quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Cultura e Conhecimento - parte 1

"Se tiverem pão e se eu tiver um euro, e se eu vos comprar o pão, eu ficarei com o pão e vocês com o euro e vemos nesta troca um equilíbrio: A tem um euro, B um pão. Mas se vocês têm um soneto de Verlaine, ou o Teorema de Pitágoras e eu não tenho nada, se vocês me ensinam, no final desta troca eu terei o soneto e o teorema, mas vocês também. No primeiro caso há um equilíbrio, é a mercadoria, no segundo há um crescimento, é a cultura."
Michel Serres
 
Quando nos confrontamos com uma crise como a que vivemos e que põe em causa tanto o modelo de desenvolvimento dominante, como o modelo de sociedade, e quando nos apercebemos que os instrumentos de análise da crise só nos permitem ter uma visão sectorial ou disciplinar da realidade.
 
Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo - Salvador Dalí
 
Quando temos consciência de que o grande défice dos dias de hoje é o défice de inteligência das elites, a sua incapacidade para darem espaço aos projectos inovadores que por todo o lado vão emergindo, de compreender a riqueza das propostas e das experiências de inovação que quotidianamente se fazem em todas as dimensões da vida social.
Quando sabemos que o futuro só se constrói se solidamente suportado na memória e na história, e hoje é dominante a prática do esquecimento, a necessidade de cada um se afirmar na prática do esquecimento do que foi feito, da história.
Quando toda a gente, das empresas às universidades, das estruturas públicas às privadas, se fala da necessidade de se formarem cidadãos autónomos e livres, com opiniões próprias, com uma forte inteligência sensível, com uma grande flexibilidade e abertura de pensamento, única forma de respondermos, individual e criativamente, à imprevisibilidade do mundo e aos desafios dos futuros possíveis.
Quando sabemos que não haverá mudança se ela não passar pela transformação dos homens e que os homens só mudam pela demonstração da superioridade de um modelo intelectual, uma mudança cada vez mais urgente pois o "mundo do futuro será uma batalha cada vez mais exigente contra as limitações de nossa própria inteligência, e não uma confortável rede em que nos podemos deitar para esperar por robôs escravos.” como escreve Richard Barbrook no seu livro Futuros Imaginários - Das Máquinas Pensantes à Aldeia Global.
É altura de perguntar onde está a dimensão social capaz de criar condições para formar cidadãos e comunidades abertas à mudança, capazes de encontrar múltiplas respostas para a diversidade dos problemas com que, a cada momento, nos confrontamos e de inventar futuros possíveis? Uma dimensão social que incentive a construção de novos instrumentos de análise, de um novo quadro de referência, potenciando o reforço do papel da inteligência em todos os processos de intervenção humana, pela modificação radical do nosso quadro de pensamento e dos actuais modelos de desenvolvimento.
Esta dimensão só a encontramos na cultura que é, ao mesmo tempo, memória e tradição, o cimento que suporta toda a estrutura social e lhe dá identidade, e espaço de encontro connosco e de criação das condições para a descoberta e a invenção das múltiplas saídas para a crise, em suma, a bússola duma sociedade ou o seu GPS que deve estar presente em todas as áreas da governação e dar um sentido de unidade e coerência a um projecto de futuro.
A cultura é aqui assumida como conhecimento, onde se ligam as artes com as ciências e as tecnologias, o futuro com a memória, dando corpo a uma visão transdisciplinar capaz de construir os alicerces dum novo tempo. É efectivamente na dimensão cultural que vamos encontrar os instrumentos que nos permitem ter uma ideia da totalidade, uma visão holográfica de um mundo onde o homem deve voltar a ser o centro de todas as coisas, onde a sociedade seja vista na sua globalidade e não como somatório de áreas do conhecimento ou corporações.
A cultura é o espaço onde se defende e afirma a identidade, a memória e o património de um povo e de um país, onde, se aprofunda a inovação e se inventam/ficcionam os futuros possíveis, onde todos aqueles que experimentam e criam o novo têm um lugar privilegiado, sejam artistas, cientistas, filósofos, romancistas, onde as redes internacionais sejam redes do conhecimento e da criação do novo, do futuro. Rui Tavares concretiza duma forma exemplar a ideia da cultura enquanto conhecimento: “Hoje, diz-se, vivemos na sociedade do conhecimento; a questão central é ter uma ideia de Portugal na sociedade do conhecimento. Pois bem, diria Pombal: se essa é a questão central, temos de voltar a colocá-la no centro. No centro simbólico, político - e no centro propriamente dito da cidade”.
Daí que o combate por um projecto cultural deve passar por todos os poros e interstícios da vida quotidiana, para que a cultura seja um elemento capaz de mudar, ao mesmo tempo, a sociedade e a vida. Só com uma dimensão cultural enquanto realidade que atravessa todos os domínios do social e nos incentiva e obriga a ultrapassar as visões redutoras ainda dominantes na nossa sociedade, poderemos inventar outras realidades.

autor: Carlos Fragateiro

1 comentário:

  1. Não se pode resolver um problema global com soluções disciplinarmente fechadas, como, erradamente, hoje se tenta fazer, com respostas financeiras a uma crise que é de coesão e confiança, de desenvolvimento económico, ambiental, ética, social, política, mediática e, segundo creio, também é uma crise, espiritual, de sentido da existência. A pressão competitiva do Oriente está a ampliar, dramaticamente, as fragilidades estruturais do Ocidente. Deviam as religiões dar respostas mas já desde o século 18 que as crises lhes passam ao lado. Deviam as ideologias dar resposta mas estão hoje reduzidas a alguns lugares comuns exauridos pelos mídia. Como antes fizeram o liberalismo e o socialismo, só há um caminho. Procurar ajuda em tudo aquilo que andámos a pensar desde que nos conhecemos. O mesmo é dizer, procurar ajuda na cultura, sem preconceitos, sem radicalismos e com a humildade, pois creio que o tempo do messianismo ideológico acabou – as sociedades já são complexas demais para esses simplismos.
    Muito obrigado ao Carlos Fragateiro por este banho de humildade que é chamar a cultura em nosso auxílio. Bem precisamos.
    Abraço
    José Nuno Lacerda Fonseca

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