quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Limitações Públicas Vs. Liberdade Privadas

É do senso comum dizer-se “no privado trabalha-se melhor que na função pública” e que “o sector privado e mais eficiente”. Mas será verdade? Admitindo que é, não será importante refletir sobre isso, sobre quais as razões que podem originar posições desiguais?
Exemplo da opinião depreciativa generalizada face aos funcionários públicos

Pessoalmente não diria que o privado – só pelo facto de o ser e pela sua essência - é mais eficiente e produtivo que o sector público, diria somente que o sector privado tem muito mais liberdade e incentivos a ser mais produtivo e eficiente que o seu congénere – se é que isso se pode dizer deste modo – público. Se no sector privado existe mais liberdade e possibilidade de incentivar a produtividade dos funcionários (com prémios de produção, horas extra devidamente remuneradas, elogiar dos funcionários por chefias ou outros métodos de reconhecimento entre colegas, da progressão na carreira pela próprio percurso meritório do funcionário, etc.) essas mesmas opções para o sector público estão muitas vezes vedadas. Como poderemos motivar e incentivar ao aumento da produtividade dos funcionários públicos se impedimos que o sector tenha ferramentas para a concretizar? Poderão dizer que existe o SIADAP e que as avaliações de desempenho servem para isso mesmo, mas com carreiras congeladas e com limitações no tipo de avaliações que meios existem na prática para destacar o mérito?
Algo que pouco ajuda também à dignificação da função pública e melhoria do serviço prestado é a opinião pública das populações. Muitos cidadãos, desconhecendo as limitações a que são submetidos os funcionários públicos, e restrições que impedem os melhores de se destacarem, catalogam e rotulam os funcionários públicos todos por igual – tomando o particular pelo todo tendencialmente pela negativa - de serem incapazes e improdutivos. Terá alguém – funcionário público ou privado - a resiliência e capacidade mental de aguentar entraves ao desvendar dos seus méritos e os preconceitos e juízos de valor alheios em simultâneo? Terá o funcionário público a opção de ser melhor do que aquilo que dele fazem? Mas nem todos os cidadãos são injustos nos seus juízos de valor e muitos reconhecem em determinados funcionários públicos grande capacidade de trabalho, mas referem-se a esses casos quase sempre como casos pontuais e não o contrário. Provavelmente, para além do SIADAP, seria interessante poderem ser os próprios cidadãos, munidos de dados fidedignos e adequados, a fazerem ou contribuírem com uma parte da avaliação dos funcionários públicos. Seria um caso a estudar e até um ponto de ligação com uma cidadania mais activa.
Por outro lado, que dizer das burocracias impostas aprovadas por decretos, regulamentos e leis? Aquilo que é célere numa empresa pode torna-se um infindável e moroso processo no sector público. Por mais boa vontade que os funcionários públicos tenham, muitas vezes, para serem eficientes e competentes nas suas funções – naquilo que têm de fazer enquanto burocratas - são obrigados a procedimentos que os desmoralizam. Ninguém gosta de servir mal quando pode servir bem, e ninguém, igualmente ou ainda em maior grau, gosta de ser mal servido quando sabe que pode ser tratado de modo diferente.
Assim, sempre que quisermos pelo menos tentar comparar a eficiência e eficácia entre sector privado e público, teremos de atender, sem ideias pré concebidos e juízos de valor infundados, que em muitos casos os dois sectores são incomparáveis por não se regerem pelas mesmas regras e por não terem as mesmas oportunidades e liberdade de trabalho.

Pensando numa solução de âmbito geral, tendo em conta a ideologia em que assenta o socialismo democrático, os funcionários públicos, tal como todos os funcionário, deveriam ter as condições mínimas para exerceram as suas funções, mas nunca limitações que os impeçam de produzir mais e melhor, pois perdem eles, perde o serviço e a comunidade que não tem a qualidade de serviço que poderia ter.

autor: Micael Sousa

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O ataque ao Estado Social


A ideia retratada nesta imagem, apesar de se reportar à realidade norte-americana – e às visões opostas de democratas e republicanos –, não deixa de estar também bastante próxima do que acontece actualmente em Portugal e na Europa.
Nos últimos tempos têm-se ouvido várias vozes – seja de políticos mais à direita, seja dos economistas e pseudo-economistas neoliberais que preenchem a comunicação social – que culpam o Estado Social pelo estado das contas públicas e pelas dificuldades de equilíbrio no orçamento nacional.
É isso que nos dizem. É essa a motivação para cortar no Estado Social. É essa a desculpa que usam para defender privatizações de empresas públicas em sectores essenciais e em que não há concorrência.
Não interessa se há outras soluções. Na realidade, nem se ouvem outras soluções, porque o «tempo de antena» para quem as tem é escasso, e reservado para os habituais «fazedores» de opiniões, que apontam para um caminho: a redução do papel do Estado na sociedade, cortando em serviços sociais. Resumindo, o ataque ao Estado Social. E é nessa a direcção que seguem as estratégias políticas traçadas para o nosso país.
Tudo isto sob o pretexto de que vivemos uma grande crise financeira, que a sua causa é o défice público, e que um dos grandes culpados é o perfil de providência do Estado. Esta perspectiva é gravosa de diversas formas e por diversas razões, que agruparei em três grandes níveis: no contexto, na natureza e no alcance.

Porquê no contexto?
Porque Portugal vive outras crises para além da financeira. Esta é recente e, apesar da necessidade que temos de a resolver, resulta de outras crises e de outros problemas mais antigos. Se os esquecermos e não os resolvermos, o mais certo será daqui a uns anos, dada uma nova conjuntura negativa, vermo-nos novamente a braços como uma crise como a actual.
Tal como refere Boaventura de Sousa Santos (2011), no seu livro “Portugal: Ensaio Contra a Autoflagelação”, Portugal vive uma crise financeira de curto-prazo – a urgência do financiamento do Estado –, uma crise económica de médio prazo – a falta de competitividade da nossa economia – devido à especialização da nossa produção(1)  e à nossa integração numa moeda demasiado forte –, e uma crise político-cultural de longo prazo – decorrente do défice na qualidade e competência das nossas «elites» políticas, sociais, económicas, empresariais. E, citando-o, “enquanto as urgências de curto prazo nos soarem aos ouvidos como sirenes, não vai ser possível reflectir sobre as exigências de médio e longo prazo que são feitas ao país para deixar de viver de tropeço em tropeço, de abismo em abismo“(2).

Porquê na natureza?
Porque o problema real não é bem o que nos fazer crer que é. Em primeiro lugar, porque uma boa parte da nossa situação actual resulta da existência de uma grande dívida externa que é sobretudo privada e pertencente aos bancos nacionais – quase metade –, enquanto menos de um quarto é dívida pública(3) . Esta dívida foi crescendo sobretudo devido às baixas taxas de juro que a integração na Zona Euro nos garantiu, que se reflectiu numa facilidade de acesso ao crédito pela qual os portugueses – particulares e empresas – se deixaram deslumbrar, continuamente incentivados por uma banca cujo discernimento não raras vezes é toldado pela ganância.
Por outro lado, porque a nossa situação se deve a uma conjugação de factores que incluem a socialização da dívida dos bancos(4)  (através da nacionalização e da injecção ou disponibilização de capital); as ondas de choque da crise financeira mundial que começou em 2007 ou do choque petrolífero de 2008; a rigidez imposta pela União Europeia aos seus países membros (quer pela definição de níveis máximos, aparentemente arbitrários, para défice e dívida públicos, que pela impossibilidade de financiamento dos Estados através do seu banco central); uma União Europeia pouco unida, com uma moeda e mercados únicos, mas com visões estratégicas e interesses diferentes; a natureza pouco racional dos mercados financeiros (muito ao contrário do que é aceite como dogma pelas teorias capitalistas); e também por uma estratégia política nacional que acabou por se revelar não ter sido a melhor no que toca à gestão da situação nacional.
Por fim, porque mesmo esquecendo todos os factores anteriormente mencionados, e assumindo que os nossos únicos problemas são a dívida pública e o défice nas contas do Estado, não se pode afirmar que a sua causa seja a despesa pública. Em primeiro lugar, é preciso ter presente na análise, a dinâmica da receita, quando se analisa o défice estatal. Em segundo lugar, mesmo que a dívida pública tivesse aumentado devido às despesas públicas, não é garantido que uma redução das despesas contribua para a diminuição da dívida – a evolução da dívida depende de vários factores e se, nomeadamente, o crescimento da economia for inferior ao da taxa de juro, o resultado será um crescimento da dívida (por via dos juros).
Ora, o que tem acontecido do lado da receita nos últimos anos é uma redução de impostos para alguns. E este não é um fenómeno apenas nacional. Segundo os relatórios da KPMG, a taxa média de imposto sobre as empresas tem vindo a descer nos últimos anos em vários países; em Portugal baixou dos 39.6% em 1997 para os 25% em 2007(5)  (um terço do seu valor!).
 Embora esta redução até possa ter sido feita com a melhor das intenções – com a ideia de que uma redução nos impostos das empresas se traduziria em melhores resultados, que dariam origem à criação de mais emprego, a mais exportações e a mais riqueza para o país, que se traduziria em nova receita fiscal que compensaria a redução inicial de impostos – a realidade é que, quando combinada com outros factores que se foram sucedendo no nosso país, a ideia inicial saiu gorada(6) .
O que acontece é que durante o mesmo período, o nosso país viveu a «êxtase» dos fundos estruturais e de coesão, passámos pelo auge da política do betão, assistimos ao crescimento brutal do sector não-transaccionável e as parcerias público-privadas nasceram como cogumelos. As grandes empresas cresceram e concentraram-se em torno do sector não-transaccionável e das parcerias com o Estado. Isto quer dizer que não foi através dessas grandes empresas que as exportações cresceram, a economia não cresceu como esperado e não foi criada riqueza como perspectivado inicialmente; quando muito, gerou-se mais emprego, mas pouco mais que isso. Isto originou, obviamente, uma quebra nas receitas do Estado.
Ora, mas não sendo este um problema exclusivamente português – embora em Portugal tenha sido agravado pelos factores atrás especificados –, não pode ser corrigido por Portugal sozinho. Se um país, sozinho, aumentar os impostos sobre as grandes empresas, o mais certo é elas se relocalizarem noutros países com condições fiscais mais favoráveis ou em paraísos fiscais, ou usarem subsidiárias nesses países para assumirem os negócios dos grupos. Veja-se, em Portugal, o caso da Sonae ou da PT(7) . Isto é um problema deste sistema capitalista globalizado. Para haver alterações a este nível, é necessária uma acção conjunta de vários países, que neste momento não se vislumbra como possível – acima de tudo, porque não parece existir esse desejo por parte das «entidades competentes».
Além disso, é preciso não esquecer a fraca taxação aplicada à banca, às grandes fortunas, ou ao capital ganho em investimentos financeiros(8) . Tudo isto contribui para um défice na receita do Estado. Se a taxação fosse mais justa, possivelmente não teriam de existir cortes cegos na despesa.
Ainda assim, o foco das políticas (nomeadamente dos países europeus) é a redução daquilo a que os governantes, de um modo populista e chamativo, chamam de «gorduras do Estado» (que não nego que existem), quando na realidade a real intenção (ou, pelo menos, o que daí resultará) é a venda / cedência de partes do Estado ao capital privado. Além disso, não falta quem acuse os gastos na saúde ou nos programas de apoio social como os grandes culpados da nossa situação.

O problema apontado pelos analistas, economistas e políticos ultraliberais não é a receita, é a despesa. E é aqui que surge o terceiro nível da perspectiva com que olham o nosso problema: o alcance.

Porquê no alcance?
Porque esta visão dos problemas nacionais terá impactos na qualidade de vida dos portugueses. Justificadas com a crise da dívida soberana e com o peso do Estado Social no défice orçamental português, mas na realidade motivadas – ou pelo menos orientadas – por uma visão político-económica que se diz neoliberal mas que, acima de tudo, mascara outros interesses de natureza oligárquica, é para aí que apontam as políticas perspectivadas.
Estão previstas privatizações de empresas em sectores sem concorrência e de empresas que dão lucro. Está planeada a reestruturação (com custos assumidos pelo Estado) de empresas que dão prejuízo, para que possam ser vendidas quando derem lucro. Estão perspectivados cortes na saúde, na educação, na segurança social, ao mesmo tempo que se abrirá caminho aos privados nestas áreas.
A motivação por trás destas intenções é fácil de entender: tudo aquilo que é assegurado pelo Estado representa dinheiro que foge ao bolso dos privados. Qualquer grupo empresarial está interessado no mercado sem concorrência da água, na televisão(9) , nos correios, na TAP ou na CP, Metro e Carris (assim que o Governo faça o trabalho previsto de saneamento das contas destas empresas e as torne lucrativas). O mercado potencial da saúde e da educação representa um valor de 10% do PIB(10)  e o da segurança social mais de 20% do PIB – cerca de 30 mil milhões de euros por ano.
As consequências desta ganância serão extremamente nefastas. O resultado da pretendida diminuição do papel do Estado e consequente aumento da participação dos privados traduzir-se-á na eliminação da tendência gratuita da saúde e a sua entrega a privados (algo que já vem acontecendo através, por exemplo, de parcerias público-privadas – em que os riscos são sempre assumidos pelo Estado – nos hospitais-empresa); no bloqueio da mobilidade social que a educação pública garante e na sua degenerescência (seja através da utilização do sugerido cheque-ensino, seja através do fecho de escolas que contribui para a desertificação do interior); na passagem para a mão de privados de uma fonte enorme de poupança acumulada – os descontos para a velhice – que podem agora substituir o capital que ultimamente tem vindo a escapar no mercado imobiliário – durante os últimos anos, o destino principal da poupança dos portugueses – devido à crise que o atingiu.
Isto afectará (e já afecta) pobres e os sectores médios e baixos da classe média, que estão a ser os grandes prejudicados pelas medidas de austeridade e que serão afectados pelas estratégias que se perspectivam para a educação ou para a saúde.
É preciso ter presente que os impostos pagos ao Estado servem para que este assegure certos serviços públicos que, dessa forma, garantem algum retorno ao cidadão que os paga; e quando o Governo fala em redução da despesa através do corte destes serviços, é o mesmo que falar de um corte nos nossos ordenados – é do nosso ordenado indirecto que se fala –, quando o défice fiscal resulta, afinal, de uma distribuição desigual da carga fiscal, da protecção estatal a algumas empresas ou dos negócios ruinosos do Estado com o sector privado.
Não se pode falar em cortar ordenado indirecto, quando o trabalho não é taxado da mesma forma que o capital.
Não se pode aplicar austeridade a quem vive do seu trabalho e até a quem não consegue trabalho, quando o sector financeiro consegue lucrar com as suas próprias asneiras.
Nada disto pode ser esquecido.

autor: Bruno Leal


 Notas e Referências:
  1. A nossa baixa produtividade deve-se, em grande parte, ao pouco valor acrescentado dos nossos produtos. Por outro lado, as baixas qualificações de boa parte da população portuguesa são um obstáculo à reorientação da nossa economia.
  2. Santos, B. S. (2011), Ensaio Contra a Autoflagelação, Lisboa: Almedina
  3. Gross External Debt Position, Banco de Portugal 
  4. É preciso não esquecer que os bancos contaram com o apoio (financeiro) dos estados quando dele precisaram; que quando a crise afectou os estados, a banca lhes emprestou dinheiro a taxas elevadas, enquanto simultaneamente ganhou o direito a financiar-se junto do Banco Central Europeu a taxas muito baixas – ganhando dinheiro como o empréstimo aos estados –; e que ainda se perspectiva nova disponibilização de capital dos governos aos bancos. Com tudo isto, as instituições financeiras ainda saem a ganhar de uma situação que elas próprias provocaram.
  5. KPMG’s Corporate and Indirect Tax Rate Survey 2007, KPMG’s Corporate and Indirect Tax Survey 2010
  6. Está mais que visto que a redução da TSU que se avizinha – também ela feita com boas intenções, numa perspectiva liberal – se traduzirá em resultados semelhantes.PT lucra recorde mas paga menos impostos; Empresa não pagará imposto em Portugal, porque sede é na Holanda; Projecto de anúncio de lançamento de oferta pública geral de aquisição de acções representativas do  capital social da Portugal Telecom, SGPS, S. A.; Como as grandes empresas escampam ao fisco e ganham milhões.
  7. Sobre este tema, recomenda-se a consulta de informação sobre a venda da participação na Vivo por parte da PT, ou sobre a OPA da Sonae à PT: 
  8. O artigo de Warren Buffett, no NY Times, de 14 de Agosto, fala precisamente disto e torna-se especialmente interessante por se tratar de um super-rico, com boa parte da sua fortuna construída com investimentos na bolsa, que exige que ele e outros como ele sejam taxados da mesma forma que quem ganha o seu capital através do trabalho.
  9. Excepto os concorrentes, por razões facilmente perceptíveis.
  10. E a saúde assume-se como um excelente negócio de futuro: Telejornal, 2007/04/18.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Agonia da Democracia Parlamentar e o surgimento da democracia especializada – Uma Nova chance para a democracia verdadeira?

Parece ser cada vez menor a capacidade do sistema político para intervir em defesa do Estado Social, para promover crescimento, regular o sistema financeiro e a globalização. Numa sociedade cada vez mais complexa, cresce a dúvida sobre a qualidade e alcance efetivo da governança política, nestes e em muitos outros aspetos.
O afastamento entre o cidadão e sistema político tem, também, vindo a crescer e começa a dirigir-se para o ponto de rutura, no qual grande parte dos cidadãos poderá recusar a legitimidade do sistema político e dos seus agentes.
James Fishkin
É virtualmente impossível que o cidadão consiga, efetivamente, avaliar a qualidade das governações, pois estas incidem sobre uma grande diversidade de assuntos complexos que, aliás, são influenciados por muitas variáveis que escapam ao controlo dos governos nacionais. Esta incapacidade de avaliação impede a realização da lógica democrática de controlo, pelos cidadãos, dos seus representantes, colocando em causa um dos pressupostos essenciais da democracia. Não é, pois, de estranhar a mediatização e o peso excessivo do marketing na orientação do voto do cidadão, incapaz de avaliar, de forma racional e devidamente informada, a globalidade das situações concretas.

As críticas ao défice informativo da democracia não cessaram de aumentar desde Anthony Downs, logo em 1957, passando, depois, pelos trabalhos da escola da Public Choice e pela teoria dos jogos, ao colocar a questão das assimetrias informativas entre representado e representante. O orçamento participativo e as sondagens deliberativas de James Fishkin são talvez as experiências mais conhecidas na tentativa de superação deste défice. Os conceitos e experiências de democracia participativa, preocupada com a devolução do poder aos cidadãos, bem como as reflexões e inovações no âmbito da democracia deliberativa, preocupada com o nível de informação e isenção que assiste à decisão, são dos conceitos hoje mais estudados da teoria política.

David Held
 Interessa, portanto, acentuar reformas no sistema político, capazes de garantir melhor controlo, qualidade e maior alcance da governança, através de menores assimetrias informativas, mobilizando os cidadãos para as difíceis tarefas que hoje se colocam.
A atual crise exigirá atuação a diversos níveis, desde a austeridade, até a promoção do crescimento, passando pela reestruturação do Estado, do tecido empresarial, dos níveis de protecionismo e globalização, da gestão da massa monetária, da cultura e da ética, das metodologias de trabalho e das atitudes, bem como de vários outros níveis que terão de ser geridos numa sinergia que exigirá uma governança de alta qualidade.

 Os princípios das reformas na governança devem ser uma maior participação, a transparência e o cuidado com a disponibilização da informação necessária à correta deliberação.
Por razões óbvias, as reformas devem ser, também, encetadas dentro dos partidos políticos, paralelamente a reformas, de sinal idêntico e progressivas, a nível de todo o Estado, administração pública, organizações da sociedade civil e empresas.

As deliberações políticas podem ser efetuadas por fóruns suficientemente especializados para poderem coligir e usar a informação relevante e, simultaneamente, abertos a todos os cidadãos.

Neste enquadramento podem emergir as seguintes propostas:
1.    Criar uma rede de fóruns temáticos, cada um correspondendo ao tema de cada uma das atuais Secretarias de Estado. Posteriormente, deverão ser criados fóruns progressivamente mais especializados. Criar, também, fóruns que, embora não correspondendo a esta estrutura, constituam temas agregadores, como fóruns vocacionados para questões de ideologia e desenvolvimento do pensamento estratégico social e económico, bem como fóruns vocacionados para a prospetiva geo-estratégica do mundo globalizado e para o desenvolvimento e promoção da ética.
2.    Dotar estes fóruns de meios eletrónicos de comunicação e deliberação, através da internet.
3.    Preparar e disponibilizar material pedagógico, formação e informação que permita a qualquer participante estudar e apreender, com a maior facilidade que as temáticas setoriais permitirem, as especificidades das matérias próprias de cada fórum, evitando o elitismo e o fechamento dos fóruns. A preparação de módulos, informativos e formativos, de caráter mais genérico (filosofia política, teoria do valor económico, ética, etc) devem, também, constituir uma vertente de uma democracia preocupada com a qualidade informativa das deliberações. Estes módulos devem estar organizados em níveis, permitindo que cada participante possa ir, progressivamente, percorrendo os diversos níveis de formação.
4.    Conceder, progressivamente, poderes deliberativos aos fóruns temáticos. O poder deliberativo deve ir passando dos órgãos tradicionais da governação para estes novos fóruns.
5.    Abrir os fóruns a todos os cidadãos mas limitar o número de fóruns a que cada um pode pertencer, de forma a permitir reflexão e deliberação aprofundada.
6.    De forma a evitar a captura corporativa dos fóruns temáticos, em cada fórum ter-se-á de separar as votações em duas câmaras, uma representado a procura e o consumidor e outra os profissionais do setor respetivo.
7.    Equacionar a possibilidade de cada cidadão escolher um seu representante no fórum ou em órgãos executivos que dele possam derivar mas reservar a possibilidade de substituir-se ao representante, sempre que o desejar.

Norberto Bobbio
Num sistema deste tipo, novos paradigmas de legitimidade democrática fazem a sua aparição em pleno, configurando uma democracia especializada e temática. Cada participante delega, na prática, nos outros participantes a legitimidade para assumir decisões em seu nome (decisões estas tomadas nos outros fóruns ou em derivados do fórum no qual participa), reservando, contudo a capacidade de retirar essa delegação sempre que o desejar. Bem distantes estamos do paradigma da representação tradicional, no qual um participante delega poderes, vastos e genéricos, nos representantes políticos que escolhe, através do seu voto.

A possibilidade dos cidadãos mudarem de uns fóruns para outros onde sentem que a governação não está a ser correta, poderá permitir um equilíbrio que realize o interesse geral.
A expetativa de revolução paradigmática na democracia pode ser o primeiro passo para um conjunto vasto de reformas económicas, mediáticas, culturais e éticas que, tal como a crítica à democracia parlamentar, estão há bastante tempo a ser estudadas mas que, infelizmente, continuam fora das agendas das democracias parlamentares, presas de oligarquias, excessivamente mediatizadas e permeadas pelo marketing massificador.

autor: José Nuno Lacerda Fonseca
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