para mera gratificação pessoal ou para favorecer um grupo de interesses, sem obedecer à responsabilidade de quem exerce o poder – porque a responsabilidade política implica a adequação da decisão ao objectivo, a coincidência do anunciado com o concretizado. Quando há usurpação do poder, todo o sistema de administração pública, assim como todas as reivindicações dos múltiplos interesses sociais, serão contaminados por esse mesmo sinal de corrupção, com cada interveniente nas relações políticas a estabelecer as suas posições e as suas exigências na base dos seus interesses exclusivos - cada um procurando a máxima vantagem no curto prazo, porque não existe uma referenciação de responsabilidade colectiva nem uma perspectiva de sustentabilidade a longo prazo.
Onde nem os responsáveis políticos, nem os comentadores que descrevem e avaliam as suas acções, atenderem à repetição da distância entre o anunciado e o realizado, não haverá nem operacionalidade funcional, nem credibilidade social, para que os dispositivos de regulação democrática tenham eficácia. Onde não há adequação entre o anunciado e o realizado, o recurso à mentira é o dispositivo complementar a que se recorre para ocultar a existência do desvio. A Mentira Política é uma reinterpretação interessada do que foi anunciado e do que foi realizado, com o objectivo de esbater ou ocultar a medida da distância entre o dito e o feito. Assim se espera transformar o inadequado em adequado, (designando-o como globalmente positivo), o que é a condição para poder prolongar a ilusão.
Sendo a Mentira Política um dispositivo que permite ocultar o desvio entre o anunciado e o realizado, ganha especial relevo um dilema conhecido do Gregos Clássicos: como pode um Mentiroso dizer a Verdade?! Para a análise política, a questão pode colocar-se noutros termos – como poderá detectar-se a diferença entre o anunciado e o realizado se quem produz esse desvio Mente para o ocultar, para fazer com o que o realizado e o anunciado pareçam coincidir, ou pareçam vir a coincidir em breve?
A possibilidade da Democracia, como sistema político dotado de dispositivos de regulação, depende de se poder encontrar uma resposta para esta pergunta. Uma Democracia onde a Mentira fique oculta e, portanto, impune, não poderá ser regulada!
A Mentira não tem de ser a dissimulação ou a deformação voluntária de um facto ou de uma interpretação. Quando é isso, pode haver a sua denúncia contrafactual ou o reconhecimento, pelo autor da Mentira, de que Mentiu. Pode-se acreditar no Mentiroso quando, ao denunciar a sua Mentira, revela como ela foi construída, (é o processo da reconstituição da falta cometida através da confissão). Mais difícil de esclarecer é o caso em que a Mentira tem a sua origem na impossibilidade, por parte de quem Mente, de aceitar e de reconhecer a verdade da sua Mentira. É uma patologia do comportamento que distorce a avaliação política. Quando alguém Mente porque não pode reconhecer a verdade, isso poderá não ser o efeito da vergonha, da culpa ou de uma intencionalidade perversa, poderá resultar do facto de a Mentira se ter tornado inconsciente. Isto é, foi escondido no inconsciente aquilo que, por tornar a falta indesculpável, se fez desaparecer do nível consciente. A sinceridade consciente de quem Mente, porque reprimiu a Mentira no inconsciente, explica a capacidade de adaptação e de renascimento de muitos protagonistas Políticos Portugueses na última década do século XX e desta primeira década do século XXI.
autor: António José Menezes
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