quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Repartir o trabalho, taxar o capital

Estas ideias são todas antigas. No período de grandes crises que se seguiu à Guerra de 1914-18, os anarco-sindicalistas portugueses procuravam distribuir o pouco trabalho existente por todos os trabalhadores, de molde a evitar os despedimentos e a completa falta de recursos para os desempregados sobreviverem. A CGT chegou a falar numa redução do horário para 30 horas semanais, mas, de facto, em alguns sectores (como no vidro, nos transportes marítimos, na metalurgia, na cortiça), os sindicatos lograram diminuir drasticamente o tempo de trabalho – e o correspondente salário – equitativamente entre toda a força-de-trabalho. Em contrapartida, os comunistas de então reclamavam a criação de um subsídio para os sem-trabalho – a que Salazar respondeu com um desconto obrigatório de 2% nos salários para um Fundo de Desemprego que, aliás, só veio a pagar subsídios aos desempregados mais de três décadas depois…
Há poucos anos, falavam certos especialistas europeus nas vantagens de “repartir o trabalho”, nomeadamente através do incremento do trabalho-a-meio-tempo. Na Holanda e outras nações nórdicas, esta modalidade de emprego está significativamente mais difundida no que na generalidade dos países (embora, naturalmente, o nível de salários aí praticado facilite tal opção).

Agora, em plena crise, ninguém parece sugerir soluções deste tipo, muito menos em Portugal. Os que têm trabalho agarram-se a ele, aceitam alongamentos do horário; e os que fazem regularmente “horas suplementares” nem por sombras pensam prescindir desse rendimento extra a que se habituaram. Lamentam os colegas lançados para o desemprego, bramam contra o governo e os ricos, mas: nem sonhar com qualquer modalidade de resistência económica mais equitativa e solidária! No mundo individualista e concorrencial em que vivemos, não espanta que assim aconteça.

É certo que as taxações dos altos rendimentos e das operações financeiras especulativas aparecerão sempre, aos olhos da maioria, como as soluções mais justas e mais óbvias, que não serão mais vigorosamente executadas apenas pelo “conluio existente entre os poderes político e económico”. Há uma certa dose de verdade nesta afirmação, mas o problema mais espinhoso é que, para cada país de per si (e pior se for um país pequeno), os impostos sobre a riqueza financeira afastam imediatamente os capitais e os investimentos produtivos para outras paragens, não apenas por motivos de ganância, mas também pela decisão racional de um gestor financeiro que vai proporcionar a cada um de nós – pequenino aforrador ou depositante bancário – uma remuneração das suas poupanças ligeiramente mais atractiva. Este, um dos dramas da insidiosa economia global actual. Os grandes números fazem o resto.

É, porém, possível que todos tenham uma parte de razão, mesmo pensando apenas no curto prazo. Que, de acordo com a situação de cada sector de actividade e um reexame das prioridades pessoais de cada qual, se possa caminhar para mais frequentes soluções de “partilha do trabalho” e modalidades de part-time. Que, mesmo de forma não-contributiva, não devam faltar a cada pessoa os apoios de sobrevivência mínima, sem que com isso se estimule o ócio ou a delinquência. E que a falada “supervisão financeira internacional”, constrangindo e taxando os movimentos de capitais, permita um aumento significativo da contribuição das classes mais ricas em favor de um desenvolvimento mais equilibrado do conjunto da sociedade.

autor: João Freire

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ética e Política

  Intransigência ética perante a injustiça, serenidade intelectual perante a complexidade e agressividade crítica em face das mistificações, são atitudes que podem contribuir para que se avance muito na compreensão das (e na luta contra as) causas da tempestade que tem vindo a varrer a Europa, no vislumbre de caminhos novos e na capacidade de pôr de pé uma solidariedade prática, que minore sofrimentos e desembarace o futuro das suas piores sombras.


  Por isso, não é possível que se deixe de questionar a qualidade ética do capitalismo, decorridas pelo menos duas décadas sobre a afirmação inequívoca do seu domínio sem partilha, sobre o nosso planeta. Na verdade, num tempo de acelerada evolução da técnica, de exponencial aumento dos conhecimentos e de enorme crescimento das oportunidades comunicacionais, continuam a somar-se os milhões de seres humanos que sobrevivem na fronteira do insuportável, sucumbem nas margens da doença e da insalubridade, mergulham na violência, na exclusão e na ignorância. E, para agravar a ilegitimidade moral desta vigência, os automatismos predatórios que estruturam o essencial do capitalismo parecem ter desabado sobre a Europa, para anularem séculos de luta dos povos por uma vida melhor, na voragem de uma crise, cujas causas, com um desarmante cinismo intelectual, chegam a ser atribuídas às vítimas, pelos mastins mais lineares da propaganda neoliberal. É como se uma imensa força, intrinsecamente corrupta, tivesse usado o seu poder para se absolver a si própria, pela invenção de uma legalidade espúria, cuja primeira raiz é um salvo-conduto concedido aos protagonistas centrais do capitalismo, para triturarem milhões e milhões de seres humanos. Para os sacrificarem no sombrio altar dos seus interesses económicos, da sua voracidade objectiva, alimentada automaticamente pela lógica do capital. Contra esta injustiça estrutural, os socialistas não podem deixar de ser eticamente intransigentes.
  Mas ao mesmo tempo que é indispensável que nos deixemos impregnar por esta intransigência ética, não podemos confundi-la com qualquer precipitação voluntarista ou com primarismo intelectual. A complexidade do mundo de hoje, da vida social, da civilização moderna não se compadece com abordagens simplistas, com atitudes políticas unidimensionais, sob pena de ineficácia e de irrelevância. E se a complexidade se enfrenta tanto melhor, quanto mais a acção política conseguir ser um acto de cultura (talvez porque nenhuma atitude crítica pode vicejar à margem da cultura), podemos concluir que a luta política deve ser, cada vez mais, um acto de cultura; principalmente se não renunciar, suicidariamente, à sua dimensão ideológica.
  Ao fim e ao cabo, é bem verdade que não se combate adequadamente o modo como se estruturam e reproduzem os tipos de sociedades actuais sem as conhecer, tal como é improvável participar num combate emancipatório, sem se conhecer bem os combates pela libertação e emancipação humanas que fizeram a História.
  E, desde logo, entre os muitos rostos da complexidade não podemos deixar de salientar a enorme tensão entre o imperativo de se contribuir para que a sociedade em que vivemos funcione e a recusa a renunciar-se à sua transformação numa sociedade outra. Contribuir para que ela viva o melhor possível, sem deixar de tudo fazer para que ela se encaminhe para uma metamorfose, da qual nasça uma nova sociedade. Uma sociedade humanista, por ser livre, justa e fraterna, à qual só se pode chegar democraticamente.
  Por isso, o caminho tem que consubstanciar a dignidade das pessoas, de todas as pessoas, sem que , por isso, se possa consentir na instrumentalização crescente dos seres humanos pela lógica reprodutiva do capital. O lema tem pois que ser: as coisas ao serviço dos seres humanos e não os seres humanos ao serviço das coisas.
  Portanto, sendo o Estado transformador a instância politica adequada para pilotar um trajecto que nos leve à metamorfose desejada, ele tem que ser também um Estado social sempre mais ambicioso e mais eficaz. Tem que ser, em sinergia, transformador e social. Os seus eventuais êxitos na transformação da sociedade vão necessariamente potenciar a sua eficácia como Estado social, mas, ao mesmo tempo, a eficácia do Estado social dará forçosamente uma energia acrescida ao Estado transformador.
 Por isso, é uma perspectiva, em si própria, mistificatória dizer-se apenas que um certo nível de desenvolvimento económico não é suporte suficiente para um determinado Estado social. Conjunturalmente, isso poder ser certo ou errado, dependendo da conjuntura, das medidas tomadas ou de certas políticas praticadas, mas no médio prazo é necessariamente uma mistificação. De facto, a verdadeira questão é outra. Não a de saber se um determinado nível de desenvolvimento de uma sociedade capitalista pode garantir um Estado social susceptível de assegurar o bem-estar dos seus cidadãos; a verdadeira questão é a de se saber se sociedade se deve manter dentro do sistema capitalista, uma vez que assim não consegue satisfazer as necessidades sociais de todos os seus membros.
  Ainda neste plano, é também importante sublinhar que a energia política transformadora tem que se fazer sentir na própria sociedade civil, nas respectivas instituições sociais, económica e culturais, e não apenas nas instituições políticas que constituem o Estado. Nestes vários planos, que traduzem a complexidade do mundo actual, os socialistas têm que ter uma enorme serenidade intelectual, mas não podem estar ausentes de nenhum. Têm que estar organizadamente presentes, valorizando a cultura como seiva de qualquer atitude crítica e aprendendo a conjugar o exercício do poder político e um novo tipo de protagonismo nos movimentos sociais. Não podemos continuar a jogar rotineiramente num só tabuleiro. Não podemos ter a ilusão de que agimos consistentemente numa sociedade multidimensional com base numa visão do mundo unidimensional.
  Mas manter uma serenidade intelectual exigente e rigorosa, não significa que se caia em qualquer tipo de pusilanimidade crítica. Estamos, na verdade, mergulhados num tempo em que o espaço mediático é ocupado por matilhas de mistificadores que executam uma tarefa vital para a conservação dos poderes instalados: a de ocultar o essencial da realidade social. Ocultar, quer amontoando histericamente pequenos factos irrelevantes, revestidos de uma falsa importância , quer através de autênticas mentiras e falsificações.
  Neste contexto, nada justifica que se tergiverse nas respostas à propaganda neoliberal, que se amoleça no combate ideológico, que se deixe os “tartufos” campear sem peias, que se deixem sem réplica os deploráveis bichanos mediáticos que vão ronronando amabilidades junto dos donos. No entanto, esta atitude de combate não pode confundir-se com qualquer girândola de tiros de pólvora seca, mais tributários de uma ingénua ânsia de notoriedade do que de uma genuína vontade de intervir na luta política.
  De facto, um combate político digno esse nome é objectivamente exigente. Necessariamente colectivo, há-de ser uma teia viva de protagonismos cívicos individuais. Organizado, não pode renunciar à frescura de uma espontaneidade mínima. Necessariamente criativo, não pode confundir-se com um acumular de frases feitas e de ideias previsíveis.
 Honestidade, criatividade, consistência, conhecimento daquilo sobre que se escreve, respeito pela língua portuguesa, não podem estar ausentes, sobe pena de, afinal, se estar apenas a fazer um estéril ruído de fundo, para dissimular o alheamento de um combate de que se desertou por incompetência.

autor: Rui Namorado
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