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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O ataque ao Estado Social


A ideia retratada nesta imagem, apesar de se reportar à realidade norte-americana – e às visões opostas de democratas e republicanos –, não deixa de estar também bastante próxima do que acontece actualmente em Portugal e na Europa.
Nos últimos tempos têm-se ouvido várias vozes – seja de políticos mais à direita, seja dos economistas e pseudo-economistas neoliberais que preenchem a comunicação social – que culpam o Estado Social pelo estado das contas públicas e pelas dificuldades de equilíbrio no orçamento nacional.
É isso que nos dizem. É essa a motivação para cortar no Estado Social. É essa a desculpa que usam para defender privatizações de empresas públicas em sectores essenciais e em que não há concorrência.
Não interessa se há outras soluções. Na realidade, nem se ouvem outras soluções, porque o «tempo de antena» para quem as tem é escasso, e reservado para os habituais «fazedores» de opiniões, que apontam para um caminho: a redução do papel do Estado na sociedade, cortando em serviços sociais. Resumindo, o ataque ao Estado Social. E é nessa a direcção que seguem as estratégias políticas traçadas para o nosso país.
Tudo isto sob o pretexto de que vivemos uma grande crise financeira, que a sua causa é o défice público, e que um dos grandes culpados é o perfil de providência do Estado. Esta perspectiva é gravosa de diversas formas e por diversas razões, que agruparei em três grandes níveis: no contexto, na natureza e no alcance.

Porquê no contexto?
Porque Portugal vive outras crises para além da financeira. Esta é recente e, apesar da necessidade que temos de a resolver, resulta de outras crises e de outros problemas mais antigos. Se os esquecermos e não os resolvermos, o mais certo será daqui a uns anos, dada uma nova conjuntura negativa, vermo-nos novamente a braços como uma crise como a actual.
Tal como refere Boaventura de Sousa Santos (2011), no seu livro “Portugal: Ensaio Contra a Autoflagelação”, Portugal vive uma crise financeira de curto-prazo – a urgência do financiamento do Estado –, uma crise económica de médio prazo – a falta de competitividade da nossa economia – devido à especialização da nossa produção(1)  e à nossa integração numa moeda demasiado forte –, e uma crise político-cultural de longo prazo – decorrente do défice na qualidade e competência das nossas «elites» políticas, sociais, económicas, empresariais. E, citando-o, “enquanto as urgências de curto prazo nos soarem aos ouvidos como sirenes, não vai ser possível reflectir sobre as exigências de médio e longo prazo que são feitas ao país para deixar de viver de tropeço em tropeço, de abismo em abismo“(2).

Porquê na natureza?
Porque o problema real não é bem o que nos fazer crer que é. Em primeiro lugar, porque uma boa parte da nossa situação actual resulta da existência de uma grande dívida externa que é sobretudo privada e pertencente aos bancos nacionais – quase metade –, enquanto menos de um quarto é dívida pública(3) . Esta dívida foi crescendo sobretudo devido às baixas taxas de juro que a integração na Zona Euro nos garantiu, que se reflectiu numa facilidade de acesso ao crédito pela qual os portugueses – particulares e empresas – se deixaram deslumbrar, continuamente incentivados por uma banca cujo discernimento não raras vezes é toldado pela ganância.
Por outro lado, porque a nossa situação se deve a uma conjugação de factores que incluem a socialização da dívida dos bancos(4)  (através da nacionalização e da injecção ou disponibilização de capital); as ondas de choque da crise financeira mundial que começou em 2007 ou do choque petrolífero de 2008; a rigidez imposta pela União Europeia aos seus países membros (quer pela definição de níveis máximos, aparentemente arbitrários, para défice e dívida públicos, que pela impossibilidade de financiamento dos Estados através do seu banco central); uma União Europeia pouco unida, com uma moeda e mercados únicos, mas com visões estratégicas e interesses diferentes; a natureza pouco racional dos mercados financeiros (muito ao contrário do que é aceite como dogma pelas teorias capitalistas); e também por uma estratégia política nacional que acabou por se revelar não ter sido a melhor no que toca à gestão da situação nacional.
Por fim, porque mesmo esquecendo todos os factores anteriormente mencionados, e assumindo que os nossos únicos problemas são a dívida pública e o défice nas contas do Estado, não se pode afirmar que a sua causa seja a despesa pública. Em primeiro lugar, é preciso ter presente na análise, a dinâmica da receita, quando se analisa o défice estatal. Em segundo lugar, mesmo que a dívida pública tivesse aumentado devido às despesas públicas, não é garantido que uma redução das despesas contribua para a diminuição da dívida – a evolução da dívida depende de vários factores e se, nomeadamente, o crescimento da economia for inferior ao da taxa de juro, o resultado será um crescimento da dívida (por via dos juros).
Ora, o que tem acontecido do lado da receita nos últimos anos é uma redução de impostos para alguns. E este não é um fenómeno apenas nacional. Segundo os relatórios da KPMG, a taxa média de imposto sobre as empresas tem vindo a descer nos últimos anos em vários países; em Portugal baixou dos 39.6% em 1997 para os 25% em 2007(5)  (um terço do seu valor!).
 Embora esta redução até possa ter sido feita com a melhor das intenções – com a ideia de que uma redução nos impostos das empresas se traduziria em melhores resultados, que dariam origem à criação de mais emprego, a mais exportações e a mais riqueza para o país, que se traduziria em nova receita fiscal que compensaria a redução inicial de impostos – a realidade é que, quando combinada com outros factores que se foram sucedendo no nosso país, a ideia inicial saiu gorada(6) .
O que acontece é que durante o mesmo período, o nosso país viveu a «êxtase» dos fundos estruturais e de coesão, passámos pelo auge da política do betão, assistimos ao crescimento brutal do sector não-transaccionável e as parcerias público-privadas nasceram como cogumelos. As grandes empresas cresceram e concentraram-se em torno do sector não-transaccionável e das parcerias com o Estado. Isto quer dizer que não foi através dessas grandes empresas que as exportações cresceram, a economia não cresceu como esperado e não foi criada riqueza como perspectivado inicialmente; quando muito, gerou-se mais emprego, mas pouco mais que isso. Isto originou, obviamente, uma quebra nas receitas do Estado.
Ora, mas não sendo este um problema exclusivamente português – embora em Portugal tenha sido agravado pelos factores atrás especificados –, não pode ser corrigido por Portugal sozinho. Se um país, sozinho, aumentar os impostos sobre as grandes empresas, o mais certo é elas se relocalizarem noutros países com condições fiscais mais favoráveis ou em paraísos fiscais, ou usarem subsidiárias nesses países para assumirem os negócios dos grupos. Veja-se, em Portugal, o caso da Sonae ou da PT(7) . Isto é um problema deste sistema capitalista globalizado. Para haver alterações a este nível, é necessária uma acção conjunta de vários países, que neste momento não se vislumbra como possível – acima de tudo, porque não parece existir esse desejo por parte das «entidades competentes».
Além disso, é preciso não esquecer a fraca taxação aplicada à banca, às grandes fortunas, ou ao capital ganho em investimentos financeiros(8) . Tudo isto contribui para um défice na receita do Estado. Se a taxação fosse mais justa, possivelmente não teriam de existir cortes cegos na despesa.
Ainda assim, o foco das políticas (nomeadamente dos países europeus) é a redução daquilo a que os governantes, de um modo populista e chamativo, chamam de «gorduras do Estado» (que não nego que existem), quando na realidade a real intenção (ou, pelo menos, o que daí resultará) é a venda / cedência de partes do Estado ao capital privado. Além disso, não falta quem acuse os gastos na saúde ou nos programas de apoio social como os grandes culpados da nossa situação.

O problema apontado pelos analistas, economistas e políticos ultraliberais não é a receita, é a despesa. E é aqui que surge o terceiro nível da perspectiva com que olham o nosso problema: o alcance.

Porquê no alcance?
Porque esta visão dos problemas nacionais terá impactos na qualidade de vida dos portugueses. Justificadas com a crise da dívida soberana e com o peso do Estado Social no défice orçamental português, mas na realidade motivadas – ou pelo menos orientadas – por uma visão político-económica que se diz neoliberal mas que, acima de tudo, mascara outros interesses de natureza oligárquica, é para aí que apontam as políticas perspectivadas.
Estão previstas privatizações de empresas em sectores sem concorrência e de empresas que dão lucro. Está planeada a reestruturação (com custos assumidos pelo Estado) de empresas que dão prejuízo, para que possam ser vendidas quando derem lucro. Estão perspectivados cortes na saúde, na educação, na segurança social, ao mesmo tempo que se abrirá caminho aos privados nestas áreas.
A motivação por trás destas intenções é fácil de entender: tudo aquilo que é assegurado pelo Estado representa dinheiro que foge ao bolso dos privados. Qualquer grupo empresarial está interessado no mercado sem concorrência da água, na televisão(9) , nos correios, na TAP ou na CP, Metro e Carris (assim que o Governo faça o trabalho previsto de saneamento das contas destas empresas e as torne lucrativas). O mercado potencial da saúde e da educação representa um valor de 10% do PIB(10)  e o da segurança social mais de 20% do PIB – cerca de 30 mil milhões de euros por ano.
As consequências desta ganância serão extremamente nefastas. O resultado da pretendida diminuição do papel do Estado e consequente aumento da participação dos privados traduzir-se-á na eliminação da tendência gratuita da saúde e a sua entrega a privados (algo que já vem acontecendo através, por exemplo, de parcerias público-privadas – em que os riscos são sempre assumidos pelo Estado – nos hospitais-empresa); no bloqueio da mobilidade social que a educação pública garante e na sua degenerescência (seja através da utilização do sugerido cheque-ensino, seja através do fecho de escolas que contribui para a desertificação do interior); na passagem para a mão de privados de uma fonte enorme de poupança acumulada – os descontos para a velhice – que podem agora substituir o capital que ultimamente tem vindo a escapar no mercado imobiliário – durante os últimos anos, o destino principal da poupança dos portugueses – devido à crise que o atingiu.
Isto afectará (e já afecta) pobres e os sectores médios e baixos da classe média, que estão a ser os grandes prejudicados pelas medidas de austeridade e que serão afectados pelas estratégias que se perspectivam para a educação ou para a saúde.
É preciso ter presente que os impostos pagos ao Estado servem para que este assegure certos serviços públicos que, dessa forma, garantem algum retorno ao cidadão que os paga; e quando o Governo fala em redução da despesa através do corte destes serviços, é o mesmo que falar de um corte nos nossos ordenados – é do nosso ordenado indirecto que se fala –, quando o défice fiscal resulta, afinal, de uma distribuição desigual da carga fiscal, da protecção estatal a algumas empresas ou dos negócios ruinosos do Estado com o sector privado.
Não se pode falar em cortar ordenado indirecto, quando o trabalho não é taxado da mesma forma que o capital.
Não se pode aplicar austeridade a quem vive do seu trabalho e até a quem não consegue trabalho, quando o sector financeiro consegue lucrar com as suas próprias asneiras.
Nada disto pode ser esquecido.

autor: Bruno Leal


 Notas e Referências:
  1. A nossa baixa produtividade deve-se, em grande parte, ao pouco valor acrescentado dos nossos produtos. Por outro lado, as baixas qualificações de boa parte da população portuguesa são um obstáculo à reorientação da nossa economia.
  2. Santos, B. S. (2011), Ensaio Contra a Autoflagelação, Lisboa: Almedina
  3. Gross External Debt Position, Banco de Portugal 
  4. É preciso não esquecer que os bancos contaram com o apoio (financeiro) dos estados quando dele precisaram; que quando a crise afectou os estados, a banca lhes emprestou dinheiro a taxas elevadas, enquanto simultaneamente ganhou o direito a financiar-se junto do Banco Central Europeu a taxas muito baixas – ganhando dinheiro como o empréstimo aos estados –; e que ainda se perspectiva nova disponibilização de capital dos governos aos bancos. Com tudo isto, as instituições financeiras ainda saem a ganhar de uma situação que elas próprias provocaram.
  5. KPMG’s Corporate and Indirect Tax Rate Survey 2007, KPMG’s Corporate and Indirect Tax Survey 2010
  6. Está mais que visto que a redução da TSU que se avizinha – também ela feita com boas intenções, numa perspectiva liberal – se traduzirá em resultados semelhantes.PT lucra recorde mas paga menos impostos; Empresa não pagará imposto em Portugal, porque sede é na Holanda; Projecto de anúncio de lançamento de oferta pública geral de aquisição de acções representativas do  capital social da Portugal Telecom, SGPS, S. A.; Como as grandes empresas escampam ao fisco e ganham milhões.
  7. Sobre este tema, recomenda-se a consulta de informação sobre a venda da participação na Vivo por parte da PT, ou sobre a OPA da Sonae à PT: 
  8. O artigo de Warren Buffett, no NY Times, de 14 de Agosto, fala precisamente disto e torna-se especialmente interessante por se tratar de um super-rico, com boa parte da sua fortuna construída com investimentos na bolsa, que exige que ele e outros como ele sejam taxados da mesma forma que quem ganha o seu capital através do trabalho.
  9. Excepto os concorrentes, por razões facilmente perceptíveis.
  10. E a saúde assume-se como um excelente negócio de futuro: Telejornal, 2007/04/18.

3 comentários:

  1. Uma narrativa explicativa q me parece excelente mas à qual ousaria juntar a questão do oligopólio do petróleo, do efeito da entrada da mão de obra asiática explorada no mercado globalizado e da explosão demográfica (com inversão da pirâmide), da inadequação do mercado e da democracia parlamentar às modernas sociedades complexas de mudança rápida, devido às enormes assimetrias de informação, a decadência ética das religiões e ideologias devida a crescente reputação do método científico de pensamento.
    O mundo já produziu solução para tudo isto - democracia cognitiva, mercados transparentes, socialismo de mercado, políticas de promoção da ética, etc. Infelizmente os mídia e as academias dominantes não transmitem estes conceitos pois são propriedade dos grandes poderes financeiros q conseguiram estabelecer uma ditadura manipulativa q nos está a transformar em escravos. O seu chicote é a cripto-propaganda e a ocultação de informação. relevante.
    José Nuno Lacerda Fonseca

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  2. Gostei bastante do texto (conteudo e forma). Penso que aponta bem "erros de pensamento" que inundaram a comunicacao social em portugal nos ultimos anos e que levaram ao voto neste governo psd/cds.

    O comentario do Anonimo acima introduz tambem o "problema da competitividade" com os paises emergentes e mais geralmente da globalizacao sem regras das economias.

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  3. Parabens pelo texto, no Brasil também ocorre o mesmo,o pior é que o povo assiste sem fazer nada, no fundo sou um critico do povo tambem pois, não precisa deixar nada mastigado basta olhar os fatos e ver que dar para desmascarar os viloes da informação, como diz um ditado popular em meu país: " O pior cego é aquele que não quer ver", ou seja, no fundo os populares gostam do vilanismo dos gananciosos. O socialismo é pra quem tem espirito social e não para a grande maioria da população que naõ o quer.... pensem nisso

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