quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A Crise Acabou e o que vem depois - O Milagre da Sulândia

Segundo rezam as crónicas, estaremos próximos do momento em que o défice público primário será zero. Duvido algo desta notícia, pois o FMI, ainda há meses, dizia que por cada euro de cortes de despesa a receita descia mais do que um euro. Seria portanto impossível reduzir o défice, nesta conjuntura.
Todavia, consideremos, a possibilidade do cenário de défice público primário nulo. Isto é, só precisaríamos de pedir dinheiro emprestado para pagar o dinheiro que já pedimos antes. Neste cenário, se o Estado não tivesse de pagar juros e amortizações, da dívida pública, não teríamos défice público.
Nessa altura, se o Estado deixar de pagar as dívidas, esse terrível papão de deixarem de, no futuro, nos emprestar já assustaria menos, pois já não precisaríamos desses futuros empréstimos para pagar as futuras despesas correntes e de investimento do Estado português.
Imagino que os rebeldes contra as finanças internacionais já estão a pensar que esse seria o momento ideal para deixarmos de pagar juros e amortizações. Infelizmente, as finanças internacionais somos também nós, todos os que temos poupanças nos bancos e os que precisam que continue a haver investimento (sobram só os mortos). Se os bancos credores adoecerem é natural que as nossas poupanças e rendimentos também fiquem com uma certa indisposição. Os cipriotas que o digam. É inegável que a crise tem sido um bodo para quem está no topo da pirâmide social, o que é inadmissível e deve ser corrigido com uma profunda mudança de regime mas, por agora, que grande gripe sistémica em que estamos metidos!

Todavia esta ideia do “default” (deixar de pagar juros e amortizações dos empréstimos, incluindo PPP´s e quejandos) não é monopólio de rebeldes. Um governo pode decidir entrar em default e só voltar a pagar quando o desemprego baixar para um certo valor, com uma indexação compósita, do pagamento, a outros indicadores, para além do desemprego. Estes indicadores podem conter duas vertentes. Uma delas pode expressar os níveis de efetivo sofrimento dos mais fragilizados e inocentes no processo da dívida. Quanto mais alto estes indicadores mais alto deve ser o default – isto é, maior será o montante que não se paga ou não se paga tão cedo. A outra vertente deve expressar correcções estruturais, como o nível de corrupção (quanto mais baixasse maior poderia ser o default), o grau de participação dos cidadãos no espaço público e de descentralização, etc. Obviamente, tratar-se-ia de um processo com uma vertente de imposição unilateral mas, também, de um modo de obter apoios políticos e solidariedade de outros povos, bem como credibilizar a nossa capacidade de pagamentos e de ser parceiro comercial e político, no futuro. Trata-se, no fundo, de uma renegociação de taxas de juro, prazos e anulamentos, parciais, de dívida, com uma componente heterodoxa (a indexação compósita, com as referidas duas vertentes) e partindo da força da posição de que existe pouca ou nenhuma necessidade de contrairmos novos empréstimos em breve (devido ao referido défice primário ser nulo ou muito baixo). Aliás, este default poderia atingir só certo tipo de credores, como os mais institucionais e políticos. Todavia, muito provavelmente depois de sofrimento inútil, estes vão conceder o perdão da dívida que têm em seu poder, até porque esse dinheiro foi produzido pelo quantitative easing (emissão eletrónica de grandes quantidades de moeda) e nada custou a ninguém.
Será que o default indexado rebentaria com os mercados financeiros e faria a Europa vir bater-nos com pau bondoso de troika? Acho que não e entre a catástrofe do desemprego (e outras desgraças sociais) e a catástrofe da ética (não honrarmos as nossas dívidas mas quanto a deshonrar contratos internos os governos têm sido pródigos contra os mais fracos) e os sismos nas finanças este seria um equilíbrio, salomónico, que talvez deixasse o menino vivo.
Aliás, para conseguirmos honrar integralmente a dívida precisaríamos de começar, já, a crescer perto de 10% ao ano (supondo que aproximadamente 1/3 iria parar aos cofres do Estado) e quanto mais tarde começarmos mais teremos de crescer em cada ano, devido à acumulação de dívida. Por outro lado, mais austeridade vai acabar por diminuir as receitas públicas e não liberta consideráveis montantes para superavit, como se tem visto. Mesmo que, um dia, por milagre, tal venha a acontecer nunca seria de grande magnitude, talvez 1 a 2%/ano e os cortes implicam mais pobreza, mais fome, perda de população jovem e qualificada (saldo negativo de 130.000 habitantes nos últimos anos), menos saúde, mais morte precoce e menos educação (a longo prazo será pior emenda que o soneto). A conjunção destes dois milagres (super crescimento e cortes superavitarios) parece muito improvável (mesmo só um já será difícil), relegando para Oz o pagamento integral da dívida, com um percurso de inferno para os devedores.
 
Mesmo supondo que o crescimento interno possa, por milagre, vir a ser de 1%/ano e virmos a ter 2%/ano de eventual redução da despesa primária, só com um setor exportador capaz de garantir crescimentos do PIB à volta 6 %/ano é que poderíamos pagar a dívida anual. Não esquecendo que se só tivermos uma conjunção destas daqui a 3 ou 4 anos, a dívida seria maior e todos estes números teriam de ser maiores também. Nunca tivemos nada parecido e não parece que a procura internacional hesitante e os países exportadores com mão de obra muito barata nos venham a deixar este espaço, para além do milagre do crescimento interno apesar de imensos cortes.
Temos, então, mais uma ideia salvadora – este default indexado ou melhor este “pagamento compósito” (que não mate nem incapacite o devedor e o deixe vivo para continuar a pagar). Infelizmente e com grande probabilidade, vai fazer companhia a outras ideias do panteão das ideias sebastianistas mesmo se boas, como o abandono do euro, as eurobonds, o quantitative easing maciço (como nos USA), a bi-moeda (defendida por Ventura Leite, embora não a chamando assim), as empresas públicas geridas por “stakeholders”, novos acordos de comércio internacional, taxa tobin, robotização e sociedade de part-time, autonomia energética, reindustrialização, etc.
E podem vir mais ideias, altas nobres e lúcidas e, quem sabe, se realizáveis que nunca encontrarão ouvidos de gente nem verão a luz do sol. O mundo é para quem o conquista e não para quem sonha conquistá-lo, mesmo que tenha razão, parafraseando vencidos doutras vidas.
Tudo isto faz lembrar a história da Sulândia e da Nortelândia, num planeta estranho.
As elites da Sulândia não parecem capazes de conquistar o apoio da Nortelândia para as novas ideias contra a crise, a não ser para as pauladas caridosas dos austerimos (o que, infelizmente, é melhor que nada).
O que as elites da Sulândia deveriam fazer? Deveriam fazer as reformas que assegurassem que desgraças desta dimensão, como o monstro da dívida pública e do engordamento de grupos rentistas e de corruptos, não voltariam a acontecer. Isto é o que a Nortelândia precisa de ouvir, para abrir as torneiras do quantitative easing (para promover crescimento e se fosse em grande dimensão talvez nem fosse preciso o “pagamento compósito”, o que seria bem melhor) e para apoio às outras novas ideias de combate à crise. A Nortelândia quer ouvir como na Sulândia se vão tornar mais precavidos, ter menos corruptos, ser mais seletivos na despesa pública e ficarem mais produtivos no geral (a produtividade da Sulândia é quase metade da dos países mais produtivos). Como é óbvio, estas serão reformas no sistema que governa a Sulândia. Sistema político e sistema cultural de atitudes, no trabalho e na vida pública. Aqui não há, aliás, grande segredo. As democracias do norte têm qualidade porque os cidadãos nelas participam ativamente, em associações, movimentos, decisões locais e várias outras instâncias às quais oferecem várias horas de trabalho por semana, para que a sociedade funcione devidamente e se desenvolva um espírito de equipa e responsabilidade que é muito útil, também, no mundo económico.
“Onde estava você no 25 de Abril da Sulândia” pode dizer-se agora de outra maneira – “Quantas horas você dedicou a atividades cívicas, de gestão dos bens públicos”? A “culpa” não é, afinal, unicamente, das elites sulândesas, dos políticos, dos mercados, dos exploradores, dos corruptos, dos funcionários públicos, dos constitucionalistas, dos banqueiros e de outros dessa laia expiatória – a culpa é tua, a culpa é minha, a culpa é nossa (diria um blogger sulândes). Certo que houve quem se aproveitasse regiamente e uns são bem mais responsáveis que outros. Não perguntes o que o país pode fazer por ti, sulândes – pergunta, também, o que podes fazer pelo país, como disse JFK, no século passado, na nortelândia das américas. Bem sei que há muito a mudar, muita exploração e corrupções diversas, está muita coisa errada mas não é a Nossa Senhora nem o Karl Marx que vão meter a mão na massa (supondo que a Sulândia e Nortelândia terão seres destes). Valha-nos a Nossa Senhora de Fátima que os ponha todos em peregrinação para a responsabilidade cívica. Só mesmo Ela, pois esta Sulândia detesta ideias novas (como provam os inquéritos do Hofstede, um Nortelândes homónimo do conhecido antropólogo da Holanda) porque, no fundo, ainda só gosta de césares e se acomoda nos seus quintais onde simula domésticos e radicais césares. Cultura cesarista, paroquial e individualista, oriunda de 20 séculos de impérios a partir de Roma da Sulândia. Para quando uma crítica das culturas nacionais e respetivo marketing social? Os sulândeses também têm muitos traços excelentes a acentuar, como a criatividade e o humanismo.

Na Sulândia existe uma espécie de Martinho Lutero que se revoltou contra a indulgência do regime (o nosso Martinho foi contra as indulgências dos pecados mas é parecido). O seu movimento político concentrou-se em escrever, nas portas das catedrais e nas paredes, os nomes de pensadores que eram desprezados pelas elites sulândesas. Alguns nomes de seres que fizeram reflexões e estudos inter-culturais, com aplicação aos dilemas sulândia/nortelândia – Weber, Almond, Verba, Unamuno, Antero, Putnam, Hofestede, Peyrefitte, Fukuyama, Inglehart e até o, recente, “Porque falham as Nações”, de Acemoglu e Robinson, apesar de não ser, propriamente, um estudo inter-cultural. Substituí os nomes sulândeses pelos equivalentes no nosso querido planeta, como é óbvio. E mais os homens das novas formas de democracia que poderiam ajudar a Sulândia a queimar algumas etapas e, já agora, a ajudar a Nortelândia que estava a ficar cada vez mais disfuncional - Crosby, Fishkin, Ackof, Dutra Faria, Schweickart, Hannel, Laliberté e Dryzek. E mais uns conceitos, escritos a letras amarelas nos sítios mais estranhos da Sulândia – democracia deliberativa, cognitiva, especializada, eletrónica, referendária, democracia líquida, transparência, vigilância cívica, ética, responsabilidade, participação, empowerment, descentralização, seriedade e planeamento a longo prazo. E ainda, escrevem o seguinte (o que já passou a ser punido com pena de cadeia) – “Suíça” (muitos referendos e decisões diretas, há séculos naquele país nortelandês), “Cromwell” (um César que abandonou o poder depois de o conquistar para a democracia e só voltou a ele em segundas núpcias e após insistência fatal) e “Demoex” (o mais simples, embora tosco, modelo de democracia direta eletrónica, de criação sueca-landesa e então muito usado pelo movimento populista “5 estrelas”). Tenho substituído os nomes sulândeses/nortelândeses pelos equivalentes no nosso planeta, como é óbvio.
Se aborreci com estas filosofias, pretensamente satíricas, peço desculpa mas relembro que a filosofia é uma consequência de estar mal disposto e estar mal disposto é uma consequência de um império sem filosofias.
 
autor: José Nuno Lacerda Fonseca

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Desigualdade e Crescimento

A bárbara agressão,  contra os trabalhadores, a classe média e os excluídos, perpetrada pelo neoliberalismo,  por intermédio do capital financeiro e dos seus sequazes, tem procurado buscar alguma legitimidade, alegando estar a seguir os ditames de uma infalível ciência económica, objectiva e neutra. Obedecer ao que é de facto um verdadeiro esoterismo numerológico seria afinal garantir, a longo prazo, a melhor solução; que, pela sua exclusiva conformidade com a ciência, seria afinal a única possível. O breve texto que a seguir transcrevo contribui muito para desmontar  essa mistificação. Por isso, as instâncias  de poder do capitalismo financeiro internacional podem ainda reproduzir como autómatos as vulgatas ideológicas do neoliberalismo; mas fazem-no já como espectros de uma ideologia que a realidade tornou  obsoleta.

Desta vez, achei que devia traduzir o referido texto, para que todos o possam ler sem serem embaraçados pela  barreira da língua. O texto foi publicado no jornal italiano  Repubblica (31 de  maio de 2013), sendo seu autor o jornalista Roberto Petrini . Trata-se de um comentário a uma recente descoberta do economista norte-americano Joseph Stiglitz, nome sobejamente conhecido que se tem imposto pelo rigor e desassombro crítico. O título alerta-nos desde logo :"A desigualdade mata o crescimento: eis a demonstração de Stiglitz". E acrescenta-se  de imediato:


"Com o teorema de Stiglitz foi infligido outro duro golpe à ortodoxia neoliberal dominante nos tempos da grande crise: se o índice de Gini ( ou seja, o indicador que mede a desigualdade) aumenta, o “multiplicador” dos investimentos diminui e assim o PIB abranda. Eis porque razão".

Segue-se depois o texto:

"É a desigualdade o verdadeiro “killer” do PIB. Nos países onde os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres o produto interno bruto marca passo e às vezes cai. Nas nações onde existe uma grande “middle class” , pelo contrário, a prosperidade aumenta. O Prémio Nobel Joseph Stiglitz rompe com as demoras  e formaliza num verdadeiro teorema, como ele próprio o define, a síntese dos estudos que dirige há anos.

O teorema de Stiglitz a partir da frente keynesiana lança uma bomba nas trincheiras neoliberais. Baseia-se no mecanismo do que os economistas chamam a “propensão para o consumo”: os ricos tem-na mais baixa do que a classe média, logo se a distribuição do rendimentos lhes favorece o “shopping”, contrariamente ao que se podia pensar intuitivamente, ela deprime-se. É, pelo contrário, a classe média a consumir quase tudo aquilo que tem no bolso e a impulsionar o PIB e a economia, quando a distribuição do rendimento a favorece. A prova? O gráfico de Stiglitz é inatacável quando os ricos ( ou seja, o 1% mais rico da população) se apropriam de 25% do rendimento rebenta a “bomba atómica económica”. Aconteceu assim com a Grande Crise dos Anos Trinta e com a grande recessão deste século. Além de que as teorias neoliberais que têm marcado os últimos trinta anos: “ os apologistas da desigualdade sustentam que dar mais dinheiro aos mais ricos  - escreve Stiglitz no seu relatório   ̶-   seria vantajosos para todos, porque levaria a um maior crescimento. Trata-se de um ideia chamada “trickle-down economics”( economia de efeitos em cascata). Ela tem um longo “pedigree” e há tempos que tem vindo a ser desacreditada.”

A ocasião para serem apresentados os extraordinários resultados da investigação de Stiglitz, numa espécie de antestreia mundial, é a convenção organizada em roma pela SIEDS ( la Società italiana di economia, demografia e statistica), iniciado ontem (30 de maio de 2103), onde o Prémio Nobel enviará as considerações conclusivas, escritas a quatro mãos com o seu próximo colaborador italiano da Università Politecnica delle Marche, Mauro Gallegati.

Assim o “mainstream” é posto a um canto. O teorema é claro e luminoso como uma fórmula química ou um relação física: se índice de Gini ( ou seja, o indicador de desigualdade inventado por um economista italiano, Corrado Gini) aumenta, logo aumenta a desigualdade, o “multiplicador” dos investimentos diminui e portanto o PIB trava.
A equação de Stiglitz arrisca-se a ser o terceiro golpe nas posições da teoria económica dominante agora vacilante. O primeiro, dado há alguns meses, foi aquele que pôs em causa o 2dogma2da austeridade: o FMI na verdade calculou que o corte do deficit num ponto percentual reduz o PIB em dois e não apenas  ̶  como se cria até hoje  ̶  em meio ponto percentual. O outro golpe desajeitado foi aquele que desmontou, desmascarando um erro “Excel”, a teoria da dívida de Rogoff e Reinhard, segundo a qual para além dos 90 por cento na sua relação com o PIB ela levaria inevitavelmente à recessão.

Mas o novo assalto de Stiglitz arrisca-se a ser ainda mais perigoso para as teses do “status” económico. A desigualdade, de facto para o Prémio Nobel, fere profundamente o PIB, não só através da queda dos consumos mas também porque o sistema é “ineficiente” se prevalecem rendas e monopólios. “Frequentemente a caça ás rendas  ̶ concluem Stiglitz e Gallegati  ̶  comporta um verdadeiro esbanjamento de recursos que reduz a produtividade e o bem-estar do país”.


Autor: Rui Namorado

terça-feira, 14 de maio de 2013

A Utopia da Ideologia de Centro e da própria Independência Política

Quando os sistemas políticos entram em crise, tal como ocorre agora em Portugal, e talvez de um modo mais generalizado por toda a Europa, é normal questionar-se o modo de funcionamento do próprio sistema político. Em Portugal isso passa, quer se queria quer não, pela avaliação da prestação político/partidária, e supostamente pelo colocar em cheque das ideologias. Isso seria coerente e útil se de facto a ação política se cingisse à aplicação e desenvolvimento em práticas governativas das supostas ideologias - que seria suposto serem a marca diferenciadora dos partidos, movimentos ou afins. Dessa análise, que passa pelo debate ideológico, surge uma questão que merece ser analisada. Admitindo que Esquerda e Direita são ideologias válidas, com pontos fortes e fracos capazes de se converterem em políticas benéficas e maléficas, dependendo dos casos, das conjunturas e momentos históricos, não deveria ser o meio-termo a melhor opção? Ou seja, não deveria ser o Centro a melhor opção, pois seria aquela que reuniria a melhor das duas tendências?

Sim, o Centro poderia ser a melhor opção se existisse de facto! Tal como bem argumenta Augusto Santos Silva em “Os Valores do Socialismo Democrático”, o Centro é uma impossibilidade prática, pois ,quando se assume o Centro tende-se sempre obrigatoriamente mais para a Esquerda ou para a Direita. Ter uma ideologia de Centro é tão inverosímil como ser totalmente independente. Ninguém, em política, é verdadeiramente independente, nem do mundo que o rodeia nem da sua própria consciência, pois isso seria uma atitude apolítica, logo um paradoxo inultrapassável.

Já o neurocientista António Damásio defende e fundamenta que: “A razão provém da emoção”. Para atingirmos uma construção racional terá de ter havido sempre um despoletar emotivo, nem que seja no que leva à escolha do tema em causa para essa construção intelectual. Já Daniel Kahneman, reputado especialista em psicologia social e prémio Nobel da Economia, vai mais longe dizendo que a nossa tomada de decisão, mesmo a mais racional, forma-se através de enviesamentos decorrentes das heurísticas que formamos entre o que sabemos e pretendemos saber ou fazer.
Assim, o cidadão – para não lhe chamar político, de modo a evitar preconceitos – por mais independente que queira ser, e manter-se no Centro absoluto da política, terá tido sempre um ou mais motivos para fazer política que o condiciona, mesmo que inconscientemente. Logo, pela heurística, decorrente da sua experiência e cognições, terá sempre uma tendência para a Esquerda ou Direita no geral, ou para medidas e posições concretas num ou outro assunto particular identificáveis com as várias ideologias, na tentativa de atingir um determinado equilíbrio. O Centro poderá ser então o objetivo ideal final, mas nunca o fim.
A “via do meio”, chamando agora aqui o ideal budista, é uma impossibilidade política prática, pois a “mais nobre das artes” - a política - faz-se por homens e mulheres, incapazes de se desligarem da sua condição, e porque vivem em sociedades existentes em diversos momentos históricos, sempre com algum grau de desequilíbrio que exigem as suas atuações políticas (procurando progresso ou manutenção de status). As ideias não se dissociam das pessoas, logo as ideologias e as ações políticas são sempre tendenciosas para a Esquerda ou para Direita, tendo em conta a perceção dos desequilíbrios de quem as faz. O fim é o tal equilíbrio utópico que é o Centro, e que nunca será alcançado.
Esta é a minha razão fundamenta por atalhos racionais dependentes da minha própria experiência que condiciona as cognições estruturantes do meu próprio pensamento, que aqui se manifesta politicamente e filosoficamente de forma errónea, tal como em muitas outras pessoas (para não dizer que é mesmo em todas).


autor: Micael Sousa

terça-feira, 5 de março de 2013

Manifesto para uma Revolução do Civismo

Vivemos em sociedades complexas e de mudança rápida, exigindo uma atualização, constante, das conceções do mundo que presidem à ação política, económica, social e cultural.

O sistema de governação necessita de se adaptar às novas exigências, abrindo-se à inovação, no sentido das decisões serem mais participadas, mais mobilizadoras e ser mais elevado o seu nível informativo e cognitivo, nomeadamente no que concerne às decisões políticas de longo prazo e estruturantes. É necessária grande abertura ao uso de meios eletrónicos de participação dos cidadãos nas decisões. É necessário arrojo para desenvolver mais referendos, petições e experiências de democracia especializada, mais direta, com grupos temáticos, abertos aos cidadãos e que possam influenciar, mais frequentemente, as decisões sobre os bens comuns. É importante que se vote em mais instâncias e, sobretudo, de forma muito mais informada. As centenas de experiências de novas formas de democracia que têm vindo a ocorrer, por todo o mundo, devem ajudar-nos a conceber novas formas do regime democrático. No geral, exige-se mais participação, inovação, descentralização, informação e transparência.
Só assim se poderá ter a devida qualidade numa, necessária, regulação política dos sistemas económicos, financeiros, culturais e sociais, já que as imperfeições informativas dos mercados exigem sistemas complementares de orientação que se não tiverem grande qualidade não serão benéficos, tornando-se mesmo altamente perniciosos.
Se por um lado precisamos de novos processos, simultaneamente precisamos de promover, em toda a sociedade, uma cultura cívica mais participativa, com realce para a responsabilidade social e espírito de equipa, leal, positivo e ambicioso. Esta transformação cultural, chocando com certos traços culturais mais individualistas, deve ser um vetor indispensável para o desenvolvimento político e social mas, também, em igual escala, para a economia e para a organização de métodos concretos de trabalho.
 
 

A economia deve estar ao serviço do bem-estar e da sustentabilidade e não constituir um valor em si mesmo, unicamente equacionado no curto prazo. Sociedades com menores assimetrias de poder são sociedades mais livres, mobilizadoras e estáveis. A sustentabilidade do crescimento económico exige novos sistemas. Uma verdadeira concorrência exige que os diversos sistemas económicos também possam concorrer entre si. É indispensável relançar sistemas de empresas públicas, não em monopólio mas em livre concorrência. Nas empresas públicas de novo tipo, incidindo, sobretudo e para já, no setor das energias alternativas e robótica, os gestores e seus princípios programáticos devem ser escolhidos, diretamente, por fóruns do público interessado e serem, periodicamente, acompanhados, avaliados e incentivados, por estes fóruns, devidamente formados e informados para o efeito. Este novo tipo de empresas de cidadania deve fazer parte de um sistema económico misto, juntamente com empresas totalmente privadas, cooperativas e empresas com objetivos diversos e em diversas formas de propriedade.
O Estado Social não pode ficar quase totalmente dependente de impostos e taxas, excessivamente pesadas, sobre cidadãos, empresas privadas e cooperativas, devendo o setor público empresarial dar um grande contributo financeiro para este fim, aliviando a carga sobre cidadãos e empresas.
O sistema financeiro carece, também, de uma profunda intervenção, na sua gestão e regime de propriedade, de forma a assegurar que fique ao serviço do investimento produtivo e não ao serviço da especulação financeira não produtiva.
A promoção de melhor investigação, mais condizente com as necessidades empresariais, a conceção de um sistema internacional, mais aberto, de deteção e difusão das melhores práticas, tecnológicas, organizacionais e metodológicas, não pode ficar excessivamente restringida pelas lógicas de secretismo e de monopolização do saber, numa lógica fechada na perspetiva privada e individualista, não obstante a necessidade de reconhecer, de forma incentivadora, todas os criadores e as suas criações.
 
 

Temos de reconhecer que sem ética não será possível nenhum tipo de sustentabilidade nem de desenvolvimento. De facto, não é possível colocar-se um polícia atrás de cada cidadão. A degradação da ética implica uma degradação da confiança mútua e nas instituições que acabará por paralisar os contratos e acordos, formais e informais, nos quais se baseia o funcionamento económico e social, podendo ocasionar uma implosão sistémica. Infelizmente, num mundo racionalizado pelo espírito científico, a ética já não beneficia de fortes sistemas culturais fundamentados pela tradição. São necessárias políticas ativas de promoção da ética. A luta contra a corrupção e contra o crime em geral exige a avaliação objetiva da performance das instituições envolvidas, nomeadamente através de comparações internacionais detalhadas, fazendo da performance um critério importante para a recompensa remuneratória dos agentes envolvidos. Tal sistema deve ser complementado com processos de auditoria e recurso hierárquico, bem como devem ser acompanhados por organizações internacionais, por grupos vastos de cidadãos e representantes de todas as partes envolvidas, organizadas deliberativamente, para controlarem e ajudarem a melhorar e aperfeiçoar o sistema, num enquadramento de grande transparência.
A ética não pode ser mobilizadora unicamente mediante apelos altruístas. A questão política mais fraturante da ética, sobretudo desde o século XX, tem sido a da justiça social distributiva dos rendimentos. Neste aspeto, parece que não serão de validar desigualdades de rendimentos superiores ao nível necessário para incentivar os indivíduos a darem o seu melhor. As desutilidades relativas (esforço, risco, erosão sobre a saúde, etc.) das diversas atividades merecem desenvolvimento de sistemas estatísticos e de outros sistemas de observação que venham a aproximar-nos de um novo consenso ético e político sobre esta fraturante questão.
A política de promoção da ética terá, contudo, de ser muito mais abrangente e entendida contendo tanta importância como, nomeadamente, as políticas de educação ou de ambiente. A educação do consumidor, para o uso dos meios da comunicação social e da recreação de massas, devem preencher um tempo de antena significativo e expressar uma perspetiva pluralista sobre os possíveis impactos éticos das diversas peças mediáticas. Serviços cívicos com caráter pedagógico, sistemas de reconhecimento social de comportamentos éticos, disponibilização de educação ética para o cidadão, são exemplos de muitas das possíveis vertentes de uma necessária política integrada de promoção da ética.
A mudança terá, pois, de alargar-se para a política, economia e cultura, de forma necessariamente sinérgica e exigirá uma base social de apoio muito ativa. Para que esta base exista, torna-se vital a existência de uma revolução cívica, num caminho para mais responsabilidade, mais informação e mais ética. Neste âmbito os cidadãos devem organizar-se em fóruns, cada um vocacionando-se para exercer mais acompanhamento e controlo cívico sobre cada organismo, empresa de cidadania e instituição pública. É este o caminho, íngreme, já esboçado, em potencial ainda imaturo, nas escolas públicas e que deve expandir-se para os serviços públicos, hospitais, direções gerais das administrações públicas, todas as empresas e institutos públicos. Para cada uma destas organizações deverá surgir um grupo aberto de cidadãos que assegurará a, efetiva, dedicação de cada organismo público aos interesses do público e da nação, através, sobretudo da seleção dos dirigentes destes organismos e das suas estratégias genéricas. Certos tipos de organismos privados, cuja lógica tem sido danosa do desenvolvimento económico, devem ser abrangidos pelo mesmo tipo de ação, sempre com respeito pelos legítimos direitos dos seus proprietários mas definindo o sentido de uma gestão a favor do crescimento real, não meramente financeiro e especulativo, não oligopolista e não destrutivo da nossa indústria e ambiente. Não se trata de um caminho fácil, pois exigirá que os cidadãos estudem as matérias, se abram à informação plural e se organizem, de forma aberta e democrática, num ambiente de trabalho, civismo e responsabilidade coletiva.
Este tipo de participação cívica, complementado vários outras, está a tornar-se uma urgência, desde já ao alcance do cidadão, sem ser preciso esperar por entidades internacionais ou nacionais. Este movimento de participação, descentralização e abertura deverá criar o ambiente para uma abertura política que, por sua vez, possibilitará amplas mudanças a vários níveis, com diversos atores e ideologias.
Este movimento, da revolução cívica, deverá não só reestruturar a gestão dos bens comuns mas, também, já que a sua força será a responsabilidade coletiva, trazer a ética para a primeira linha do debate, refletindo sobre modelos de sociedade, sobre sistemas de valores devidamente adaptados às sociedades atuais e sobre formas de fundamentação e promoção da ética.   
Este movimento de responsabilização coletiva é um caminho vital para um Estado eficiente, concatenado na organização da sociedade civil, para uma sociedade informada, participativa e ética, para uma economia ao serviço das pessoas, para uma cultura de mobilidade e incentivo, para melhores empresas e melhores trabalhadores, para uma sociedade mais equilibrada e sustentável.
 
autor: José Nuno Lacerda Fonseca

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Reconstruir o Socialismo ou Esquecer o Futuro para Sempre

O EXEMPLO DE LALIBERTÉ

A crise do movimento socialista é uma crise de ideologia e, só depois, uma crise de mobilização para a ação. Foi o vazio ideológico dos partidos socialistas nos últimos 30 anos que nos trouxe a esta difícil situação.
Contudo, creio que em todos os aspetos ideológicos as novas ideias já existem. Infelizmente, encontram-se espalhadas por perto de três dezenas de autores, muitos dos quais nem se reclamam de socialistas.
Talvez a reconstrução socialista, ao contrário da primeira vaga socialista que foi derrotada pela contra reforma neoliberal, não se centre em dois ou três autores e seja, sobretudo, um trabalho de compilação e articulação de várias teorias e autores, em redesenho permanente e rápido.

A reconstrução ideológica deve conter, pelo menos, os seguintes eixos:
1. Uma teoria do valor do trabalho (inexistente desde o abandono da teoria marxista da exploração);
2. Uma teoria de sistema económico (o que é uma economia socialista e quais os meios e fases de transição?);
3. Uma teoria da democracia e do poder (qual a relação entre poder político e poder económico, quais as limitações da democracia parlamentar e quais os contornos de uma democracia socialista?);
4. Uma teoria da cultura (estrutura de valores éticos, de poder e de consumismo e respetivas políticas de promoção da ética);
5. Uma conceção sobre a regulação dos mídia;
6. Uma reflexão sobre as alterações de paradigma que uma sociedade de informação traz aos velhos paradigmas de mercado e de empresa;
7. Uma teleologia, articulando os objetivos últimos da sociedade, do homem e de equilíbrio de valores, com igualdade e liberdade.
8. Uma teoria de crescimento económico, em articulação com os estudos interculturais sobre atitudes, instituições e benchmarking de métodos de trabalho.
Na linha desta tese podemos olhar para a teoria da democracia que hoje tem de se centrar em autores como Schmitter, Fishkin, Crosby, Laliberté e outros que tentam responder à problematização iniciada, em 1957, por Anthony Downs, sobre o défice informativo estrutural da democracia parlamentar.
Olhemos, por exemplo para o recente “Reinventar a Democracia", de Jean Laliberté http://www.septentrion.qc.ca/jeanlaliberte/.

Trata-se de um livro que coloca a tónica das decisões políticas nos grupos temáticos/especializados (temas como saúde, educação, segurança, etc., ou subtemas destes), abertos aos cidadãos que neles queiram participar. Isto é, de facto, o fundamental para uma “democracia semi-direta especializada” que há muito defendemos, tendo, nomeadamente, marcado o início deste blogue.
Contudo, embora perfilhando a centralidade destes grupos especializados, o autor parece não perceber a essência destes grupos e que será o melhor conhecimento das matérias e a repartição pelos cidadãos do trabalho de análise das políticas. Todo o restante sistema político descrito pelo autor pode ser da maneira que ele preconiza ou de várias outras, igualmente boas ou mesmo melhores. O exercício do autor é muito interessante mas perde-se em pormenores, não diferenciado o essencial do acessório. A certa altura, chega mesmo a perder completamente o centro do seu argumento e confere a última palavra deliberativa a uma assembleia nacional (equivalente ao atual parlamento) escolhida por sorteio, depois de uma pré-seleção efetuada pelos tais grupos temáticos.

Em suma, não consegue resolver o grande problema deste tipo de esquemas políticos celulares (decisões tomadas em pequenos grupos auto-construídos) que é a coordenação das políticas, já que para o tentar resolver recorre a uma ideia fraca para o feito, embora com virtudes. Trata-se da referida escolha por sorteio, para escolha dos parlamentares. Infelizmente a probabilidade de 51% serem de uma minoria é considerável) e nada tem a ver com a essência do seu argumento (deliberação em células democráticas especializadas por temas).
Está, também, o livro excessivamente contra os partidos políticos e os “mass media”, não percebendo que estes podem e devem evoluir. Contudo, é o segundo esquema utópico moderno e abrangente que conheço (o outro é o da democracia líquida e só conheço o site e não os autores). Conhecem-se muitos autores académicos que analisam estas questões, de várias perspetivas, desde o seminal Anthony Downs. Conhecem-se, também, muitas experiências práticas de novas formas de democracia (júris de cidadãos, orçamento participativo, assembleias do século 21, etc.) mas este livro é uma grande utopia política que já muito raramente acontece encontrar. Um livro importante para o futuro, apesar das debilidades que, aliás, qualquer livro sempre terá.

autor: josé Nuno Lacerda Fonseca
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